Relatório da Plataforma Dhesca sobre impactos da letalidade policial na infância foi lançado nesta quinta em Salvador

Por Gabriela Amorim e Alfredo Portugal – Brasil de Fato

De acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2023 a polícia foi responsável pela morte de 6.393 pessoas em todo o país. Destas, 71,7% eram crianças, adolescentes ou jovens com até 29 anos, sendo 82% negras. Nesta quinta-feira (22), a Plataforma de Direitos Humanos – Dhesca Brasil lançou em Salvador um relatório que buscou medir os impactos dessa letalidade policial nas infâncias negras da Bahia e do Rio de Janeiro, estados com maiores índices de letalidade policial no país há alguns anos.

De acordo com o documento, de 2015 a 2022 os indicadores de letalidade policial na Bahia quadruplicaram. Segundo monitoramento do Instituto Fogo Cruzado fornecido à Plataforma Dhesca, em média quatro pessoas foram baleadas por dia em Salvador e região metropolitana somente em 2023, sendo que 34% dos tiroteios ocorreram durante ações policiais.

“[O relatório] diz respeito a um cenário de genocídio, um fenômeno que coloca o Brasil no mapa de violações gravíssimas de direitos humanos. E temos um recorte assustador de como essa violência tem impactado as crianças, que não estão seguras nos territórios onde moram, dentro de casa, a caminho da escola”, destaca Iara Moura, integrante da Plataforma Dhesca e uma das relatoras do documento.

Série temporal de mortos e feridos em Salvador e Região Metropolitana, realizada pelo Instituto Fogo Cruzado / Reprodução/Plataforma Dhesca

Um dos objetivos é que relatório sirva de ferramenta de fortalecimento da luta por memória, justiça e reparação para vítimas de violência policial, além de apoio à implementação de políticas públicas eficazes para combater o assassinato de crianças e adolescentes negros por parte de agentes de segurança pública.

O documento aponta que as operações policiais vitimaram perfis específicos e marcados pela violência racial e étnica. Em Salvador e região metropolitana, 47% das vítimas eram negras e 94%, meninos. No Rio de Janeiro, também em 2023, pelo menos 23 crianças e adolescentes foram baleados em ações policiais, resultando em dez mortes confirmadas.

“As famílias atravessadas por essa barbárie não têm encontrado respostas efetivas do Estado. A gente ouviu relatos de mães e familiares de vítimas que não tiveram tempo de enterrar seus filhos e já estavam se organizando na luta por justiça. Ou seja, são famílias que já se encontravam numa situação de violência e que, com esse evento trágico, bárbaro de morte de seus filhos, ainda têm que lutar por justiça”, acrescenta a relatora.

O relatório aponta que o assassinato de crianças e jovens é o ponto mais trágico de vidas atravessadas por outras violências e negação de direitos. Como aponta Iara Moura, são infâncias marcadas pela falta de acesso à educação de qualidade, lazer, cultura, comunicação, direitos econômicos, e que encontram na violência policial sua face mais dura.

Outro ponto destacado pela relatora é que os efeitos danosos dessa violência atingem não só as crianças mortas pela violência policial, mas também aquelas sobreviventes e seus irmãos, parentes, amigos, vizinhos. “O Estado, além de não garantir direitos, ele ativamente é o responsável por essa violência, que tem efeitos nefastos nas infâncias negras, infâncias marcadas por esse luto”, afirma.

Mídia e violação de direitos

Para a realização do relatório, foram ouvidas famílias de crianças e jovens vitimados no Grande Rio e em Salvador, especialmente no Nordeste de Amaralina e na Gamboa, dois territórios fortemente marcados pela violência policial. Nessas escutas, dois pontos em comum chamam a atenção: a ineficácia dos órgãos judiciais e a criação de narrativas midiáticas para justificar os assassinatos.

A relatoria tomou conhecimento de casos em que crianças foram assassinadas há mais de 10 anos, sem que houvesse finalização do processo judicial contra os responsáveis pelos crimes. “Não houve investigações céleres, o necessário julgamento e muito menos ações de reparação”, aponta Iara Moura.

Outro ponto em comum trazido pelo relatório é que o Estado, junto à mídia, especialmente os programas policialescos, têm criado narrativas para tentar justificar essas mortes, como se fossem um mal menor diante do enfrentamento ao crime organizado ou ainda tentando criminalizar as vítimas, mesmo quando são crianças.

“A gente tem casos emblemáticos, como nos foi relatado no Nordeste de Amaralina, de crianças que estavam brincando, foram alvejadas pela polícia e morreram, e que depois saía nos noticiários e no discurso oficial da própria corporação, como se elas estivessem ligadas ao crime organizado. É esse nível de absurdo”, detalha a relatora.

O relatório identificou ainda casos em que agentes de segurança pública realizam transmissões ao vivo, nas redes sociais, de ações policiais em territórios de vulnerabilidade social, em flagrante violação de direitos. Os conteúdos, inclusive, são monetizados pelas plataformas sem nenhuma restrição.

“São crianças, adolescentes e jovens violentados e assassinados pela polícia, que ainda têm a exposição indevida da imagem, com a construção de uma narrativa racista de criminalização dessas infâncias e juventudes. Tudo isso realizado por agentes públicos e sendo alimentado por um modelo de negócio das plataformas digitais que lucram em cima desse tipo de conteúdo. E, além disso, esses agentes têm usado as redes sociais para alimentar um capital político, com entrando na corrida eleitoral esse ano”, explica Moura.

Recomendações

A partir da escuta das famílias de vítimas da violência policial, o relatório conclui com recomendações para reverter a atual situação e permitir que as crianças negras tenham direito a suas infâncias. A relatora Iara Moura destaca que, infelizmente, esse não é um fenômeno isolado e não se restringe a Bahia e Rio de Janeiro, portanto, as recomendações também não são apenas para os dois estados.

Dentre essas recomendações está a criação de um sistema de amparo institucional para sobreviventes e familiares de pessoas vitimadas pelo Estado, com a criação de um fluxo de acolhimento emergencial, que tenha tanto a participação dos órgãos do Sistema de Justiça, como a Defensoria Pública e Ministérios Públicos, como também dos sistemas de saúde para atenção psicossocial dessas famílias.

Outro ponto diz respeito ao papel da mídia e das plataformas digitais na criação de narrativas revitimizadoras e criminalizadoras das infâncias negras marcadas pela violência policial. O relatório aponta a necessidade de um esforço conjunto do Estado, sociedade civil organizada e especialistas para a responsabilização de emissoras de rádio e televisão, anunciantes e apresentadores de programas policialescos.

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