Por Emilly Dulce e Aline Scátola, do Brasil de Fato
Pat Roy Mooney é pesquisador canadense com mais de quatro décadas de experiência no campo da biotecnologia e da biodiversidade. Autor de Seeds of the Earth: A Private Or Public Resource? (O Escândalo das Sementes: o Domínio na Produção de Alimentos), Mooney recebeu o Prêmio Nobel Alternativo no Parlamento da Suécia e uma Medalha da Paz do governo canadense. Ele também é fundador e diretor-executivo do Grupo de Ação sobre Erosão, Tecnologia e Concentração (ETC), que trabalha em conjunto com organizações da sociedade civil mundial em defesa do desenvolvimento sustentável, dos direitos humanos e da diversidade cultural e ecológica.
“Pode parecer um pouco sarcástico, mas as sementes geneticamente modificadas [transgênicas] estão ficando cada vez menos relevantes, porque as empresas estão indo além dos OGM [organismos geneticamente modificados] convencionais, no sentido de uma nova geração de biotecnologia, que é muito mais poderosa e muito mais perigosa”, analisa o pesquisador.
“Temos agora apenas quatro empresas no planeta que controlam 68% de todo o fornecimento comercial de sementes, e somente quatro empresas que hoje controlam 71% de todas as vendas globais de pesticidas”, ressalta.
Comentando esse cenário em entrevista ao Brasil de Fato, Pat Mooney destaca os impactos da tecnologia de dados em massa (Big Data) na agricultura e o que isso representa para a segurança alimentar no mundo.
Brasil de Fato: Como as multinacionais agroquímicas vêm utilizando a tecnologia de dados, o Big Data, na agricultura?
Pat Mooney: De quase todas as formas concebíveis. Elas estão usando Big Data com satélites para monitorar o campo e identificar o histórico de pestes, doenças e do rendimento das colheitas. Com base nesses dados e na compreensão deles, elas fazem recomendações sobre que tipo de variedade de planta e pesticida deve acompanhar as sementes no campo. Então elas conseguem fazer recomendações sobre o uso de sementes e pesticidas diversos.
Em segundo lugar, elas também estão alinhadas com algumas das maiores empresas de fertilizantes e fazendo recomendações sobre quais fertilizantes devem ser usados no campo. Claro, elas também têm todas as informações sobre o clima, o histórico do clima, o Big Data sobre isso. E têm as informações sobre mercado.
Então as empresas de sementes/pesticidas que existem hoje sentem que podem usar Big Data para controlar praticamente todos os aspectos da produção agrícola, incluindo assessoria no mercado. Elas se colocam em uma posição em que, em alguns países, elas oferecem assessoria sobre seguro agrícola.
Elas também estão comprando algumas empresas especializadas em Big Data e criando joint ventures [acordos de aliança estratégica] com outras — start-ups, de certa forma. E também têm acordos de licenciamento especiais com algumas das chamadas “concorrentes” no seu próprio setor e em setores adjacentes do sistema. Então o que se tem são relações especiais entre empresas de sementes, pesticidas e fertilizantes. Também se vê cada vez mais conexão com empresas de máquinas agrícolas.
No fim das contas, agora que essa rodada de megafusões entre empresas de sementes e pesticidas está acabando, a expectativa é que a próxima rodada de fusões que deve começar nos próximos anos será uma batalha entre as empresas de sementes, pesticidas e insumos de um lado e de empresas de fertilizantes e máquinas agrícolas de outro.
De que maneiras a agricultura digital reforça o monopólio das sementes e dos agrotóxicos nas mãos dessas empresas, especialmente com a recente fusão da Bayer e da Monsanto?
O que mudou, com essas fusões, é o reconhecimento de que elas foram motivadas, em primeiro lugar, por causa do Big Data, por causa da nova plataforma de Big Data que afeta todas as partes da cadeia industrial da produção de alimentos. Isso não é exclusivo das empresas de sementes e pesticidas.
As fusões recentes não reforçam tanto o monopólio das empresas de sementes e pesticidas, mas sim garantem a elas uma posição de competir contra outras partes da cadeia produtiva dos alimentos que também estão usando Big Data para expandir a posição delas ao longo da cadeia produtiva.
Não existe mais uma indústria de sementes separada da indústria de pesticidas, e essa, por sua vez, está cada vez menos separada da indústria de fertilizantes, e cada vez menos separada da indústria de máquinas agrícolas.
Para além disso, ao mesmo tempo, temos as grandes empresas internacionais de comércio de grãos, que estão em uma posição meio difícil, tentando desesperadamente se envolver não só na parte de produção da cadeia de alimentos, como também se aproximar mais da ponta de processamento dessa cadeia.
E enquanto tudo isso está acontecendo, também vemos que as empresas de processamento e varejo de alimentos estão tentando controlar mais o fornecimento de matéria-prima e ter mais garantia sobre o Big Data, usando o Big Data para tentar administrar a cadeia de fornecimento. Então hoje estão todos competindo entre si.
O que essa tecnologia de dados representa no contexto da segurança alimentar no mundo?
O sistema industrial de produção de alimentos é diferente do sistema de produção camponês. O sistema industrial caiu nas mãos de duopólios. E vemos, com essas fusões, que as agências reguladoras oficiais que tratam de políticas de concorrência e anti-monopólio estão preparadas para permitir essas fusões verticais e horizontais em toda a cadeia produtiva dos alimentos, permitindo que duas ou três empresas passem a deter o controle. Acredito que isso é alarmante para todos nós.
Nessa última rodada de grandes fusões, por exemplo, temos agora apenas quatro empresas no planeta que controlam 68% de todo o fornecimento comercial de sementes, e somente quatro empresas que hoje controlam 71% de todas as vendas globais de pesticidas.
A rede camponesa de produção de alimentos é imensamente mais inovadora, bem-sucedida e eficiente econômica e financeiramente do que a cadeia industrial de produção de alimentos. Isso não quer dizer que a cadeia industrial não tenha áreas inovadoras. Existe muita inovação em algumas áreas do sistema industrial, mas elas são extremamente confinadas. Elas não têm o mesmo escopo de inovação que os camponeses têm.
Por exemplo, observando a cadeia industrial de alimentos, quase metade de todas as pesquisas conduzidas hoje sobre colheitas nessa cadeia se concentra em uma única cultura: o milho. Enquanto isso, os camponeses trabalham com sete mil espécies diferentes de culturas. Na verdade, só se pesquisa sobre cerca de uma dúzia, mais ou menos doze grandes culturas em todo o mundo. Então tem uma diferença imensa nesse sentido.
Isso significa, se olharmos a questão da segurança alimentar, que temos que nos perguntar: quem tem mais condições de ajudar o mundo a lidar com as mudanças climáticas e todas as crises que esperamos enfrentar no futuro? Uma rede campesina de produção de alimentos, com uma imensa diversidade e altamente descentralizada, ou uma cadeia industrial de alimentos altamente centralizada e concentrada que trabalha com pouquíssimas espécies e variedades de plantas?
Então nesse contexto da soberania alimentar, que risco também traz o domínio das sementes transgênicas nas mãos de poucas empresas?
Pode parecer um pouco sarcástico, mas as sementes geneticamente modificadas estão ficando cada vez menos relevantes, porque as empresas estão indo além dos OGM [organismos geneticamente modificados] convencionais, no sentido de uma nova geração de biotecnologia, que é muito mais poderosa e muito mais perigosa.
É a tecnologia de edição genética ou impulsionadores genéticos, que pode fazer muito mais do que os OGM. Com os OGM, na verdade, as empresas transferem um ou dois genes de uma espécie de planta ou de outra espécie para a soja ou o milho. No caso das tecnologias de impulsionadores genéticos, as empresas conseguem transferir, literalmente, centenas de genes em torno e dentro de uma variedade de planta que já existe sem precisar produzir nenhum transgene, sem transferir de uma espécie para outra.
O impacto e a transformação que está acontecendo na tecnologia é muito maior do que se viu no passado, e, repito, não temos ideia se isso é seguro.
Essas multinacionais argumentam que o investimento e o uso de venenos e tecnologias genéticas no campo da agricultura ampliam a produção de alimentos e podem reduzir ou acabar com a fome. Como o senhor vê essa argumentação?
[Risos] Elas alegam isso desde que comecei minha carreira na agricultura, o que já tem quase meio século. E eu ainda não vi nenhuma prova disso, não vi nenhum dado concreto. Sempre me surpreende quando as grandes multinacionais falam em “alimentar os famintos” para defender o próprio monopólio. É uma bobagem.
Não existe nenhum tipo de evidência que prove que o que elas fazem tenha alimentado alguém. O que elas produzem com as culturas geneticamente modificadas nada mais é do que o maior controle sobre as culturas. Não se aumenta o rendimento das culturas nem os benefícios para as pessoas que passam fome em todo o mundo.
Toda vez que acontece uma transformação na tecnologia — da “Revolução Verde” à questão das sementes híbridas nos anos 1960 e 1970, até a questão dos primeiros OGM e as novas questões a respeito da agricultura de clima inteligente e da agricultura de precisão — as empresas sempre falam para nós que a ideia é alimentar os famintos do mundo. Mas, até hoje, 70% da população do mundo é alimentada por camponeses, não por essas empresas. Isso não mudou ao longo das décadas.
Como a crescente pressão dessas corporações nas instâncias de poder, para emplacar leis e regulamentações, fortalece esse monopólio?
As empresas têm investido muito no lobby corporativo para influenciar os governos nos últimos anos. É muito impressionante ver o grau a que chegaram as grandes empresas de tecnologia na agricultura e em outros setores em termos de recursos gastos para tentar persuadir os governos a fazer o que elas querem. E, claro, elas têm muito mais tempo com os políticos responsáveis pela elaboração de novas políticas.
E elas estão criando um mito que a maioria dos políticos parece acreditar de que, para alimentar os pobres em um século de mudanças climáticas, crescimento populacional e mudanças de hábitos alimentares, a única forma de alimentar os famintos seria usando novas tecnologias, que são tão caras que somente as maiores empresas teriam condições de desenvolver. E para permitir que essas empresas assumam os riscos envolvidos no desenvolvimento dessas tecnologias, elas precisam ter permissão de construir monopólios cada vez maiores. A ONU precisa agir, porque não existe uma regulamentação internacional em termos de políticas de concorrência.
A respeito do impacto sobre os consumidores, na população de todo o mundo, ele existe porque estamos colocando todas as nossas fichas em uma coisa só. Estamos dependendo e entregando toda a responsabilidade pelo sistema comercial de alimentos nas mãos de um número ínfimo de empresas. Isso sempre representa um risco altíssimo para a segurança alimentar, tanto pelo preço quanto pela disponibilidade dos alimentos. Também é um risco para a qualidade dos alimentos, sinceramente, porque não vemos nenhuma melhora significativa nesse sentido.
Como todo esse processo se relaciona com a violência que a população sofre mundialmente, já que é um movimento global?
Está tudo ligado. Conforme as corporações se apropriam de mais terras e mais soja para alimentar mais gado, isso afeta o meio de vida e bem-estar de produtores campesinos e, no limite, dos consumidores. E isso gera violência no campo e na cidade.
O alimento está na essência do bem-estar e da segurança dos meios de vida dos seres humanos, assim como a água que acompanha o alimento. Quando os alimentos e a água são apropriados pelos interesses das corporações, sempre acontece uma crise de segurança e o aumento da violência.
É importante tratar o assunto como uma questão política e apoiar movimentos populares, o movimento sem-terra, de pequenos agricultores e camponeses. Sobre o Brasil, é possível ver todos esses problemas dentro do país. Mas isso significa também que as soluções, pelo menos em parte, também estão dentro do Brasil.
Edição: Juca Guimarães