Por Paulo Victor Melo | Especial para o JSB
Em 22 de maio é celebrado o Dia Internacional da Biodiversidade. Um dos temas fundamentais na perspectiva de preservação da biodiversidade e de garantia da justiça socioambiental diz respeito à desertificação.
Estimativas recentes do Laboratório de Análise e Processamento de Imagens e Satélites, da Universidade Federal de Alagoas, apontam que quase 13% do semiárido brasileiro enfrenta o processo de desertificação.
Este cenário é ainda mais preocupante quando observados números do Ministério do Meio Ambiente que demonstram que as áreas “suscetíveis à desertificação” representam 16% do território brasileiro, distribuídas nos nove estados do Nordeste, além do Espírito Santo e Minas Gerais, atingindo 85% das pessoas mais pobres do país.
Para compreendermos a relação entre desertificação, biodiversidade e justiça socioambiental, apresentamos dois questionamentos a um especialista no tema, o cientista social Ivo Poletto, que é integrante do Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Social (FMCJS).
Quais os principais desafios do Brasil nesse tema da desertificação no sentido de preservação da biodiversidade e garantia da justiça socioambiental?
Muitos e complexos desafios. Limitar-me-ei aos que considero mais significativos.
O primeiro, e talvez o maior, é a naturalização dos processos de desertificação. Considera-se natural que haja desgaste dos solos, aceito como custo inevitável do progresso nas formas de produzir o que se imagina necessário para a alimentação humana.
A propaganda feita pelos proprietários e os aliados do agronegócio reforça essa visão. A produção em imensas monoculturas, com uso de máquinas e produtos químicos, ganha status de algo moderno, superior à agricultura tradicional pelo uso de tecnologias, e necessário pela quantidade da sua produção. A agressiva e delicada propaganda do “agro é tudo”, veiculada na Globo, cumpre com eficácia o objetivo de apresentar como iguais os alimentos do cultivo agroecológico e os da agricultura química e industrial. Torna-se voz corrente a afirmação de que já não haveria condição de produzir alimentos na quantidade exigida sem o uso liberado de agroquímicos e sem a derrubada de mais florestas, aumentando a quantidade de terra para a pecuária e a agricultura de exportação.
Quem seria responsável, então, pelo aumento de áreas em processo de desertificação? A resposta corrente é de que seria a própria natureza e a quantidade crescente de bocas para alimentar, no país e no mundo. Os seres humanos não entrariam ou entram superficialmente na conta dessa responsabilidade.
Essa não é, contudo, a verdade da história da desertificação. Ela foi e continua sendo provocada por práticas humanas. Nada é natural. Por exemplo, o sistema de produção agroindustrial foi formulado por grupos de interesse, em que participaram indústrias que desejavam a continuidade de aproveitamento das tecnologias que haviam desenvolvido para as duas grandes guerras do século XX, e não havia desconhecimento das consequências de despejar sobre os solos produtos químicos cada vez mais agressivos à vida, e nem dos efeitos na saúde de quem se alimentasse com os grãos resultantes do processo produtivo. E os investimentos na denominada “melhoria” e, depois, na modificação genética das sementes, tinham tudo a ver com o desejo de monopolização do negócio de grãos em todo o planeta por poucos grupos econômicos e países.
Uma vez tornado hegemônico esse modelo, a ocupação de novas áreas se deu numa velocidade incrível. A derrubada da floresta e retirada da cobertura vegetal do Cerrado, por exemplo, aconteceu praticamente em 30 anos. E é o mesmo movimento que está avançando no desmatamento e ocupação da Amazônia – processos muito mais rápidos do que a derrubada da Mata Atlântica, em que sobra 7% da cobertura vegetal original, e mesmo da Caatinga, que tem tudo a ver com a situação de região semiárida que conhecemos hoje.
E como avançar num projeto de país em que a justiça socioambiental seja garantida e em que a preservação da biodiversidade seja uma prioridade?
Vou destacar apenas três caminhos.
O primeiro é desenvolver uma consciência e uma cultura de convivência com cada um dos sete biomas existentes no Brasil, nas áreas rurais e urbanas. Cada bioma é um berço vivo e fonte de vida. A existência da biodiversidade criada pela Terra, em sua longa história, se dá de forma diferente em cada bioma, já que o clima, o regime de chuvas, os solos, a cobertura vegetal, as águas na superfície e no subsolo, os seres vivos das águas, do solo e dos ecossistemas locais, são característicos daquele bioma. E os próprios povos que neles vivem desenvolvem conhecimentos, modos de ser e de agir, hábitos culturais e espirituais influenciados pelas condições de vida que o berço criado pela Mãe Terra apresenta.
Isso é impossível de ser alcançado com o regime de propriedade sem limites e defendida como algo sagrado na legislação. O sistema de produção agroindustrial manteve e agravou o sistema de latifúndios implantado desde o início da colonização europeia. Será necessária a mudança não apenas na legislação, e sim na democratização do acesso à terra. Com isso, haverá condições de ser tornar hegemônica a forma agroecológica de cultivar os solos, em áreas individuais ou coletivas cuidadas com carinho, com diálogo entre florestas e áreas cultivadas, valorizando a diversidade e não as monoculturas.
Por fim, é absolutamente necessário desenvolver um processo reeducativo das relações dos seres humanos com a Mãe Terra. Isso demanda um processo de crítica da cultura ocidental dominante entre nós, que tem como um de seus fundamentos a separação entre a razão humana e a natureza, vista apenas matéria, a ser dominada e colocado a serviço dos seres humanos com o uso da ciência. Essa separação, instrumentalizada e radicalizada pelo capitalismo, nos levou à destruição das condições de vida em que nos encontramos. Essa reeducação deverá religar as pessoas, comunidades e povos com seus biomas, dialogando e convivendo com toda a diversidade de seres vivos. Ela nos levará a evitar a adaptação ao que foi destruído, e nos levará a recriar florestas, a recuperar nascentes, a cuidar de córregos e rios, a produzir energia através de relações locais com o sol, os ventos, a biomassa.