1- O caminho da integração latino-americana
As ideias de integração em nossa região estão presentes desde o momento em que começam os processos de lutas pela independência contra o colonialismo espanhol. Francisco de Miranda, Bernardo O’Higgins, José Gervasio Artigas, José de San Martín, Simón Bolívar, Tupac Amaru, Jean-Jacques Dessalines e Francisco Morazan, entre outros, perceberam que a luta pela independência estava ligada à integração dos nossos países.
Na Carta de Jamaica, escrita por Bolívar em 6 de Setembro de 1815, consta suas impressões sobre o que aconteceu no continente como uma avaliação da situação a partir da chegada dos colonizadores europeus até os eventos que justificam os esforços dos patriotas e sua luta pela independência, mas também da necessária unicidade dos países. A união das nações da América Latina e do Caribe, para Bolívar, era um desafio maior que a independência. Por conseguinte, sentenciava: “Certamente, a união é o que está faltando para completar o nosso trabalho de regeneração”. Outros documentos e proclamações, assim como as declarações de Independência das colônias hispano-americanas, compilam a visão de construção conjunta desses países e seus povos, e também nações originárias, separadas artificialmente pelos impérios espanhol, português e britânico que as ocupavam.
O objetivo era unir-se para lutar pela independência contra o colonialismo, construir nações soberanas e estabelecer instrumentos políticos e econômicos que permitissem prosperar política, cultural e economicamente. Isto se reflete nas constituições dos países que declararam a independência desde a primeira década do século XVIII. Esse foi o sentido do Congresso Anfictiônico do Panamá, ocorrido em junho de 1826, para promover uma Confederação de Repúblicas e contribuir pela independência de Cuba e Porto Rico, sabotada pelos Estados Unidos. Demorou anos para que os ideais de integração fossem retomados por José Martí e Eloy Alfaro propondo uma integração de conteúdo anti-imperialista, que era necessária para proteger a região dos interesses de dominação dos EUA. Martí defendeu uma integração construída a partir das próprias forças, sem estar sujeito a impérios. Depois de Sandino, Farabundo, Martí e outros patriotas da América Central, ao enfrentar a estratégia de ocupação e despojo dessa região pelo império dos EUA, promoveram a ideia de identidade latino-americana contra o pan-americanismo fomentado pela imposição da Doutrina Monroe de 1823.
Os esforços integracionistas tiveram duas constantes na oposição. Por um lado, as estratégias de ingerências das forças imperialista espanholas, portuguesas, inglesas e norte-americanas, por seu nível de influência nas colônias e poder de dominação internacional em cada período histórico. Por outro, as forças oligárquicas nacionais, normalmente associadas com as potências colonialistas e imperialistas, beneficiárias das formas de dominação econômica, social, política e cultural, desde as fases de conquista e colonização. Essas forças opostas têm atuado em conjunto em momentos diferentes para dificultar as possibilidades de uma integração latino-americana e caribenha de caráter autônomo e soberano.
Na histórica dinâmica da região, foram muitas as tentativas e processos institucionais pelos governos para criar mecanismos de integração por meio de tratados e instituições que impulsionaram essas ideias. Embora aprovados, vários desses tratados e mecanismos de união entre as nações não se tornaram realidade, porque na maioria dos países as forças conservadoras agiram para interferi-los ou porque a instabilidade política e a situação econômica existentes obrigaram os governos a se concentrar na solução dos problemas internos.
A integração latino-americana tem sido sempre uma prioridade contemplada pelos movimentos sociais e políticos no processo de construção de nossas identidades, vivida desde as lutas pela independência.
2- Uma grande experiência de Integração.
Foi a partir da segunda metade do século XX que começam a surgir um número significativo de esforços organizacionais para a integração dos nossos países (organizações regionais, associações, blocos comerciais, etc.). A Comunidade do Caribe (CARICOM), estabelecida desde 1973; a Associação Latino-Americana de Integração (ALADI), de 1980; o Pacto Andino, criado em 1969, depois transformado em Comunidade Andina de Nações (CAN), desde 1996; o Sistema de Integração Centro-Americano (SICA), criado em fevereiro de 1993 e o nascimento em 1991 do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL), são alguns exemplos.
Mais recentemente, as mudanças no território político favoráveis à expansão da democracia e participação popular, bem como a políticas de redistribuição para reduzir a pobreza e a desigualdade, conduziram também à criação de novas organizações regionais. Eles expressam a preocupação por uma região mais integrada para o desenvolvimento de novas relações comerciais entre os países. De lá, também se deparam com visões comuns para a defesa das soberanias.
Em 2001, Chávez e Fidel criaram a Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América (ALBA) para construir unicidade na América Latina e no Caribe, e incentivaram acordos econômicos, políticos, culturais e sociais, sobre princípios de complementaridade, solidariedade, equidade, igualdade e internacionalismo.
Em julho de 2008 surgiu a UNASUL, como uma união de nações que basicamente compõem o Mercosul e a Comunidade Andina (CAN). Em seus documentos constitutivos se pondera como objetivos, construir de forma participativa e consensual um espaço de integração e união a nível cultural, social, econômico e político entre seus povos. Deste modo, priorizando o diálogo político, as políticas sociais, a educação, a energia, a infraestrutura, o financiamento e o meio ambiente, com vista a eliminar a desigualdade socioeconômica, alcançar a inclusão social e a participação cidadã, fortalecer a democracia e reduzir as assimetrias no âmbito do fortalecimento da soberania e independência dos Estados.1
Finalmente, em 23 de fevereiro de 2010 ocorreu a criação da CELAC, Comunidade de Estados Latino-Americanos e do Caribe, composta por 33 países das Américas, excluindo os EUA e Canadá. Pela primeira vez esses países se reuniram fora do ministério colonial chamado Organização dos Estados Americanos (OEA), ou da supervisão de outra potência colonial como Espanha ou Portugal nas Cúpulas Ibero-americanas. A CELAC surgiu como consequência de duzentos anos de luta e uma visão comum da Grande Pátria latino-americana e caribenha.
Estes esforços de integração, além de terem sido constituídos em vozes de denúncia e força de resistência frente a sucessivas ameaças e ataques à democracia em nossos países, foram passos decisivos na defesa de um mundo multipolar, equilibrado, justo e com base em uma cultura de paz. O desafio sempre foi transformar a integração em um processo de construção de cidadania e direitos comuns para ir muito além da integração comercial.
3- As ameaças do grande capital para a integração da região
A crise do capitalismo global e seus impactos tiveram início em 2008 e enfraqueceram nossos países, e por conseguinte, os processos de integração. A tarefa de confrontar a crise internamente, assim como as dificuldades geradas por esta, colocaram um fim sobre a dinâmica integradora e favoreceram as oportunidades para a ação de Estados promotores do capitalismo global e suas empresas, instituídos em agentes da dominação econômica.
O espírito da ALCA através dos Tratados de Livre Comércio (TLCs), dos megas acordos regionais (Acordo Transpacífico de Cooperação Econômica/TPP), dos acordos de livre comércio e outros instrumentos setoriais (TISA) recuperam a força e tornam-se mais uma vez uma ameaça aos projetos de integração que nasceram a partir de processos de mudanças. Estes tratados rompem as soberanias nacionais e territoriais, reforçando as diferenças entre nossos povos. Em vez de complementar as lacunas históricas entre eles, abrem caminho a megaprojetos, indústrias extrativistas e de propriedade transnacional dos bens da natureza.
Um dos elementos de análise a ser levado em consideração para enfrentar a ofensiva contra uma integração alternativa na atual conjuntura é a rearticulação da direita política e econômica na região. Na já tradicional subordinação das oligarquias mexicanas e centro-americanas aos interesses dos EUA, vemos atualmente o papel ativo da Colômbia, Peru, Argentina, Paraguai e, mais recentemente, Brasil, em gerar um “realinhamento” da nossa região na órbita de interesses dos EUA. Daí o papel principal dessas oligarquias em sua obsessão para acabar com “o ciclo progressista” através de todos os meios possíveis, democráticos ou não. Sua estratégia de integração é externa, e de forma individual cada país se esforça para “ser integrado” ao mercado global, independentemente do preço em termos de soberania, impactos ao meio ambiente ou desastres sociais, como emprego, distribuição de renda e acesso a serviços públicos que geram essa subordinação ao capital global.
Um exemplo concreto dessa ofensiva é o golpe que procura acertar o Mercosul, por meio do bloqueio à presidência pro tempore da Venezuela, articulada pelos governos do Brasil, Paraguai e Argentina. O seu objetivo é isolar a Venezuela e paralisar o Mercosul, tentando se juntar à Aliança do Pacífico e favorecer o realinhamento dos EUA. Da mesma forma, procura paralisar a UNASUL e impossibilitar a CELAC como espaços de conciliação e diálogo de nossos países, sem a interferência de potências extrarregionais.
4. Da integração das lutas populares, a integração dos povos
A campanha contra a ALCA tem sido a experiência recente mais importante de articulação de setores, movimentos e organizações em prol de um objetivo comum: a derrota do projeto da Área de Livre Comércio das Américas. A ação coordenada contra esta tentativa de recolonização foi precedida por numerosas iniciativas de caráter popular relacionadas ou não aos mecanismos formais de integração, que reúnem a longa tradição de unidade dos povos além das fronteiras nacionais.
A Campanha pelos 500 anos de resistência indígena, negra e popular é uma delas e foi central, porque visibilizou a sujeitos sociais, movimentos indígenas, camponeses, afrodescendentes, de mulheres, que tinham sido colocados na periferia da política.
A nível sindical, existe a experiência do Conselho Consultivo Laboral Andino (CCLA), criado em 1983 no âmbito da Comunidade Andina (CAN), que reúne os sindicatos de todos os países do bloco. Sua função é a de emitir apreço, assim como participar com direito à voz nas reuniões dos órgãos dirigentes do Sistema Andino de Integração. De igual modo existiu também a Coordenadora das Centrais Sindicais do Cone Sul (CCSCS), fundada em Buenos Aires em 1986, que articula e coordena os sindicatos da Argentina, Brasil, Chile, Paraguai, Uruguai e Venezuela. A CCSCS surgiu para lutar contra os regimes autoritários que ainda existiam na região e seu principal objetivo é a defesa da democracia e dos direitos humanos.
Anteriormente à existência do Mercosul, a CCSCS se tornou um dos atores sociais mais ativos no seu meio, tendo reconhecido sua representação em todos os seus órgãos.
Estes são apenas dois exemplos da vasta prática da solidariedade entre os povos e as lutas do continente que permitiram construir um diálogo multissetorial, democrático e inclusivo, contra o avanço neoliberal no final dos anos 90.
Em abril de 1998, durante a Cúpula dos Povos das Américas, realizada em Santiago do Chile, foi acordada a criação da Aliança Social Continental (ASC), uma articulação de redes e organizações com uma grande variedade de forças e atores em um compromisso de ação comum. Em 2002, a ASC se uniria a organizações de outros setores e tradições, lançando a Campanha Continental contra a ALCA, um espaço fundamental que articulou uma ampla gama de movimentos sociais que, sem deixar de lado suas bandeiras específicas, passaram a defender propostas políticas e alternativas sistêmicas à fim de confrontar o livre comércio e o modelo neoliberal.
A criação da ALBA, em 2001, estimulou processos de organização e participação popular. Foi assim como o Conselho de Movimentos Sociais, no âmbito institucional da ALBA e uma articulação de movimentos sociais que partilhavam o horizonte do anti-imperialismo, anti-neoliberalismo e anti-patriarcado, que foi proposta a integração desde abaixo, com os próprios pés e autonomia dos governos, a ALBA Movimentos. Desde 2009, e também neste espírito e assumindo eixos como a formação, comunicação e solidariedade internacional, os movimentos populares da região construíram o processo de Movimentos ALBA que reconhece na ALBA sua referência fundamental com uma aposta por uma integração continental que promova uma verdadeira emancipação da região. É uma aposta desta articulação a necessidade de abordar, através do diálogo, a autonomia na prática organizacional e política das organizações que fazem parte com a incidência sobre os projetos e as políticas governamentais com impactos que transcendem as realidades nacionais.
Desde a derrota definitiva da ALCA, em novembro de 2005, na Cúpula dos Povos em Mar del Plata, foram expandidas as possibilidades de construção de alternativas. Em 2006, houve um processo de valiosos debates que começaram no VI Fórum Social Mundial/II Fórum Social das Américas (Caracas, Venezuela), passando pelo Encontro Hemisférico de Luta contra a ALCA, realizado em Havana (abril), Cúpula Social de Córdoba (julho), chegando à Cúpula Social pela integração dos Povos (Cochabamba, dezembro), onde os movimentos sociais decidiram uma série de propostas para a integração em diversas dimensões e setores que enfrentaram aos presidentes do que em breve se tornaria a UNASUL.
Em 2010, organizações ambientais junto com os movimentos sociais que vinham a partir destas lutas participaram na Cúpula sobre as Alterações Climáticas, convocada por Evo Morales em Cochabamba, Bolívia, e promoveram um movimento de justiça ecossocial, à fim de coordenar ações que implementaram o Acordo dos Povos, uma plataforma política abrangente de denúncia das causas estruturais da mudança climática e um programa de ação política para ser aplicado de acordo com as circunstâncias de cada país e território. Neste processo, aprendemos a dialogar entre diferentes perspectivas anticapitalistas, antipatriarcalismo, anticoloniais e antirracistas, em um paradigma centrado na igualdade, o bom viver e a soberania dos povos.
De todos esses acúmulos e de diversos outros esforços organizacionais dos que fazem parte de algumas redes como a CLOC-Via Campesina, Amigos da Terra da América Latina e do Caribe (ATALC), Confederação Sindical das Américas (CSA), federações sindicais internacionais, como a ISP, a Marcha Mundial das Mulheres, Jubileu Sul e ALBA Movimentos, avançamos na realização de uma articulação mais ampla, diversificada e plural, para facilitar a construção de novos processos de integração e de unidade, com base em ideais dos independentistas latino-americanos, contra a matriz colonial que subjaz em nossas economias, e a novos modelos e lógicas de produção e reprodução da vida. A integração dos povos tem que dar conta de alternativas antissistêmicas a produção e reprodução do capital.
5- Defender o projeto emancipatório da integração e lutar por sua consolidação
O retorno das elites conservadoras e suas políticas neoliberais nos países que conduziram o rumo desses processos nos coloca em um cenário muito diferente e representa um perigo para a integração que construímos, defendemos e queremos consolidar. Defendemos uma integração à democracia e às soberanias com a sua própria agenda construída no exercício da autodeterminação de nossos povos, centrada na solidariedade, reciprocidade, cooperação e complementaridade, à fim de romper com a lógica do mercado.
Almejamos uma integração para recuperar o trabalho e o emprego como acontecimentos econômicos que se encontram na base da produção e criação de riqueza e bem-estar, onde o que e como se produz estão no centro, onde o trabalho das mulheres não seja tratado como uma externalidade, e que sejam identificadas como agentes da economia e titulares de direitos.
Queremos uma integração sem messianismos ou impérios, sem centros únicos, sem portadores exclusivos da razão, nem muros entre grandes e pequenos.
Lutamos por uma integração que nos permite avançar em novas culturas políticas sem documentos com títulos dedicados aos movimentos sociais, que acabam nos separando ou fechando em eixos transversais no âmbito de assuntos sociais para que nos exclua de política.
Nos referimos a uma integração regional que leve em conta a cidadania em primeiro lugar, criada para combater as assimetrias e desigualdades regionais.
Propomos uma integração regional feminista questionadora do modelo capitalista patriarcal que continua impondo, por meio da força, as visões e práticas sexistas desde o nível estatal. Este encargo adicional representa uma violência simbólica às mulheres desde o âmbito local-territorial até os cargos públicos.
Precisamos debater: Quem são os que integram? O que está em jogo no campo da integração? Para que nos integramos? Com quais lógicas? Precisamos dialogar sobre como participar em estruturas que promovam processos de integração privatizadores de política e como lidar com os processos de desintegração popular impulsionados pelo capital que acabam sequestrando os estados.
No debate estão os alcances e limites da integração em relação às realidades internas de cada país. Reconhecendo as interinfluências entre o local e o regional, nenhum projeto de integração pode resolver contradições internas mediadas por longas história de luta e diversas pertinências. Não podemos esperar para banir conflitos locais ou superar tensões com os governos para empreender um caminho de integração.
O fortalecimento dos processos de integração regional e sub-regional são ferramentas para o desenvolvimento de nossos povos. Os instrumentos de integração regional precisam promover relações de igualdade entre as nações do continente, bem como a reformulação de políticas de integração que ocultem formas de dominação de alguns países sobre outros. O comércio internacional deve ocorrer no âmbito de acordos justos entre as partes.
Ao mesmo tempo, não podemos aprofundar nossas democracias e soberanias sem uma estratégia de integração regional que conduza a condições de mercados maiores, a construção de “cadeias de valor regionais” e a obtenção de financiamento para a produção e acesso a tecnologias para lidar com o mercado mundial.
É importante aprofundar o que significa quando dizemos integração dos povos. Não apostamos em autonomias inférteis de confinamento ou exclusão na participação funcional da sociedade civil. Apostamos em um diálogo fértil com os governos e forças políticas oriundos do campo popular no fortalecimento de emergências antissistêmicas e alternativas que permitam viver com antecedência esse horizonte que buscamos.
A rebelião de nossos povos originários nos dá uma cosmovisão de uma nova sociedade. Ainda se ouvem os tambores de guerra de nossos líderes indígenas que clamam a criação de um único povo. Temos uma história que nos permitiu chegar a este ponto. Sofremos e continuamos sofrendo ataques, mas aqui estamos.
* Este texto é parte integrante dos documentos da Jornada Continental pela Democracia e contra o neoliberalismo – 10 anos do não à ALCA.