Por Redação APREMARA e Jubileu Sul Brasil
Mesmo em meio à pandemia, os empreendimentos na Amazônia prosseguem, especialmente as barragens com empresas interessadas em projetos na região pressionando por consultas públicas e continuidade de estudos — com autorização do Conselho Nacional do Meio Ambiente, e ignorando as comunidades.
Para enfrentar a proposta de construção das hidrelétricas Tabajara, no Rio Machado, em Machadinho D’Oeste, e Ribeirão, em Guajará-Mirim, no rio Madeira, ambas em Rondônia, as comunidades indígenas, de ribeirinhos e pequenos agricultores afetados se mantêm no trabalho de denúncia e organização contra os impactos das barragens.
No caso de Tabajara, as empresas quiseram fazer audiências públicas e de consulta virtuais às comunidades para o Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA), exigido para a obra da barragem.
“Muitas dessas comunidades não tem acesso à internet e uma consulta pública nesse contexto traria grandes prejuízos, colocando as pessoas num processo virtual sem o mínimo de condições, de acesso às informações necessárias para discussão”, afirma Francisco Kelvim, da coordenação estadual do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).
Para barrar o processo de consulta, a Associação de Preservação do Meio Ambiente e dos Rios Amazônicos (APREMARA), em conjunto com o MAB e diversos pesquisadores ligados à Universidade Federal de Rondônia, realizam estudos e subsidiaram uma ação civil pública que foi movida pelo Ministério Público Federal (MPF).
Com a consulta suspensa, ainda assim as empresas concluíram e encaminharam o EIA/RIMA ao Ibama, que avaliou o estudo e negou o prosseguimento do projeto. No caso de Ribeirão, na fronteira entre o Brasil e Bolívia, Kelvim explica que as empresas envolvidas estão no processo de estudo de inventariado, ou estudo de viabilidade do empreendimento.
Segundo o coordenador do MAB, as análises começaram no final de 2020, “com idas às comunidades, entrevistas e uma série de atividades acontecendo, inclusive de forma presencial, e novamente as empresas insistiram, desta vez na apresentação dos estudos de viabilidade de forma virtual”. Além das dificuldades de acesso à internet, Kelvim destaca outro agravante, que é o impacto às comunidades bolivianas da fronteira.
“O trabalho da APREMARA e do MAB vem sendo construir o processo de resistência à apresentação desses estudos até que a pandemia de Covid-19 esteja controlada”, garante.
Nenhuma hidrelétrica a mais
Apesar das limitações impostas pela Covid-19 — e seguindo todos os protocolos de segurança —, o avanço dos projetos exigiu buscar formas de ampliar a resistência e a mobilização popular. Entre outros, foi preciso adaptar parte das atividades propostas por conta do distanciamento social na pandemia, com adoção do modo virtual.
A partir do projeto “Nenhuma Hidrelétrica a mais na Amazônia: Contra as barragens, em defesa da vida!”, articulado pela APREMARA, MAB e pesquisadores parceiros, ações de incidência e mobilização seguem ocorrendo nas regiões, estimulando o protagonismo da organização popular e o fortalecimento da rede de enfrentamento às hidrelétricas.
A iniciativa, realizada desde março de 2020, visa fortalecer a resistência popular nos territórios frente aos projetos hidrelétricos e garantir os direitos das populações, e integra a ação de Ajuda a Terceiros do Jubileu Sul/Américas e Jubileu Sul Brasil no âmbito do projeto Fortalecimiento de la Red Jubileo Sur/Américas en el logro del desarrollo y de la soberanía de los pueblos latinoamericanos y caribeños, cofinanciado pela União Europeia*.
Como parte da mobilização, organização das famílias e articulação em rede na luta contra as hidrelétricas, a ação prevê ainda a realização de uma campanha contra as barragens de Tabajara e Ribeirão.
Solidariedade às famílias atingidas e ameaçadas
Outra atividade que está sendo realizada pela APREMARA e o MAB como parte do projeto “Nenhuma Hidrelétrica a mais na Amazônia” é a distribuição de cestas de alimentos, de máscaras e kits de higiene às famílias atingidas e ameaçadas por barragens. A distribuição não estava prevista originalmente, mas o impacto da pandemia exigiu muito mais do que adaptar as atividades para o formato virtual, sendo necessária a ação de solidariedade urgente para segurança alimentar e proteção das comunidades contra o coronavírus.
Ao todo já foram entregues mais de 2.400 cestas de alimentos, 3.400 máscaras, 2.275 kits de limpeza, além de alimentos como cará, abóbora, farinha, macaxeira e pão, que estão sendo arrecadados e comprados entre os pequenos agricultores nas regiões, como forma de garantir renda às famílias.
Voluntária da associação, Missay Nobre conta que as ações de solidariedade começaram no ano passado contemplando sete municípios de Rondônia, entre os quais distritos de Porto Velho, as comunidades Jaci-Paraná, Brasileira e Bom Será, no baixo Madeira, nos bairros urbanos dos municípios de Candeias do Jamari, Itapuã do Oeste, Nova Mamoré e Guajará-Mirim.
“Priorizamos as mães solteiras, que são chefes de família e que estão em vulnerabilidade social, e também foi doado para todos os atingidos por barragens dando alimento para terem o que comer na pandemia. Muitas pessoas estão passando fome, o Brasil voltou ao Mapa da Fome da ONU, então essas ações de solidariedade precisam continuar e são de extrema importância”, afirma a voluntária.
Quanto aos próximos passos, a prioridade da APREMARA e do MAB é a retomada da agenda de luta e organização depois da pandemia, o que se espera que aconteça no próximo ano, ainda que a situação seja incerta atualmente. As ações do projeto “Nenhuma hidrelétrica a mais” continuam até fevereiro de 2022.
Herança da ditadura
A partir do ano 2000, quando ocorreu uma retomada na construção de grandes hidrelétricas na Amazônia, novos projetos de barragens foram desengavetados em Rondônia com base nos precedentes jurídicos e administrativos criados com o processo de licenciamento das obras. Após a construção de Jirau e Santo Antônio no rio Madeira, dois novos projetos de hidrelétricas voltaram a ser discutidos, entre os quais a de Tabajara e do Ribeirão.
Tabajara surgiu ainda na década de 1980, durante a ditadura militar, mas enfrentou muita resistência de ribeirinhos, pequenos agricultores, povos indígenas Arara e Gavião ameaçados pela construção, motivo pelo qual a Eletronorte e o governo desistiram da construção.
Desengavetado em 2005, os estudos só retomaram em 2010, após a Medida Provisória nº 542, que reduziu unidades de conservação que seriam impactadas por hidrelétricas na Amazônia. Em 2013, o Termo de Referência do Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) foi aprovado sem a participação das populações ameaçadas e no governo Temer foi incluído no Programa de Parcerias em Investimentos (PPI) do Governo Federal. Entre as empresas envolvidas nos estudos estão a Eletronorte, Construtora Queiroz Galvão, Furnas, Enel Brasil, PCE Projetos e Consultorias e JGP Consultoria e Participações.
O consórcio apresentou em 2021 a solicitação de Licença Prévia ao IBAMA e a autorização para a realização das audiências públicas, em resolução do Conselho Nacional de Meio Ambiente que, sob as mãos do então ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, passou a permitir audiências públicas de forma remota para licenciamentos ambientais.
O Ministério Público Federal (MPF) e o Ministério Público do Estado de Rondônia (MPE-RO) recomendaram ao IBAMA que não realize audiências presenciais nem remotas com a população. A 5ª Vara Federal Ambiental e Agrária, em Rondônia, suspendeu a realização da audiência pública, a ação foi movida pelo Ministério Público Federal e contou com uma representação encaminhada ao órgão assinada por pesquisadores e organizações ambientais do estado articulados pela APREMARA.
No último mês de junho, o IBAMA rejeitou o EIA-RIMA em parecer técnico sobre os estudos, pontuando que os estudos complementares solicitados não foram atendidos pelas empresas, além de diversas insuficiências, entre as quais análises mais detalhadas dos impactos nas unidades de conservação, nas terras indígenas e atividades pesqueiras no rio Machado.
Ribeirão
A usina é parte do complexo hidrelétrico do rio Madeira, na divisa entre Brasil e Bolívia, que inclui quatro hidrelétricas — Jirau e Santo Antônio já construídas, Ribeirão e Cachuela Esperanza, em fase de estudos. Em 2012 o projeto foi incluído no Plano Plurianual (PPA) 2012-2015, entretanto, no mesmo ano foi vetado pelo Governo Federal, pois não estava no Plano Decenal de Energia e no Programa de Aceleração de Crescimento (PAC).
Após várias pressões dos governos boliviano e brasileiro, em 2017 os estudos de viabilidade foram financiados pelo Banco de Financiamento da América Latina (CAF), a empresa WorleyParsons junto com a Empresa Nacional de Eletricidade (ENDE) e Eletrobrás iniciaram os estudos em maio de 2018, com expectativa inicial de término em um ano e seis meses e apresentação em 2020.
Agora concluídos os estudos, as empresas pressionam e criam expectativa para apresentação dos resultados nas localidades e cidades ameaçadas. “Por isso as organizações seguem dialogando com lideranças e as comunidades para que não participem de qualquer processo de consulta ou apresentação sem que as propostas sejam discutidas”, conclui Kelvim.
*O conteúdo dessa reportagem é de responsabilidade exclusiva da Rede Jubileu Sul Brasil e não representa necessariamente o ponto de vista da União Europeia.