O assassinato de Jovenel Moïse não deve ser desculpa para uma nova intervenção no Haiti
O povo haitiano vive um momento de incerteza, mas não chora. O presidente de fato, Jovenel Moïse, foi assassinado na manhã deste 7 de julho, em sua casa, em Porto Príncipe e os motivos dos que cometeram este crime ainda não são conhecidos. Como povos da Nossa América não choramos aos algozes dos povos, mas advertimos sobre os possíveis cenários que podem ser desencadeados com este assassinato em benefício dos interesses imperialistas, que vivem da geração do caos como principal estratégia de dominação. A memória da resistência haitiana nos traz de volta a história que em 1915, após o assassinato do presidente Vilbrun Guillaume Sam, o exército dos EUA invadiu o Haiti. Estarão repetindo sua estratégia?
O assassinato de Moïse é um daqueles casos em que a violência se volta contra seu gerador original: há meses, o Haiti vive uma espiral de violência que busca conter e reprimir os levantes populares que se mantiveram permanentemente durante os últimos quatro anos. De acordo com entidades estatais e organizações nacionais e internacionais de direitos humanos, houveram 12 massacres, 234 sequestros (ONU), 10.000 pessoas deslocadas e mais de 76 grupos armados foram identificados. A esses números foram acrescentados 15 novos assassinatos no final de junho.
É importante lembrar que há alguns meses, no dia 7 de fevereiro deste ano, foi consumado no Haiti um autogolpe liderado pelo próprio Moïse, após o término do mandato de cinco anos estipulado na Constituição do país. Moïse coroou assim um longo período autoritário que o confrontou com a mobilização permanente das classes populares, a oposição política e o conjunto de poderes e instituições do Estado.
É por isso que o povo haitiano exigiu a renúncia de Moïse meses atrás, em busca de uma solução democrática e sem intervenção estrangeira. Chamamos a atenção para isso porque a espiral ascendente da violência é sempre mostrada pelo olhar colonialista como típica da sociedade haitiana, deixando de lado que a “violência” organizada tem uma direção e parece estar ligada principalmente a gangues armadas, que cresceram em implantação e capacidade operacional graças ao seu vínculo com potências internacionais e, de acordo com o próprio Estado haitiano, colonizado por setores que são lacaios do imperialismo em todas as suas formas.
Neste momento em que muitos discursos sem ancoragem nas necessidades e sentimentos do povo haitiano vêm à luz pública internacional, é importante esclarecer e reconstituir o colonialismo que se filtra por direita e esquerda: a crise no Haiti não é abstrata, nem metafísica, nem eterna. Tem datas, causas e responsabilidades precisas. Em primeiro lugar, a longa história de ocupações, interferências e golpes de Estado com apoio internacional, que fizeram do país uma nova colônia francesa poucos anos após a consumação da Revolução de 1804, e uma nova colônia norte-americana após a ocupação. dos fuzileiros navais Yankee, entre 1915 e 1934. Em termos gerais, os grandes protagonistas dessa política de recolonização e tutela foram a tríade formada pelos Estados Unidos, a França – que nunca deixou a ilha realmente – e o Canadá – talvez o país que pratica a política mais imperialista, invisível e dissimulada em nosso continente, sempre cavalgando sobre as corporações mineiras no Haiti.
Nos últimos 50 anos, organizações multilaterais, como a Organização dos Estados Americanos (OEA), as Nações Unidas e grupos de interesse como o Core Group – formado pelos países que se autodenominam “amigos do Haiti” também tiveram papel de destaque e mediação – majoritariamente europeus, com interesses mineiros, migratórios, financeiros ou geopolíticos no país. O surgimento do chamado “intervencionismo humanitário” no pós-Guerra Fria, ou ideologias semelhantes como a “responsabilidade de proteger” ou o “princípio da não indiferença” têm se refletido, no laboratório haitiano, nos inúmeros civis, missões policiais e militares, soldados que desembarcaram na costa oeste da ilha, desde a pioneira MICIVIH em 1993, até a notória MINUSTAH durante o período 2004-2017. Os objetivos louváveis declarados por essas missões e agências têm sido paz, estabilidade, governança, justiça, reconstrução e desenvolvimento. No entanto, o Haiti, impedido de realizar uma política fundamentalmente soberana, regrediu nos últimos quase 30 anos em todas essas áreas e indicadores.
A dimensão política da crise haitiana é incompreensível sem a interferência estrangeira permanente em seu sistema político e econômico. Sempre que nas últimas décadas o povo haitiano teve a oportunidade de exercer livremente sua vontade, a participação eleitoral foi enorme: nas eleições de 1990, Aristide obteve uma vitória retumbante com 67,39% dos votos. Mesmo depois do golpe que o destituiu do poder – com a participação direta dos Estados Unidos – em uma nova eleição realizada em 2000, o povo haitiano mais uma vez demonstrou seu compromisso democrático e elegeu Aristide novamente por esmagadores 91,7% dos votos válidos elencados. Em 2004, Aristide foi novamente derrubado, desta vez pela ação de uma Força Multinacional Provisória composta por tropas dos Estados Unidos, França e Canadá.
Jovenel Moïse deixa para trás uma longa tendência autoritária que corroeu as diferentes instituições do país. O Parlamento foi fechado em janeiro e durante esse tempo foi governado por decretos. A repressão aos protestos sociais e a proliferação da violência organizada por meio de gangues armadas também foi uma constante em sua gestão, sendo um dos casos mais recentes a execução nas ruas do jornalista Diego Charles e da colega feminista Antoinette Duclaire. É por isso que não merece o nosso respeito. No entanto, estamos acompanhando as consequências desta morte violenta com atenção e preocupação e suspeitamos que os interesses por trás dela não são um bom presságio para o povo do Haiti.
Seguimos do lado do povo haitiano e de suas organizações populares. Seguimos denunciando a interferência internacional e o imperialismo norte-americano. Pedimos aos governos e povos da Nossa América que não permitamos uma nova intervenção militar estrangeira no país, como está sugerindo cinicamente Biden e Duque com seus eufemismos de “ayuda” e “proteção da democracia” a instabilidade e a violência no Haiti tem origem na imposição constante de governantes e de modelos econômicos que só geram fome e morte para as maiorias. Não justificaremos nenhum tipo de colonialismo nem intervenção. Por um Haiti livre e soberano!
Ditadura nunca mais!
7 de julho de 2021