O manifesto liderado pelo Grupo Carta de Belém foi assinado por 89 organizações da sociedade civil, entre elas o Jubileu Sul Brasil. Às vésperas da COP-26 o documento alerta que o mercado de créditos de carbono se transformou numa falsa solução à crise climática mundial.
No manifesto divulgado pelo Grupo Carta de Belém nesta segunda-feira (18), as organizações que assinam afirmam: “Mercado de carbono é licença de poluição”. O documento também denuncia o desmonte dos mecanismos institucionais de preservação do meio ambiente no Brasil, que tem levado a sucessivos recordes de desmatamento e queimadas em todo o país, além do aumento da violência no campo.
Leia o manifesta na íntegra:
Em nome do clima, avança a espoliação dos territórios
A 26ª. Conferência das Partes/COP-26 da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climática/UNFCCC será realizada no início de novembro de 2021, em Glasgow, no Reino Unido.
Essa COP ocorrerá quando o mundo já vive os efeitos da emergência climática. A grande expectativa para Glasgow é a finalização do Livro de Regras do Acordo de Paris. Firmado em 2015, o Acordo aguarda a decisão sobre o famoso ‘Artigo 6’. Este artigo irá regular o papel dos mercados de carbono – e de transações envolvendo ‘resultados de mitigação’ – para atingir os objetivos de estabilização da temperatura do planeta.
No Brasil, os efeitos desta crise se somam às consequências socioambientais resultantes dos ataques aos direitos socioterritoriais de povos indígenas, povos e comunidades tradicionais e agricultores familiares e camponeses. Assim como nas cidades, e principalmente nas periferias urbanas, com o povo empobrecido em regiões com infraestruturas precárias e sujeitas a eventos extremos, somada ao fim de políticas públicas de combate à fome, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). O desmonte da institucionalidade ambiental é notório, levando a recordes sucessivos de desmatamento e queimadas nos biomas brasileiros. A violência no campo e na floresta é também uma das maiores das últimas décadas.
Para salvar o clima, a obsessão nos mercados de carbono
Apesar dos fracassos dos mecanismos de mercados em produzir reduções reais de emissões em todo mundo, estes seguem sendo promovidos como a grande aposta estrutural para viabilizar a descarbonização e o objetivo de neutralidade climática.
Há duas décadas, a aposta nos mercados de carbono e nos mecanismos de compensação (offset) vêm sendo duramente criticadas pela sociedade civil como falsa solução à crise climática, assim como pelos impactos causados nos territórios do Sul Global que são submetidos à condição de sumidouros de carbono.
O atual contexto da Amazônia brasileira exige especial atenção pela paralisação das demarcações de Terras Indígenas e pela invasão de territórios de comunidades tradicionais, em especial, áreas de uso comum e territórios coletivos. Além disso, incêndios florestais se intensificam desde 2019, colocando em risco de desertificação regiões ecológicas como a Amazônia, Pantanal e Cerrado brasileiro.
Mercado de carbono é licença de poluição. Por isso, entre os efeitos da sua implementação estão a expansão de atividades destrutivas nos campos da mineração, do extrativismo em escala industrial e queima de combustíveis fósseis (que podem ser compensadas/neutralizadas em outro lugar). No Brasil, tal racionalidade encontra-se refletida nos programas Adote um Parque e Floresta+ Carbono.
Portanto, considerando que essa COP-26 conta com as piores condições para a participação democrática na história das negociações climáticas, apoiamos a posição de ampla coalizão da sociedade civil que demanda o seu adiamento, até que se apresentem condições mais equânimes de participação.
Governança ambiental global e retomada verde pós-COVID: corporações e finanças no centro
Na nossa avaliação, esta não será apenas mais uma COP. A COP-26 pretende dar um passo definitivo para cristalizar a complexa arquitetura de governança ambiental global que vem sendo negociada há anos.
O último relatório do IPCC reforçou o tom da emergência climática e há urgência para um horizonte de recuperação econômica global e retomada verde (Green Deal) pós-Covid, no qual a dinâmica motriz do novo ciclo econômico é guiada pelas estratégias combinadas de descarbonização e transformação digital da economia.
À arquitetura do clima se soma a Convenção de Diversidade Biológica (COP 16), que será realizada em Kunming, China, em abril/maio de 2022. Na ocasião, os países irão decidir sobre o Marco Global para Biodiversidade pós-2020, por meio de um plano estratégico até 2030, que conta com o objetivo de ampliar para 30% a superfície terrestre e marinha sob o regime de áreas protegidas/unidades de conservação.
Além disso, vem ganhando tração a problemática e muito criticada agenda movida pelas corporações. Trata-se da Cúpula dos Sistemas Alimentares, que foi organizada no âmbito das Nações Unidas e vem promovendo verdadeira transformação da governança dos sistemas alimentares globais.
Neste mesmo caminho vêm as propostas de Soluções Baseadas na Natureza (NbS, na sigla em inglês). Estas incluem, entre outros, a promoção de monoculturas de eucaliptos, agrocombustíveis e a aposta em transformar a agricultura numa grande oportunidade de mitigação em escala associada ao mercado de carbono de solos.
É nosso entendimento que as NbS fazem com que as ações de mitigação passem a depender prioritariamente do acesso e o controle da terra, em um contexto no qual os mecanismos de governança territorial públicos estão cedendo lugar a lógicas privadas e privatizantes que acirram os conflitos de terra e a violência. A principal ameaça em curso contra territórios coletivos se dá através da implementação do Cadastro Ambiental Rural (CAR), que vem promovendo e consolidando a grilagem digital de terras.
Neste cenário, vemos, ainda, atores como o FMI e Banco Mundial, com propostas de troca de dívida por ação climática (debt for climate/debt for nature swap). Note-se que dívidas privadas são garantidas pelos tesouros nacionais, gerando, assim, endividamento público.
Consequentemente, aprofundam desigualdades sociais e geram transferências massivas de renda dos pobres para os já muito ricos. Ambos os organismos se movimentam para apoiar a nova engenharia financeira que se diz ser necessária para viabilizar um novo pacto social verde (Green Deal), no qual programas de retomada e recuperação passam, entre outras coisas, pela emissão dos títulos verdes (green bonds). Dessa maneira, a terra e outros “ativos” ambientais (carbono, biodiversidade, etc) são transformados em garantias para títulos que são negociados no mercado financeiro.
Por que dizemos não à espoliação em nome do clima?
“Em nome do clima”, uma série de agendas e mecanismos atendem aos interesses de atores nacionais e internacionais e vêm causando impactos avassaladores na expropriação e espoliação de territórios, apropriação de recursos naturais, na violência real e simbólica sobre populações e modos de vida.
Ao mesmo tempo, a expansão do complexo agroindustrial brasileiro e as infraestruturas logísticas a ele associadas colocam na linha de frente os corpos e os territórios (físicos ou imaginados) de povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, extrativistas, povos e comunidades tradicionais, camponeses e agricultores familiares, de todos os biomas do Brasil.
Diante deste cenário e considerando o que a COP-26 representa na consolidação do regime de governança climática internacional, nós, organizações da sociedade civil brasileira, movimentos sociais, sindicatos, entidades, fóruns, articulações e redes, ativistas, pesquisadores reunidos no Grupo Carta de Belém e demais organizações signatárias deste manifesto, vimos diante do público nacional e internacional afirmar que:
● O debate sobre o clima é irredutível a questões técnicas ou a novas oportunidades de financiamento: insere-se na organização da sociedade; nas relações de poder, econômicas e políticas; contextos históricos; relações de classe e em correlações de forças;
● Os mecanismos de mercado criados para a redução das emissões de gases de efeito estufa, representam um processo histórico de reconfiguração das formas de acumulação e promovem nova reengenharia global da economia em nome do clima.
● Somos contrários à introdução das florestas, ecossistemas e da agricultura em mecanismos de mercado de carbono e rechaçamos a promoção de instrumentos do mercado financeiro como meio prioritário para financiar a ação climática dos países.
● Denunciamos que o conceito muito popularizado de emissões líquidas zero (Net-zero) encobre mecanismos de compensação (offset) que perpetuam injustiças e atentam contra a integridade ambiental;
● Rechaçamos as novas dinâmicas de espoliação promovidas sob a alcunha de Soluções Baseadas na Natureza que criam novas cercas aos espaços de vida, reduzindo a “natureza” à prestadora de serviços para o proveito de empresas e mercados.
Por isso,
● Enfatizamos a defesa de um projeto político para a Amazônia, construído para e com os povos amazônidas, respeitando os seus modos de vida, criar e fazer.
● Afirmamos que soluções efetivas para redução das emissões dos gases de efeito estufa residem na demarcação de terras indígenas e quilombolas; e na defesa das terras coletivas e dos direitos territoriais;
● Defendemos o protagonismo dos povos indígenas, comunidades tradicionais, agricultores familiares e camponeses/as para a conservação dos territórios, da biodiversidade e dos bens comuns;
● Trabalhamos para o fortalecimento de iniciativas agroecológicas, que contribuem para a conservação da sociobiodiversidade, encurtamento dos circuitos de comercialização e a soberania alimentar.
● Consideramos que é preciso discutir amplamente o caminho para uma Transição Justa e Popular, conforme a qual uma economia mais integrada e consciente dos limites da natureza não acirre a já dramática situação de desemprego e restrição da renda de famílias da classe trabalhadora;
Por fim, denunciamos o governo genocida de Jair Bolsonaro e questionamos a quem interessa fazer do Brasil um pária internacional, financiando e fortalecendo a destruição de conquistas históricas do Estado brasileiro e seu papel protagonista ao longo de décadas de negociação internacional.
Resistimos e somos contra à transformação da natureza em capital natural e à financeirização e privatização da natureza e dos bens comuns!
Continuaremos em luta, construindo e afirmando alternativas, defendendo nossos modos de vida!
Assinam:
1 Grupo Carta de Belém
2 Central Única dos Trabalhadores (CUT)
3 Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (CONTAG)
4 Conselho Nacional das Populações Extrativista (CNS)
5 Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB)
6 Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ)
7 Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)
8 Marcha Mundial das Mulheres (MMM)
9 Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB)
10 Movimento de Mulheres Camponesas (MMC)
11 Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA)
12 Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP)
13 Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST)
14 Abong – Associação Brasileira de ONGs
15 Ágora de Habitantes da Terra (AHT-Brasil)
16 Aliança RECOs – Redes de Cooperação Comunitária Sem Fronteiras
17 Alternativas para pequena agricultura no Tocantins (APA-TO)
18 Amigos da Terra Brasil (ATBr)
19 Articulação Agro é Fogo (AéF)
20 Articulação de Mulheres Brasileiras Jaú-SP (AMB)
21 Coletivo Raízes do Baobá Jaú-SP
22 Articulação de mulheres do Amapá (AMA)
23 Articulação Nacional de Agroecologia (ANA)
24 Articulação Pacari Raizeiras do Cerrado (Pacari)
25 Articulação PomerBR
26 Articulação Semiárido Brasileiro (ASA)
27 AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia
28 Assessoria e Gestão em Estudos da Natureza, Desenvolvimento Humano e Ageoecologia (AGENDHA)
29 Associação Agroecológica Tijupá (Tijupá)
30 Associacao de Favelas de São José dos Campos SP (Afsjc)
31 Associação de mulheres agricultoras (AMACAMPO)
32 Associação Maranhense para a Conservação da Natureza (AMAVIDA)
33 Associação Mundial de Comunicação Comunitária – Brasil (AMARC BRASIL)
34 Associação Solidariedade Libertadora área de Codó (ASSOLIB)
35 Campanha Antipetroleira Nem um poço a mais!
36 Cáritas Brasileira (CB)
37 CDDH Dom Tomás Balduíno de MARAPÉ ES
38 Centro Dandara de Promotoras Legais Populares
39 Centro de Apoio a Projetos de Ação Comunitária (Ceapac)
40 Centro de Apoio e Promoção da Agroecologia (CAPA)
41 Centro de Atividades Culturais Econômicas e Sociais (CACES)
42 Centro de Desenvolvimento Agroecológico Sabiá (Centro Sabiá)
43 Centro de Promoção da Cidadania e Defesa dos Direitos Humanos Padre Josimo (CPCDDHPJ)
44 Centro Ecológico (CAE Ipê)
45 Comissão Pastoral da Terra (CPT)
46 Comitê de Energia Renovável do Semiárido (CERSA)
47 Comitê dos Povos e Comunidades Tradicionais do Pampa (CPCTP)
48 Conselho Indigenista Missionário (CIMI)
49 Conselho de Missão entre Povos Indígenas (COMIN)
50 Conselho Nacional de Ssgurança Alimentar e Nutricional (CONSEA -AM)
51 Coordenadoria Ecumênicade Serviço (CESE)
52 Defensores do planeta (DP)
53 Federação de Estudantes de Agronomia do Brasil (FEAB)
54 Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE)
55 Fundação Luterana de Diaconia (FLD)
56 Federação dos trabalhadores rurais agricultores e agricultoras familiares do estado do Pará (FETAGRI-PA)
57 Fórum da Amazônia Oriental (FAOR)
58 Fórum de mulheres do Araripe (FMA)
59 Fórum Mato-grossense de Meio Ambiente e Desenvolvimento (Formad)
60 Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Socioambiental (FMCJS)
61 Fotógrafos pela democracia (FPD)
62 Fundo Dema
63 Greenpeace Brasil (GPBR)
64 Grupo de Estudos em Educação e Meio Ambiente do Rio de Janeiro (GEEMA)
65 Grupo de Estudos, Pesquisa e Extensão sobre Estado e Territórios na Fronteira Amazônica (GEPE-Front)
66 Grupo de Estudos: Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente (GEDMMA)
67 Instituto Brasileiro de Analises Sociais e Economicas (Ibase)
68 Instituto de Estudos da Complexidade (IEC)
69 Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc)
70 Instituto Equit – Gênero, Economía e Cidadania global (I.EQUIT)
71 IYALETA Pesquisa, Ciência e Humanidades
72 Justiça nos Trilhos
73 Memorial Chico Mendes (MCM)
74 Movimento brasileiro de Mulheres cegas e com baixa visão (MBMC)
75 Movimento Ciencia Cidadã (MCC)
76 Movimento Mulheres pela P@Z!
77 Núcleo de Agroecologia e Educação do Campo/UEG (GWATÁ)
78 Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político
79 Rede Brasileira Pela Integração dos Povos (REBRIP)
80 Rede de Agroecologia do Maranhão (Rama)
81 Rede de Educação Ambiental do Rio de Janeiro (REARJ)
82 Rede de Educação Ambiental e Políticas Públicas (REAPOP)
83 Rede de Mulheres Ambientalistas da América Latina – Elo Brasil (Red Mujeres)
84 Rede Feminista de Saude, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos
85 Rede Jubileu Sul Brasil
86 Sempreviva Organização Feminista (SOF)
87 Sindicato dos Docentes da UNIFESSPA (SINDUNIFESSPA)
88 Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ)
89 Terra de Direitos