MIGRAÇÃO, PANDEMIA E ESPERANÇA.
Quem elegeu a busca, não pode recusar a travessia (Guimarães Rosa)
José Roberto Saraiva dos Santos[1]
Quando a Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), escolheu o tema para intitular a Campanha da Fraternidade de 2020 (CF/20): Fraternidade e vida: dom e compromisso, com o lema: “Viu, sentiu compaixão e cuidou dele”, como sendo uma frase da mesma parábola, a CNBB estava na verdade tecendo um convite à conversão do indivíduo e da comunidade, assim como do sujeito e do coletivo. No entanto, não havia previsão alguma de uma PANDEMIA. Porém, tanto o lema quanto o objetivo da referida campanha tinham uma simbiose profunda pra essa crise civilizatória, pois trazia em seu horizonte os empobrecidos e as condições precárias de vida as quais estão submetidos. Nesse contexto, o COVID -19 vem agravar profundamente essa situação de vulnerabilidade social.
O padre Alfredo Gonçalves[1] nos dizia em um encontro recente: “que no caso da problemática migratória, falamos de multidões prostradas à beira dos caminhos ou à porta das fronteiras, vítimas de muitos e repetidos golpes, tais como guerra e violência, pobreza e miséria – que as leva a uma fuga compulsória”, só que no caso da Pandemia, fugir pra onde?
Sempre esteve em jogo, e agora muito mais de maneira preponderante, provoca o padre Alfredinho “a existência do dia-a-dia, o aqui e agora. Ou seja: o que fazer para que minhas ações cotidianas ganhem um sentido mais profundo? O que fazer par dar um novo rumo ao meu modo de agir? Em outros termos, o desafio é fazer com que meu comportamento diário possa ser revestido de um caráter eterno. Minhas ações devem deixar marcas eternas na travessia sobre a terra, seja ela individual ou coletiva. Ou ainda como trabalhar e agir de tal forma que nossas vidas não sejam em vão, mas sejam escritas no pergaminho da história?”. A pandemia deve provocar essa reflexão na sociedade.
Costumamos dizer que essa crise será como um divisor de águas para a humanidade, para a sociedade do consumo e para o capital especulativo e destrutivo da ecologia integral. No entanto, para o migrante e refugiado, há uma série de adversidades que interrompe seus passos, barrando-lhes o caminho. Seus sonhos se quebram diante das fronteiras fechadas e militarizadas diante de leis cada vez mais restritas e anti-migratórias; diante do racismo, discriminação, preconceito, xenofobia e deportação compulsiva. “As areias do deserto e as águas do mar tornam-se verdadeiros cemitérios de migrantes”, como lembrou o Papa Francisco na mensagem de Natal de 2019. Ou ainda, segundo o pontífice, “em lugar de pontes, multiplicam-se os muros”.
Quem, hoje em dia, impede tantas pessoas, tantos trabalhadores e tantas famílias de seguirem tranquilamente o rumo de suas vidas? Quem lhes rouba o direito à terra, ao trabalho e ao teto? Ou ainda, quem lhes tolhe o direito de ir, vir e de migrar, bem como o direito correspondente de viver com justiça e dignidade na terra em que nasceram? Quem os obriga a deixar a própria pátria e aventurar-se em travessias sempre perigosas e traiçoeiras?
Estamos nos referindo a “ladrões” cada vez mais sofisticados! Muitos deles permanecem ocultos, escondem-se atrás da legislação, exploram trabalhadores e trabalhadoras e, sem poupar as próprias crianças, sentem-se acobertados legitimamente por leis perversas e iníquas. Nesse contexto, o crescimento econômico, não raro, ocorre pari passu com enormes assimetrias e desigualdades sociais. Tudo isso gera o círculo vicioso do desemprego, dos baixos salários e das migrações humanas forçadas. Dessa forma, uma coisa agrava a outra e o COVID-19 vem escancarar essa situação de perversidade no mundo, na migração e no refúgio. Cabe ressaltar que os efeitos de uma tragédia como essa não são diferentes, seja para os deslocados internos ou imigrantes e refugiados, seja para os solicitantes de asilo e refúgio, que sentem também todos os impactos decorrentes desta pandemia pelo mundo a fora.
A situação precária de muitos migrantes nos leva à somar forças com todas as organizações do mundo, principalmente com a Secção Migrantes e Refugiados do Vaticano e o International Catholic Migration Commission (ICMC), que em seus pronunciamentos denunciam que a situação precária da maioria dos migrantes põe em risco sua vida e saúde durante essa pandemia.
Nesse contexto global as organizações mundiais estão fazendo apelos aos governos para que adotem abordagens não discriminatórias que protejam migrantes e refugiados durante a atual crise de saúde. Entre as principais prioridades está o descongestionamento urgente dos campos de refugiados e centros de detenção para impedir que o vírus se espalhe nesses espaços que aglomeram muitas pessoas.
Mons. Robert J. Vitillo, secretário da ICMC, enfatizou que essa crise da saúde, ou seja o COVID-19, está chamando a atenção para as pessoas à margem da sociedade e isso inclui migrantes e refugiados, que estão entre os mais vulneráveis ao desenvolvimento de sintomas graves e que, por sua vez, têm pouco acesso a testes ou tratamentos adequados. Mons. Vitillo também enfatiza a importância de buscar informações factuais de fontes confiáveis, que podem ajudar a afastar a discriminação causada pelo medo.
Quando falamos de Brasil, poderíamos falar de vários ciclos migratórios, porém vamos relembrar as mais recentes e que têm chamado a atenção do mundo e da sociedade brasileira. Destacamos 2010 com a chegada em massa dos Haitianos, em virtude dos terremotos e da frágil situação socioeconômica haitiana.
Anos depois, a partir de 2016, eclodiu o ciclo migratório vindo da Venezuela, com a forte pressão econômica, especulação e dívidas impagáveis, provocada por uma ação coordenada do capital contra os governos na América do Sul, e que chega ao território venezuelano, depois das mudanças em vários outros países, incluindo o Brasil. Tais aspectos forçam uma crise econômica brutal, levando ao desemprego generalizado, baixos salários, e uma fome incomensurável, além de um governo, politicamente frágil e que adotou medidas que corroboraram para uma maior debandada da população em toda a sua história.
Assim, a Venezuela deixa de ser um país conhecido pela sua acolhida, e passa a ter o maior numero de pessoas em flagelo migratório na América do Sul, ou seja, em êxodo constante, feito uma veia cortada sem sutura.
É evidente que não podemos invisibilizar as demais populações que migram ao Brasil, dentre esse bolivianos, guineenses, senegaleses, colombianos, cubanos e um número crescente de asiáticos. Porém, a partir dos dados oficiais encontrados no site da Policia Federal do final de 2019 sobre a crise Venezuelana, embora já desatualizados, alteraram significativamente o cenário referente a migração no Brasil. Vejamos:
Após uma análise desses dados, é possível perceber que a Policia Federal acrescenta em suas informações um número aproximado de 1,2 milhão de migrantes e refugiados em nosso país, onde estimamos que 340 mil sejam venezuelanos, 118 mil haitianos e 106 mil bolivianos. Todos esses números podem ser contestados por vários pesquisadores e pesquisadoras, para tanto, Organização Internacional de Migrações – OIM e Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados – ACNUR, que são agencias da Organização das Nações Unidas – ONU estão sempre atualizando esses dados junto aos órgãos oficiais, havendo possibilidade desses números estarem em constante alteração.
Cabe ainda salientar, que mesmo em tempos de COVID-19, existem várias rotas clandestinas que oportunizam os ditos “espertos” no tráfico de pessoas a cobrarem pelas rotas e, mesmo as fronteiras fechadas, passam a ter um número significativo de seres humanos que ficam invisibilizados e à mercê de trabalho escravo. Por razões como esta, afirmamos que os números apresentados acima devem ser superiores, sem negar, portanto, a importância dessas estimativas, que justamente balizam o grau de intervenção das agências e consequentemente dos governos.
Com a interrupção dos programas de acolhimento, a suspensão quase total dos procedimentos e a quarentena, os imigrantes no Brasil estão mais vulneráveis do que nunca à nova pandemia de coronavírus. Um exemplo disso foi experimentado em primeira mão pelos migrantes e refugiados que estão em abrigos, nas ruas ou em pequenas ocupações em Roraima, além da vida vulnerável e mais que precária, contam com uma xenofobia crescente, ou melhor dizendo, aporofobia[2] gritante de uma elite cheia de “não me toques”. Ainda bem que esse comportamento não é de toda a sociedade roraimense, destaque-se que ali foram construídos verdadeiros corredores de solidariedade, de humanização e do saber cuidar.
Diante disso, queremos nos unir à toda a rede de proteção aos migrantes e refugiados, fazendo um apelo fundamental nestes dias e semanas que se seguem. É preciso ampliar a proteção dessas famílias em todo nosso território nacional e, de forma especial, em Roraima e Manaus, onde os migrantes e refugiados estão em mais de 13 abrigos e aos milhares nas ruas e pequenas ocupações, prestes a serem expulsos, como chamamos a atenção, no caso do Monte Horeb, em Manaus, comunidade já estabelecida há mais de 5 anos, que fora expropriada por quem deveria proteger. Havia mais de 12 mil pessoas e, dentre essas famílias, cerca de 400 famílias eram de migrantes e refugiados de várias nacionalidades.
Recentemente, esforços concentrados do Exercito Brasileiro, OIM e ACNUR com a sociedade civil organizada, principalmente a Igreja Católica (diocese e seus organismos), têm feito procedimentos que buscam descentralizar o máximo possível de pessoas com a Operação Acolhida. Mas com essa pandemia tudo encolheu nestes processos, ampliando-se assustadoramente as necessidades de proteção e emergência, com isso o crescente número de famílias desinstaladas de suas casas por perdas de trabalhos e acabam indo para as ruas.
Atualmente, a OIM fez um levantamento do trânsito dos migrantes em Boa Vista (RR), e embora a fonte tenha utilizado uma metodologia bastante confiável e séria, trata-te apenas de uma estimativa. Mas serve de balizamento para dois elementos importantes: primeiro para entendermos a gravidade dos fatos, segundo para sabermos que essa realidade cresce a cada semana. Vejamos:
Em meio à pandemia, chamamos atenção para as ações desenvolvidas pelo conjunto da sociedade, a exemplo de campanhas e debates que produz informações confiáveis e sérias que se contrapõe ao discurso das fake news e aos insanos propagadores da morte de pessoas pela riqueza do capital.
Devemos salientar que essa luta é constante e apesar da barbárie, não se deve abandonar os seus e os nossos, porque somos humanidades. Ao contrário disso, precisamos nos manter firmes à conscientização a partir dos grupos de base, ajudando os refugiados a se manterem protegidos contra o vírus.
Neste cenário, também chamamos a atenção para um público que requer muito cuidado que são as crianças. Estas estão em número cada vez mais crescente nas ruas das grandes cidades, como São Paulo e outras capitais, de forma especial as crianças migrantes e refugiadas desacompanhadas. Vale ressaltar que em Manaus e Roraima muitas destas crianças vivem em péssimas condições há muito tempo, e que nesse contexto a pandemia do COVID-19 representa uma ameaça adicional ao seu bem-estar.
Nós que compomos as redes de proteção, das pastorais sociais e organizações da sociedade civil, sempre estivemos preocupados e empenhados para que os governos em suas respectivas instâncias honrem seus compromissos com essa proteção e mantenham os projetos em andamento, apoiando outros projetos que venham dar suporte a esse atendimento, já que o Estado, sozinho, não tem sido capaz de atender toda essa demanda.
Diante disso, o risco de uma redução da ação humanitária pode vir a deixar os refugiados no esquecimento e privados do apoio emergencial que necessitam. Cientes dessa realidade, várias instituições católicas, desde à Secção para Migrantes e Refugiados do Dicastério para o Desenvolvimento Humano na Santa Sé, à CNBB, seus organismos e pastorais, estão em esforço conjunto para lhes garantir uma assistência imediata, que vai desde a entrega de alimentos, água e produtos de higiene até à proteção de trabalhadores irregulares e povos indígenas, contribuindo assim com as pessoas vulneráveis, direta ou indiretamente afetadas pela pandemia.
Não satisfeito, apenas com as campanhas, o Papa Francisco, que já vinha preocupado com o modelo econômico mundial, e que já se propunha a ser uma liderança que quer repensar a vida projetando um futuro sustentável, tem refletido profundamente proposições concretas onde define como diretrizes um agir agora pensando o futuro; um olhar para o futuro com criatividade e a exigência evangélica de comunicar esperança e de buscar dialogo e reflexão comum, para sairmos ao encontro de caminhos sustentáveis.
Para a Secção Migrantes e Refugiados “A pandemia não deve levar à interrupção de projetos em andamento para ajudar migrantes, refugiados, pessoas deslocadas internamente e vítimas de tráfico, sob pena de comprometer os progressos alcançados e de gerar uma percepção de abandono das pessoas assistidas.”
Dom
Pedro Casaldáliga, em uma de suas proféticas pregações, concluiu dizendo que a esperança
não é a ultima que morre, isso é coisa do mercado, mas a esperança é a única
que nunca morre, porque é inspirada na ressurreição.
E padre Alfredino, já
mencionado nesse texto, ao falar de migração e pandemia, diz que os migrantes: “A exemplo das aves, para onde se deslocam
levam consigo as sementes do Reino que existem no coração de cada ser humano e
de cada cultura, como lembra J. B. Scalabrini, ‘pai e apóstolo dos migrantes’.
Contribuem para o surgimento de novos povos, valores e civilizações. O simples
fato de migrar, por um lado, denuncia as condições adversas nos países de
origem, ao mesmo tempo que, por outro, anuncia a necessidade urgente de
mudanças estruturais tanto nos países de saída e chegada quanto nas relações
internacionais. Quando se põe em marcha, o migrante faz marchar os movimentos
sociais, as instâncias da Igreja, os órgãos governamentais, as entidades da
sociedade civil, as organizações não governamentais. À medida que se move, o
migrante move a própria história, abrindo horizontes para novas alternativas”.
[1] Sacerdote Scalabriniano e vice presidente do Serviço Pastoral dos Migrantes – SPM.
[2] Refere-se ao medo, rejeição, hostilidade e aversão às pessoas pobres e à pobreza.