A educadora popular Marina Praça, coordenadora do Instituto PACS
A educadora popular Marina Praça,
coordenadora do Instituto PACS

Nas cidades, a especulação imobiliária, o plano diretor, o avanço sobre terras onde existe gestão coletiva por ocupações recentes, por remanescente de quilombos, de comunidades tradicionais, ocupações populares. No campo e nas florestas, complexos industriais, portos, mineradoras e siderúrgicas, hidrelétricas. 

Onde chegam os megaprojetos e mega eventos – como Olimpíadas Copa do Mundo, Jogos Pan Americanos -, atravessam formas de vida e de territórios, geram remoções, impactos socioambientais, tratam a vida e as cidades na perspectiva de mercadoria e oportunidade de negócio.  

A luta das mulheres contra esses megaprojetos é também o embate por outros modelos de desenvolvimento, abrange o debate da economia feminista, da crítica ao trabalho reprodutivo, ao trabalho doméstico não remunerado, temas que o Jubileu Sul discute nesta entrevista com a educadora popular Marina Praça, coordenadora do Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS). 

Ela trata da defesa dos corpos, vozes e resistências, abordando também os impactos com a pandemia, a articulação e formação das mulheres, e os desafios para construir outro caminho de desenvolvimento. 

Como os megaprojetos afetam a vida e os territórios das mulheres e suas famílias?  

Essa reflexão na perspectiva das mulheres mostra como a lógica desses projetos é uma lógica patriarcal e os impactos são diferenciados nas vidas das mulheres. As primeiras coisas sentidas são os impactos no dia a dia, mas também tem o que é sentido nessa lógica de como as formas de poderes se expressam na figura do homem. 

Isso é importante porque há momentos em que a crítica parece abstrata, mas é muito real, vivida e materializada. E quando falamos dessa perspectiva dos corpos-territórios é porque sempre pensamos também no que afeta esses corpos. Quando uma empresa hidrelétrica chega num lugar e acaba com a vida de rio, ela está atravessando corpos, territórios,  formas de vida, a maneira como as comunidades se mantêm, e comunidades estas normalmente lideradas e mantidas pelas mulheres. 

Quando falamos que os corpos das mulheres são atravessados, estamos falando desde ela não ter mais formas de subsistência, como a pesca, agricultura, marisco, até a perspectiva da saúde, dos adoecimentos físicos e emocionais,  e do quanto essas relações do corpo-terra estão muito imbricadas. Quando se vive num território, se sobrevive por ele e o território é atacado, você é atacado também e sente isso de uma forma muito intrínseca. 

Percorrendo os territórios, já ouvimos muito algo do tipo “ouvi uma explosão numa mina e senti dentro do meu coração essa explosão”, “meu território foi afetado por uma linha férrea e me sinto totalmente atravessada, não podendo mais plantar e caminhar nesse lugar, não podendo mais lavar roupa nesse rio”. 

Como as mulheres têm se articulado nessa reação aos megaprojetos? Gostaríamos que você comentasse também o papel do processo formativo 

No PACS fazemos apoio dos processos de luta, de articulação e fortalecimento das coletividades e das organizações que existem nos territórios e megaprojetos. Na campanha #MulheresTerritóriosdeLuta é um grande processo de fortalecimento de um campo, de debates e de redes. 

Fizemos um processo formativo que foi um encontro de mulheres em abril de 2019, que envolveu cerca de 40 participantes de uns 7 estados do Brasil, com a perspectiva de formar e se aproximar. Formação tem muito esse lugar do encontro também e temos construído muito conhecimento assim, juntas. Fizemos também entrevistas com mulheres desses vários territórios, que traziam muito do lugar, da trajetória de vida delas que se junta com a das coletividades a qual elas fazem parte. 

Muito do que fazemos vem de uma prática política, investigativa. Queremos entender, sim alguns conceitos, mas queremos entender isso a partir do movimento, da ação e de uma perspectiva coletiva. Isso vem de articulações com organizações que já estão nesses territórios, não saímos do Rio de Janeiro e descobrimos o Brasil, atuamos em rede e isso fortalece cada vez mais.  

Desde os olhares dos corpos das mulheres, também tem um debate de raça muito central, tendo clareza que estamos falando a partir da região Sudeste, que a equipe que acompanha o projeto é na maioria branca, respeitando nossas limitações, mas fazendo a discussão como central. Nos nossos ciclos isso é uma predominante, o debate de raça vai atravessar todos os debates porque sabemos que isso é algo totalmente estrutural. 

Pensando no papel de protagonismo da sociedade civil, como fortalecer a atuação das mulheres nesse enfrentamento? 

Tem a questão das denúncias, da pressão porque são coisas legitimadas pelo Estados. Você tem o aumento da militarização com o megaprojeto. Todos esses megaprojetos têm uma vertente de controle muito grande, de violência e, ao mesmo tempo, o próprio projeto de militarização. Têm forças internacionais, têm uma estrutura muito grande 

Vejo ainda numa perspectiva estrutural, mais crítica, de visibilização do que as mulheres vivem cotidianamente, seja no seu trabalho invisibilizado, na vida, no papel do cuidado que é colocado como natural para as mulheres, seja na naturalização de um lugar das trabalhadoras domésticas. 

Complexo industrial no Porto de Suape (PE)
Foto: Rafa Medeiros/Flickr/CC

Talvez na ruptura de vários lugares de naturalização, de impacto vivido pelas mulheres sem que isso seja visto como uma violação de direitos, uma violação das pressões de vida das mulheres. Tem vários âmbitos, desde as relações dentro dos próprios territórios, das próprias organizações de resistência até à crítica em relação à empresa, ao Estado, que é a ruptura dos lugares de opressão e de e de desvalorização das mulheres. 

A questão da visibilização tem a ver com a do fortalecimento desta liderança de mulheres e do reconhecimento delas. Quando construímos o processo de juntar as mulheres, é identificar também onde estão os lugares de respiro, os lugares de beleza, de potências, das artes, as formas de alimentar.  Em contextos de muita morte, de muita destruição de muita, nosso processo também é potencializar o que tem de bonito, de relação com a natureza, de forças que ajudem a gente a respirar em meio a tanta coisa. 

Que desafios a pandemia de coronavírus trouxe à luta? 

A realidade nos territórios já era complexa antes e o coronavírus intensifica essa realidade, como os impactos do acesso à água trazidos pelos megaprojetos e todas as consequências que isso traz às populações. 

Em empresas de mineração e siderurgia que temos acompanhado, o que vemos  é uma permanência das operações, com as corporações divulgando em seus sites que estão tomando cuidado por conta da COVID-19, mas sabemos que o que fazem é o mínimo. 

Ainda se apropriam desse momento para um marketing de melhoria da imagem da empresa, isso que chamamos de responsabilidade social corporativa. É uma lógica corporativa muito cruel porque é impacto sobre impacto, e uma apropriação das violações em benefício das empresas para construção de uma imagem de sustentabilidade, de empresa que pensa no “bem” da sociedade. 

A pandemia é a continuação da realidade dos impactos, da perseguição e criminalização dos defensores de direitos humanos e uma apropriação desse período emergencial para fortalecimento da comunicação da imagem das empresas para responsabilidade social.  

Há pouca esperança nesse processo, mas o que podemos ver nesses territórios são as resistências aos megaprojetos rapidamente articularem ações de apoio mútuo e solidariedade. Em momentos emergenciais sempre pulsa a capacidade organizativa, de solidariedade, de fortalecimento do apoio mútuo. 


Quais os outros caminhos possíveis a esse modelo de desenvolvimento tão centrado nos megaprojetos? Qual a perspectiva das mulheres quanto a isso? 

Esse é um desafio. O que defendemos tem a ver com uma reflexão das alternativas, as possibilidades ir construindo outras formas de viver, outros mundos, outras relações. Algumas apostas, caminhos e coisas que vemos acontecendo e dão esperança 

Tem um caminho de defesa muito grande da agroecologia, como o caminho político, cultural e ideológico não só como forma de produção, mas como uma forma de construir vida mesmo, de relações pessoais. 

Temos acompanhado enquanto potência essa construção das relações, principalmente das mulheres, dos espaços auto organizados, de ter o que é comum. Essa coisa do comum está muito na moda, sim, e às vezes a temos dificuldade de expressar em palavras, mas acho que são essas relações de construção coletiva desde uma base pensando pelo bem comum, pelo bem coletivo. 

E as relações na construção de outros modelos? 

Em espaços só de mulheres claro que existem problemas, questões, mas as coisas são muito mais simples, a potencialidade de uma gestão coletiva é muito maior. Têm experiências muito boas nesse sentido, o para nós é uma grande conquista. São os caminhos de outras realidades e que são também outras formas de pensar a economia, de pensar a forma de se manter vivo nessa sociedade. 

Tem muito a ver com as relações de subsistência, de produção de alimento em diversas escalas, seja uma área de produção grande, seja um quintal produtivo, seja criar uma autonomia coletiva – não é uma autonomia do tipo “eu faço tudo que é meu, não preciso de nada nem ninguém” mas é “eu” dentro de uma perspectiva coletiva, comunitária. Muitas coisas não dependem desse modelo de sistema. 

Acho que a pandemia nesse sentido foi interessante, em ver a resposta tão rápida e de como que os territórios são de luta e resistência, têm um nível de autonomia, de organização para responder à realidade emergencial muito rápido. As coisas mais bonitas que vi que neste momento foi como que os territórios organizados rapidamente construíram respostas a isso.

Trouxe as respostas, seja nas favelas, movimentos de favela, nos periféricos. Os movimentos que estão indo para a rua nesse momento partem dos movimentos das favelas, de movimentos negros, organizados para lutar pelos nossos direitos, pelas nossas vidas. 

Deixe um comentário