Por Amigos da Terra Brasil / Fotos Douglas Freitas
Fraport, empresa responsável pela obra do aeroporto Salgado Filho, recusou-se a sentar à mesa de debate e não respondeu a nenhum questionamento das famílias da Vila Nazaré
As respostas não vieram, é verdade – elas raramente vêm. Contudo, a noite de quarta-feira, 23/5, serviu para mostrar a força que a mobilização das famílias da Vila Nazaré possui: o salão da Escola Ana Nery esteve completamente lotado durante a audiência pública que debateu a remoção da comunidade devido às obras do aeroporto Salgado Filho. A prefeitura de Porto Alegre, representada pelo diretor-geral do Demhab (Departamento Municipal de Habitação), Mário Marchezan, viu-se obrigada a ouvir os questionamentos de moradoras e moradores que, em um processo sem nenhuma transparência e recheado de ameaças e medo, são empurrados para fora do território onde há mais de 60 anos enraizaram suas vidas.
A Fraport, empresa alemã operadora do aeroporto e responsável pela obra, esteve presente na audiência, mas se negou a dialogar: não sentou à mesa e nem respondeu a qualquer dúvida das famílias. Saíram mais cedo do encontro, talvez assustados com a mobilização popular.
Entre as autoridades, falaram também representantes do Ministério Público Federal, da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul e da Caixa Econômica Federal. Todos defenderam o diálogo, em crítica à atitude da Fraport e da prefeitura de Porto Alegre, que não cumpriu promessas feitas em negociações prévias que ocorreram no âmbito do Ministério Público Estadual, em especial no que diz respeito ao cadastramento de moradores da Nazaré. O processo está sendo feito por outra empresa privada contratada pela Fraport, a Itazi (que, em seu site, orgulha-se da “agilidade e técnica que consegue impor ao processo expropriatório”).
Em meio a diversos constrangimentos, fotos, medições, perguntas descabidas e estigmatizadoras, como em relação a antecedentes criminais e outros questionamentos socioeconômicos, as famílias ainda foram convocadas pelo Demhab a outro cadastro, no qual deveriam assinar termos dos quais sequer recebiam recibo e com pouquíssimas informações sobre a finalidade dos documentos. Na audiência, Mário Marchezan avisou que este “dossiê” montado pela prefeitura era voltado apenas a quem seria realocado no loteamento Nosso Senhor do Bom Fim, um dos locais pretendidos pela prefeitura para levar os moradores. Sobre o outro destino, mais ao norte, o loteamento Irmãos Marista-Timbaúva, a comunidade deu o seu recado: não vai para lá de jeito nenhum. Afastado e perigoso, o local tem péssima estrutura de atendimento básico, como escolas, hospitais e transporte público.
A promessa repetida é que ninguém será removido para um local que não deseja ir. Timbaúva não!, exigiu claramente a comunidade. Contudo, novas alternativas não foram dadas e segue a principal e mais grave dúvida: se não no Timbaúva, onde vamos morar? A Fraport insiste para que as remoções ocorram até dezembro de 2018, quando quer passar o trator por cima da Vila Nazaré, pressionando uma situação que está longe de se resolver, ainda mais se dependermos da iniciativa da prefeitura de Nelson Marchezan Jr., do PSDB, que outra vez esteve ausente do debate. Os moradores relatam que a última vez que o prefeito de Porto Alegre foi visto próximo à Vila Nazaré foi em meados de 2016, quando soltava promessas ao vento em uma hollywoodiana campanha eleitoral.
O rastro de destruição da Fraport se espalha e, na mesma medida, ou em medida ainda maior, cresce a luta, a resistência e a construção de alternativas populares de desenvolvimento para a região.
Há, no entanto, alternativas ao projeto da Fraport, e elas vieram à tona ao longo da audiência pública. O MPF se responsabilizou por fazer um levantamento sobre a propriedade das áreas circunvizinhas; Fernanda Melchiona, vereadora do PSOL, verbalizou a ideia: urbanizar a região próxima e construir casas ali mesmo, evitando que a comunidade seja dividida e perca suas raízes. Terrenos no entorno não faltariam para isso – o que faz questionar a própria obra da maneira como está pensada atualmente, perguntas que repercutem ainda mais com a falta de transparência por parte da Fraport: a empresa protocolou um projeto nos órgãos específicos para liberar a obra e trouxe outro à mesa de negociação do Ministério Público Estadual. Qual projeto vale? A pista de pouso precisa mesmo se direcionar à vila? Até onde ela vai? Que casas seriam afetadas de fato? Pontos que deveriam estar extremamente visíveis e límpidos em uma proposta que pretende desabrigar 2.100 famílias, mas que, frente à intransigência da Fraport e da prefeitura de Porto Alegre, seguem em aberto, poucos meses antes do suposto prazo para que as obras comecem.
Não longe dali, a ocupação Povo Sem Medo Porto Alegre, do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), é prova do espaço útil que há na região. Também vizinho e amassado pela Fraport, de um lado, e pelo Wallmart, de outro, está o Quilombo dos Machado, que resiste ao frequente ataque das corporações e defende seu território tradicional. O rastro de destruição da Fraport se espalha e, na mesma medida, ou em medida ainda maior, cresce a luta, a resistência e a construção de alternativas populares de desenvolvimento para a região.
Em uma noite histórica em que a Vila Nazaré se ergueu unida em defesa de seus direitos, espera-se que enfim as autoridades, públicas ou privadas, tenham entendido a dimensão de seus atos: expor as pessoas em um processo de cadastramento estigmatizador que as trata como números; tirar as famílias de seus lares; dividi-las em diferentes pontos da cidade, sempre mais distantes e esquecidas; não dar respostas satisfatórias sobre suas intenções, promovendo o medo e a ansiedade dentro da comunidade; nada disso jamais poderá ser feito sem que se ouça aquelas e aqueles diretamente atingidos: a voz que importa mais é a da comunidade da Vila Nazaré, que ontem, unida, ressoou alto e só não ouviu quem não quis (ou se retirou mais cedo da audiência, como os representantes da Fraport).
Com o microfone aberto, outra grave denúncia feita foi sobre a atuação policial: escoltando funcionários da Itazi, a presença policial é intimidadora e violenta, o que torna o cadastramento um processo ainda mais questionável. Relatos de ameaças são frequentes: a violência é física e simbólica. Como que para comprovar suas operações intimidatórias, durante a audiência um dos soldados presentes filmava e fotografava aquelas e aqueles que se manifestavam em defesa de seu território. Ao ser descoberto, foi questionado por Pedro Ruas, deputado estadual do PSOL que presidiu a sessão, e a resposta, no que só podemos tomar como ironia e piada de mau gosto, foi que o soldado era parte da equipe de Comunicação Social da corporação, e por isso fotografava o rosto de quem criticava o projeto da Fraport.
Horas mais tarde, a lua alta no céu fazendo jus a uma noite de bonita mobilização popular, a audiência foi encerrada, ainda sem que se tenha respostas concretas; a luta, por isso, não para: nesta sexta-feira (25) uma nova reunião se dará no Ministério Público Estadual. Estarão presentes a Amovin (Associação dos Moradores da Vila Nazaré); o MTST; a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do RS; e a prefeitura de Porto Alegre. A Fraport e a sua subcontratada, a Itazi, estão convidadas, mas, frente à falta de vontade ao diálogo demonstrada ontem, não têm presença garantida.
Já no dia 28/5, às 13h30min, será feito o lançamento do livro “Empresas alemãs no Brasil: o 7×1 na economia”, organizado pela Fundação Rosa Luxemburgo. O encontro é promovido pela Amigos da Terra Brasil e pretende aprofundar o debate sobre a atuação das transnacionais no Brasil, as violações de direitos que cometem e, claro, maneiras de enfrentá-las, seja pela via jurídica, com a construção de um tribunal internacional dos povos, seja pela via da resiliência e da resistência, com o caso concreto das violações cometidas pela Fraport em Porto Alegre: participarão do encontro, que será no auditória da Faculdade de Ciência Econômicas da UFRGS, a Amovin, o MTST e a Frente Quilombola, além de Rosa Luxemburgo e Amigos da Terra.
Há ainda uma articulação traçada entre Amigos da Terra Brasil e Amigos da Terra Alemanha (Bund), que envolve outras organizações alemãs como a KoBra (Kooperation Brasilien), que pressiona a Fraport internacionalmente, inclusive em território alemão. Uma contra-moção da Nazaré já teve que ser publicada no site da Fraport (em alemão). Na semana passada, em encontro entre autoridades e fundações alemãs no Brasil, o tema foi levantado e constrangeu parlamentares e o ministro da Justiça da Alemanha, que não tinham informações sobre o caso. A embaixada alemã em Brasília irá consultar o consulado em Porto Alegre em busca de esclarecimentos.
Com o cerco internacional, restará à Fraport aprender os bons modos, sentar-se à mesa, ouvir e dialogar. Caso contrário, terão que se acostumar com o já corriqueiro grito: não passarão.