Moradores do Quilombo Vista Alegre, em Alcântara, no litoral maranhense, denunciam que foram vítimas de uma tentativa de reintegração de posse com uso de balas de borracha e gás lacrimogêneo por parte de militares da Força Aérea Brasileira e de agentes da Polícia Federal (Foto: Reprodução das redes sociais).

Por Nicoly Ambrosio – Amazônia Real

Manaus (AM) – Moradores do Quilombo Vista Alegre, em Alcântara, no litoral do Maranhão, foram vítimas de uma violenta tentativa de despejo, no último dia 29 de março. Militares da Força Aérea Brasileira (FAB) lotados no Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) e agentes da Polícia Federal (PF) invadiram uma parte do território de Vista Alegre, ferindo várias pessoas, inclusive crianças, mulheres e idosos. Foram usadas balas de borracha e gás lacrimogêneo para atacar a comunidade durante a ação.

“Meu pai ‘pegou’ dois tiros de bala, um na perna e outro na virilha. Minha filha ‘pegou’ um tiro na testa. Eles atiraram contra ele e atingiram ela. Foi uma coisa horrível”, denuncia Orlandira Costa, uma das moradoras da Vista Alegre. A menina tem apenas 4 anos e estava dentro do terreno da casa da família. Orlandira contou em entrevista à Amazônia Real que os quilombolas estavam reunidos, de forma pacífica, para impedir a entrada dos militares. “A gente não ia deixar eles invadirem nossa comunidade assim para querer derrubar nossas casas.”

Em um vídeo a que a reportagem teve acesso, Orlando Costa, pai de Orlandira, mostra as marcas das balas em seu corpo e no da neta. Para ele, é inaceitável o uso de violência contra a comunidade, “que nunca fez nada de mal para ninguém”. “Somos uma comunidade de quilombolas, de trabalhadores e não podemos aceitar isso. Eu quero que o mundo todo veja a violência que fizeram conosco”, diz.

A comunidade Vista Alegre abriga cerca de 50 famílias. Ela está localizada em Alcântara, o município que tem o maior número de comunidades quilombolas do País. São mais de 3,3 mil famílias, com cerca de 22 mil habitantes. A relação com os militares nunca foi pacífica. Mas a ação da semana passada surpreendeu por retomar uma violência desmedida e desproporcional.

“Invadiram nossas casas e derrubaram sem nenhum ofício que legalizasse essa invasão. Entraram em uma casa em que uma mulher estava de resguardo, com um bebê recém nascido no colo. Tiveram que sair correndo com medo. Tinha várias crianças no meio, todo mundo sofrendo. Foi horrorizante ver aquela situação”, conta Orlandira.

Quatro casas de famílias da comunidade foram derrubadas na ação de reintegração de posse. Thalya Costa conta que estava dentro de uma das residências com seu filho de 2 anos quando ouviu barulhos de tiro. “Me desesperei, não sabia o que fazer. Quando eles chegaram com as máquinas, derrubaram tudo, meu filho presenciou tudo e ficou desesperado”, relatou. Thalya está agora abrigada na casa de uma tia e cobra por justiça. “É triste você ter sua casa, seu canto, e ver essas pessoas derrubar e destruir tudo de uma hora para outra.”

Ação desproporcional

Segundo os quilombolas, a ação de reintegração de posse, solicitada pelo CLA junto à 3ª Vara Federal Cível da Justiça Federal do Maranhão, foi movida contra apenas um pequeno empreendimento privado, a Pousada Vista Del Mar. “Eu, como quilombola e filho da terra, tive a ideia de fazer um restaurante. Nós trabalhávamos com turismo de base comunitária, tanto que esse restaurante foi construído pela comunidade”, conta Moisés Costa, morador de Vista Alegre. Ele disse acreditar que a visibilidade que o restaurante alcançou fez com que os militares do CLA começassem um processo contra ele. “Depois de um tempo recebemos a notificação para se retirar do local e eu tive que fechar o restaurante, que não funciona há quase um ano”, afirma.

De acordo com uma nota publicada pela Associação do Território Ético Quilombola de Alcântara (Atequila), em conjunto com outras organizações representantes das comunidades quilombolas de Alcântara, mesmo que a ação seja movida contra um estabelecimento privado, “o cumprimento da ordem de reintegração de posse ocorreu dentro do nosso território tradicional ora em disputa pelos militares, portanto, seus efeitos e danos não são privados e alcançam toda a comunidade e coletividade”.

As organizações afirmam que assim que tomaram conhecimento da ação de reintegração de posse informaram, no dia 14 de março, a Casa Civil da Presidência da República, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, o Ministério da Justiça e Segurança Pública, o Ministério da Igualdade Racial, a Secretaria de Estado dos Direitos Humanos e Participação Popular, a Comissão Estadual de Prevenção à Violência no Campo e na Cidade do Maranhão e o Ministério Público Federal sobre a situação e solicitaram que os órgãos evitassem o cumprimento da ordem.

Nenhum dos órgãos mencionados, contudo, comunicou quais medidas foram adotadas para evitar o ocorrido. “Avaliamos que a omissão diligente desses órgãos apresenta sérios indícios de prevaricação e foi determinante para o cenário desastroso ocorrido durante a reintegração na comunidade de Vista Alegre”, disseram os representantes quilombolas.

Para o quilombola Danilo Serejo, assessor jurídico das comunidades e integrante do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (Mabe), o governo do Maranhão e o Ministério da Justiça e Segurança Pública poderiam ter atuado para evitar a reintegração. Havia interesse dos quilombolas para resolver a questão por meio de uma solução amistosa e conciliatória, já que a empresa foi dissolvida em maio de 2022. “Mesmo assim, se optou pela solução mais violenta. O resultado é que toda a comunidade foi afetada pelos efeitos da operação. O fato de Flávio Dino permitir o uso da PF contra nós não nos surpreende e nem nos causa qualquer estranheza, ele tem um histórico de ataques aos direitos das comunidades de Alcântara”, diz. Dino foi governador do Estado entre 2015 e 2022.

Danilo Serejo afirma que a operação impacta também as outras comunidades quilombolas de Alcântara, “uma vez que as vulnerabiliza ainda mais perante os militares do CLA”, afirma.

Luta histórica

Centro de Lançamento de Alcântara. Foto: Werley Andrade/TV Brasil

Inaugurado pela ditadura militar em 1983, o CLA ocupa uma área historicamente habitada por populações quilombolas. Na época da construção da base, como parte da visão ufanista de transformar o Brasil numa potência militar, 312 famílias foram removidas compulsoriamente do local onde viviam. Os conflitos entre os militares e quilombolas de Vista Alegre, que fica ao lado da base espacial do CLA, incluem uma sucessão de violações de direitos dentro do território que duram quase 40 anos.

O caso das violações do Estado brasileiro contra os quilombolas de Alcântara já foi parar na Corte Interamericana de Direitos Humanos, ligada à Organização dos Estados Americanos (OEA). Ele foi apresentado em 2001 e, finalmente, chegou à Corte, que marcou um julgamento para ocorrer entre os dias 24 e 26 de abril, em Santiago, no Chile.

São três as denúncias das comunidades quilombolas contra o Estado brasileiro: expulsão de 312 famílias com a construção da base na década de 1980; ausência do título de propriedade dos moradores da região; e falta de consulta à comunidade sobre ações que impactam as suas vidas.

Moisés Costa, o antigo proprietário do restaurante que foi alvo dos militares, afirma que a expectativa das comunidades quilombolas é pela condenação do Estado. “Esperamos que eles respondam e paguem por todas as mazelas que fizeram às nossas comunidades, aos nossos irmãos que foram expulsos. Colocaram nossos irmãos em lugares inapropriados e não cumpriram com nada do que prometeram, tanto que estão nesse julgamento”, diz.

Costa acredita que o julgamento não irá reparar a história de sofrimento e racismo de Alcântara, marcada pela expulsão de membros da comunidade que jamais voltaram. “Nós não queríamos sair de nossas terras e eles usaram todas as forças para nos expulsar. Tiraram a nossa vida, nos tiraram de perto da praia e nos deixaram sem recurso nenhum. Eles têm que pagar pelo que fizeram.”

Estado de vigilância

Os quilombolas de Alcântara denunciam que não podem mais ir à praia livremente e se sentem ameaçados em transitar na região. “Eles passam aqui o dia todo. A gente vive da pesca e não pode mais ir pescar, porque eles chegam com armas e botam na gente perguntando para onde a gente vai. A gente vive oprimido aqui. Agora não podemos trafegar no nosso próprio lugar. Eles sabem que vivemos da pesca e está difícil viver assim ameaçado”, afirma Orlandira Costa.

Os quilombolas de Vista Alegre resistem no local há quatro gerações e, segundo Orlandira, vão continuar resistindo para ocupar o local, mesmo com a atitude dos militares. “Faz anos que eles querem nos tirar da comunidade, mas a gente vive aqui há muito tempo, passando de geração em geração e não vamos entregar nossas terras para eles”, diz.

Em março de 2019, o Brasil assinou o Acordo de Salvaguarda Tecnológica (AST) com os Estados Unidos para inserir o País no mercado de lançamentos espaciais. Embora tenha sido ratificado pelo Congresso, o AST nunca esteve atrelado a uma consulta prévia das comunidades quilombolas. “A aprovação do acordo de entrega da Base aos Estados Unidos foi feita em prejuízo dos nossos direitos de propriedade coletiva”, diz Danilo Serejo.

Em 26 de março de 2020, no começo da pandemia de Covid-19, o governo publicou a Resolução nº 11, que previa a retirada de moradores para ocupar mais 12.645 hectares no território quilombola. Cerca de 2 mil famílias seriam afetadas, mas uma decisão liminar da Justiça Federal no Maranhão suspendeu qualquer ação de remoção até a conclusão do processo de consulta prévia, livre e informada, das comunidades afetadas.

O Quilombo de Vista Alegre é reconhecido pela Fundação Palmares desde 2004, mas desde 2008 o processo de titulação das terras quilombolas está parado no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Para o advogado Diogo Cabral, que atua junto à Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado do Maranhão (Fataema), a única forma de garantir justiça social e estabilidade às comunidades de Alcântara é a titulação coletiva do território. “É uma obrigação do estado brasileiro. A única postura que o estado brasileiro deve adotar depois de anos de racismo contra aquela população é a titulação”, diz o advogado.

Para Diogo, sem a titulação os casos de violações e racismo continuarão. “Essa violência, essa exclusão e esse racismo têm sido marcas da implantação da CLA desde os anos 80”, conclui.

“Violações de direitos”

Moradores dos quilombos de Alcântara durante uma reunião com o Ministério de Ciência e Tecnologia (Foto MCTI)

O Ministério da Igualdade Racial e o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania afirmaram em nota enviada por e-mail à Amazônia Real que “repudiam o uso da força e as violações de direitos ocorridos em Alcântara” e que já determinaram que sejam tomadas as medidas necessárias para o acolhimento. Também vão trabalhar para identificar o número de pessoas afetadas e futuras reparações por meio da Secretaria de Políticas para Quilombolas, Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana, Povos de Terreiros e Ciganos, da pasta da Igualdade Racial, e da Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos, dos Direitos Humanos e da Cidadania.

Os dois ministérios afirmaram que estão em diálogo com as instâncias governamentais competentes e que nos próximos dias haverá uma reunião do governo federal “para o compartilhamento de soluções sobre situações que envolvem as comunidades quilombolas de Alcântara”.

Os ministérios reafirmaram o compromisso com a proteção das comunidades quilombolas e povos tradicionais. “Nos manteremos a postos para acompanhamento, identificação das violações e devidas.”

Procurado pela reportagem, o CLA respondeu por e-mail que a reintegração de posse ocorreu em decorrência da instalação do empreendimento Pousada Vista Del Mar, com fins comerciais, em área da União, de acordo com o Decreto Presidencial de 8 de agosto de 1991. “A reintegração foi cumprida pelo oficial de Justiça acompanhado de força policial, tendo em vista a resistência de cumprimento da decisão por parte do proprietário. Ressalta-se que não houve nenhum tipo de confronto de representantes do CLA com as comunidades”, afirma a nota.

O CLA afirma que “somente cumpriu a decisão judicial exclusivamente referente à pousada, não possuindo envolvimento para a comunidade de Vista Alegre”, e que em 40 anos da criação da base espacial, “nunca houve confronto entre membros do efetivo do CLA e a comunidade, o relacionamento do CLA com as comunidades do entorno é pacífico”, contrariando os relatos dos quilombolas.

A Secretaria de Estado dos Direitos Humanos e Participação Popular (Sedihpop) informou por e-mail enviado à Amazônia Real que está acompanhando o caso da Comunidade Quilombola Vista Alegre, mas, “observa que a execução da decisão judicial em cumprimento de um mandato de reintegração de posse, tem efeito apenas sobre a Pousada Vista Del Mar, que já havia sido declarada desativada, e não se destina à remoção da comunidade”. O órgão pontuou que permanece em contato com os moradores de Vista Alegre para acompanhar a conclusão do procedimento e receber denúncias de vítimas de violações de direitos humanos.

Também procurados, o Ministério da Justiça e Segurança Pública, a Polícia Federal e os governos estadual e federal não responderam os questionamentos enviados a publicação desta reportagem.

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