Por Helena Martins e Iara Moura, do Coletivo Intervozes
No ano de 2015, o lema do Grito dos Excluídos trouxe à tona o debate sobre o direito à comunicação para o diálogo entre os movimentos sociais que se organizam para fazer frente ao avanço dos conservadorismos, das reformas neoliberais e das violações de direitos humanos, as quais se processam em diversos âmbitos da vida de homens, mulheres, indígenas, quilombolas, campesinos, jovens, crianças, adolescentes, população LGBT, negros e negras de todo o Brasil. A partir do lema “Que país é esse que mata gente, que a mídia mente e nos consome?”, levamos para as ruas e rodas de conversas discussões sobre a importância da mídia na sociedade contemporânea. Falamos dos riscos que a concentração dos meios de comunicação nas mãos de poucos grupos privados representa, dada a capacidade que eles têm de produzir um discurso hegemônico e, com isso, influenciar a sociedade.
Nos meses que se seguiram ao Grito dos Excluídos, esse potencial mostrou-se de forma nítida. A mídia foi usada largamente na disputa do imaginário social e dos rumos da crise política que o Brasil vivencia. Com horas de cobertura de determinados protestos, invisibilização de outros, apresentação de saídas conservadoras e muitas outras estratégias que beneficiaram os grupos afinados com a leitura política dos donos do poder e da comunicação, os meios conseguiram reduzir o debate sobre nossos problemas e conduziram a opinião pública contra o governo e contra aqueles/as que afirmavam que a saída para a crise não poderia ser fruto de um golpe, mas sim da ampliação da democracia e da garantia de direitos.
Se os exemplos do passado, como o golpe de 1964 e as Diretas Já, não deixavam esquecer a centralidade da mídia na política, o que vimos nos últimos meses e o que veremos nos próximos, no contexto da intensa polarização política que vivenciamos, devem ser lidos à luz de uma questão: qual o papel atual da mídia na democracia brasileira? Isso está em jogo e pode ser determinante. Seja para garantir a vitória de uma reação mais conservadora ou para alargar os horizontes da nossa pobre democracia, carente de participação direta, de controle popular sobre os mandatos, de transparência e de espaços para que as diversas opiniões sejam conhecidas e problematizadas de fato, formando e informando a todos/as sobre o mundo que nos cerca.
Diante desse cenário, é preciso afirmar a comunicação como um direito humano fundamental. Isso significa dizer que todas as pessoas devem ter condições para se expressar livremente, ser produtoras de conteúdo e fazer circular essas manifestações, sejam elas opiniões, informações ou produções culturais. Para tanto, é fundamental que o Estado adote medidas contra as diferenças que limitam a condição de produtor e difusor de informações a tão poucos grupos e garanta o exercício do direito à comunicação de forma plena e em linha com o direito à informação e à expressão, já que os direitos humanos são complementares e indivisíveis.
No Brasil, o direito à comunicação tem sido negado para a maior parte da população. A liberdade de expressão é tratada como liberdade de empresa. Essa situação está na raiz do nosso sistema de comunicação, quando se privilegiou a exploração desse bem pela iniciativa privada. Hoje, os meios de comunicação eletrônicos – rádio e televisão – embora sejam concessões públicas, têm um caráter eminentemente comercial, uma vez que estão em posse de grupos empresariais voltados à disputa de audiência e à conquista do lucro. Essa conformação foi viabilizada pela concentração da propriedade, pela presença dominante de grupos familiares, pela vinculação dos donos dos meios às elites políticas nos diferentes estados daqueles e, por outro lado, pela redução dos meios públicos e comunitários à periferia do sistema.
A Globo, pertencente à família Marinho, é um dos principais símbolos desta situação. Formado por revistas, jornais, rádios e TVs (somente ela possui 122 emissoras, sendo 117 afiliadas), o Grupo Globo garante a essa família o patamar de mais rica do país, com uma fortuna avaliada em US$ 28,9 bilhões. Violando o artigo 54 da nossa Constituição Federal, vários políticos, Senadores e Deputados são concessionários de rádio e TV, sendo muitos dessas emissoras afiliadas do sistema Globo. Os casos são bastante conhecidos: a família Sarney, no Maranhão; a família Magalhães (ACM), na Bahia; Collor, em Alagoas; Jader Barbalho, no Pará; e por aí vai.
Não por acaso, as redes de televisão e rádio estão nas mãos de grupos econômicos e políticos que lucram com as desigualdades sociais, com o agronegócio e com a falência da segurança pública. Esses grupos se utilizam dos meios para defender os seus interesses, por isso, diariamente, proliferam discursos de ódio contra movimentos sociais da cidade e do campo e defensores/as de direitos humanos, criminalizam jovens negros e reforçam estereótipos em relação a outros setores oprimidos da sociedade.
Os que são hoje donos da mídia querem que a sociedade não compreenda os meios de comunicação como bens públicos, desconheça seu direito a ter acesso a um conjunto diversificado de informações e opiniões e não possua espaços para fazer denúncias e cobrar reparação diante de notícias falsas, distorções, preconceitos ou do silêncio imposto aos movimentos sociais. Com isso, eles também limitam a discussão, a participação da sociedade e suas possíveis conquistas. Afinal, uma sociedade que não conhece seus direitos não pode reivindicá-los.
Recentemente, muitos dos países vizinhos ao nosso fizeram avançar, cada um a seu modo, a participação popular, a promoção da diversidade de opiniões e o combate às violações de direitos humanos na mídia. Uruguai, Argentina e Bolívia, por exemplo, estabeleceram regras que limitam a formação de monopólio e oligopólios no setor de radiodifusão (rádio e TV); fortalecem a comunicação pública e os meios comunitários; afirmam a necessidade de respeito e promoção da diversidade regional, cultural e ideológica nos veículos.
Inspirados por esses exemplos e pelas décadas de luta da sociedade brasileira pela democratização da comunicação, organizações da sociedade civil do nosso país elaboraram o Projeto de Lei de Iniciativa Popular da Mídia Democrática que prevê, entre os seus artigos, o veto à propriedade de emissoras de rádio e TV por políticos e define regras para impedir a formação de monopólio. Além de defender essa mudança estrutural, também lutamos por medidas que podem ser tomadas, desde já, entre as quais: o fortalecimento da Comunicação Pública em sua sustentabilidade financeira e sua autonomia, com destaque para a Empresa Brasil de Comunicação (EBC); a proibição dos arrendamentos de canais de rádio e TV, que ocorre quando um concessionário vende parte de sua programação a terceiros; e o respeito aos direitos humanos na mídia, com o fim das violações em programas que se utilizam de preconceitos, discursos de ódio e incitação à violência para obter audiência e lucro.
Se, no campo dos movimentos de esquerda, há muito se percebeu que direito não se negocia, não se compra, mas se conquista, e que não há outro mundo possível se não renovarmos e disputarmos também o campo das ideias, aproveitamos este espaço para fazer um chamamento: é chegada a hora de pressionar o Estado brasileiro a fazer avançar a democracia e, para isso, é necessário e urgente democratizar as comunicações.
*O texto “Desmentir e transformar a mídia: porque comunicação é direito e direito se conquista” faz parte do conjunto de eixos para discussão e reflexão proposto pelo Grito dos/as Excluídos/as Brasil 2016.