Por Flaviana Serafim – Jubileu Sul Brasil

Com ajuda do Estado, a chegada de uma mineradora num território é propagandeada como algo positivo para o “desenvolvimento local”, com geração de emprego e renda à população, com crescimento econômico da região e do país. Nada mais enganoso. Crimes socioambientais sem punição ou reparações, conflitos e violações de direitos humanos e da natureza, comunidades expulsas ou sofrendo com a falta de recursos naturais que sempre mantiveram a subsistência destas populações, são a realidade desse modelo de “desenvolvimento”.

Larissa Cabral, da Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale. Foto: acervo pessoal

No último dia 25 de janeiro, marcou-se dois anos do rompimento da barragem da Vale no município de Brumadinho (MG), e em novembro passado foram cinco anos do crime da Samarco em Mariana (MG), tragédias que somam mais 290 mortos, tendo em comum a impunidade, injustiça e marcas que persistem. Para tratar da dívida socioambiental e financeira das mineradoras com os povos e territórios, a Rede Jubileu Sul Brasil conversou com Larissa Cabral, da Secretaria Operativa da Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale – AIAAV. O período também marca o Janeiro Marrom, campanha para lembrar os crimes da Vale em Brumadinho, e para alertar sobre os males e violações causados pela mineração.

Criada em 2009, a Articulação atua numa rede formada por organizações não governamentais – entre as quais a Rede Jubileu Sul Brasil -, associações comunitárias, grupos religiosos, ambientalistas, sindicalistas e acadêmicos, entre outros, para denunciar os desastres provocados pela Vale S.A na vida de comunidades tradicionais, quilombolas, indígenas, camponesas, populações (conheça o site e curta a página da AIAAV nas redes sociais).

“Centenas de vidas foram perdidas, rios inteiros foram mortos, impactos na saúde física e mental das pessoas já foram comprovadas, tragédias com precedentes que poderiam ter sido evitadas, não fosse a ganância e a ambição do capital.  Mas, não podemos olhar para eles como casos isolados. Por onde passa, a mineração causa destruição. De uma forma ou de outra, somos todos atingidos e atingidas por ela. Não há extração de minério no mundo que valha uma vida”, afirma a militante.

“Há pouco mais de uma década, a AIAAV vem denunciando diversas violações às comunidades atingidas nos territórios e o que temos constatado é que os crimes socioambientais causados pelas mineradoras não são falhas ou acidentes, como se justificam. Eles são parte intrínseca desses megaprojetos”, pontua.

Terrorismo de barragem amplia a exploração e violações

Área atingida pelo rompimento da barragem em Brumadinho, em Minas Gerais
Área atingida pelo rompimento da barragem em Brumadinho (MG).
Foto: Daniela Fichino/Marcelo Cruz/AIAAV

Apesar dos dados de 2020 ainda não estarem sistematizados, os diversos casos acompanhados pela AIAAV indicam que há uma insegurança crescente das comunidades que vivem no entorno de áreas de mineração, por exemplo, quanto às barragens de rejeito, o que temos chamado de terrorismo de barragem”, explica Larissa.

Nestas áreas, cidades inteiras têm sido reordenadas pelas mineradoras, com sirenes tocando para evacuação de áreas de risco. “Não há transparência e fiscalização séria das barragens. A influência e interferência das mineradoras nas ações do Estado acabam por gerar manobras para esvaziar territórios e expandir a área minerada”, denuncia.

Na barragem Norte/Laranjeiras, em Barão de Cocais, a Vale anunciou em novembro a elevação do nível de emergência para 2, provocando desespero nas mais de 30 famílias da comunidade e outras da região. A Vale não entregou a Declaração de Condição de Estabilidade (DCE) de 2020, o que levou à interdição da barragem em março passado, mas a estrutura já estava desativada em 2019 e, segundo os trabalhadores, sem apresentar riscos reais de rompimento. 

A Vale usou o mesmo terrorismo de barragem na região de Socorro, também em Barão de Cocais, com evacuação da população e tomada da área para ampliar a exploração mineral, da mesma forma que em Antônio Pereira, em Ouro Preto. E em Parauapebas (PA), a 700 quilômetros de Belém, agricultores sem-terra foram atacados por seguranças privados da empresa, em junho de 2020, com uso de bombas de gás e disparo de balas de borracha ferindo inclusive crianças.

A Justiça não é justa

A circulação de minérios faz parte das chamadas redes globais de produção (RGPs), por meio da qual bens e serviços são produzidos, distribuídos e consumidos, numa cadeia que é integrada, mas com funcionamento geograficamente disperso, o que espalha os impactos socioambientais e econômicos sobre os povos de diferentes países. Para atender principalmente a demanda chinesa por minérios, essa indústria global atua lado a lado com o projeto neoliberal de desenvolvimento, em que a obtenção de lucros e acúmulo de riquezas vão até às últimas consequências.

O setor atua com respaldo total do Estado, que afrouxa a fiscalização, os licenciamentos e controles ambientais para favorecer os projetos de mineração, e assim as mineradoras transferem os riscos e impactos sobre as populações e territórios geralmente já vulneráveis financeiramente. O mesmo ocorre com as “vistas grossas” de todas as esferas de governo para o descumprimento de leis e medidas de segurança, num descaso que não raro é atrelado a processos eleitorais que elegem representantes dos interesses dessa indústria. Isso sem contar com o apoio estatal pelo uso de dinheiro público para financiamento, como o BNDES no país, e ainda o suporte de instituições financeiras internacionais, como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

Larissa ressalta que não é diferente quanto aos direitos humanos. “As decisões e acordos sobre a atuação das empresas do setor e o Estado são feitas sem a participação da sociedade civil. Temos visto, sobretudo no (des) governo de Bolsonaro, o aprofundamento de uma agenda anti-direitos, sustentado pela falta de acesso à informação, pela criminalização dos movimentos sociais e de lideranças etc. Também são inúmeras as denúncias de violências contra defensoras e defensores de direitos humanos, neste período de intenso sucateamento dos programas de proteção”.

Escola atingida pelo rompimento da barragem de Mariana, em Minas Gerais
Escola atingida pelo rompimento da barragem de Mariana (MG). Foto: Isis Medeiros/Amazônia Real

Luta exige alianças, atuação coletiva e organizada da sociedade civil

Sem o empenho ou a atenção das empresas e governos para solucionar os muitos impactos ou reparar os direitos violados das comunidades, a sociedade civil é que tem assumido o papel na defesa dos atingidos e atingidas, dando visibilidade às injustiças causadas pelo setor de mineração.

A luta pressupõe organização política e construção de alianças amplas no Brasil e no âmbito internacional, exige uma sociedade civil com atuação coletiva e organizada, engajada num processo de mobilização permanente para afirmar o desejo de autonomia e soberania dos territórios, destaca Larissa.

“Para tal, é preciso investir em uma contra narrativa capaz de mobilizar a opinião pública em favor da legitimidade da reivindicação, reconhecidamente justa e necessária à sociedade e às gerações futuras. Ao mesmo tempo, um eixo de atuação estratégico é a reivindicação para a criação de instrumentos normativos e legais que institucionalizem mecanismos condicionantes, restritivos e/ou proibitórios à extração mineral”.

Nesse sentido, a AIAAV tem entre as estratégias de ação a reivindicação de se proíbam ou sejam impostas restrições às atividades de mineração, além do entendimento da necessidade de territórios livres de mineração, defesa da reparação total de direitos violados e dos impactos socioambientais como um processo de transição.

“Por reparação integral consideramos tanto a dimensão da violação dos direitos humanos e ambientais, como o direito fundamental das vítimas. Isso implica numa luta política por reconhecimento e afirmação enquanto atingidas e atingidos, considerando aqui não somente as vítimas diretas, mas também as vítimas indiretas (familiares) e as vítimas coletivas, como povos indígenas e outros povos tradicionais e ‘vítimas em potencial’, referentes ao tecido social”, pontua a articuladora.

Memorial das vítimas de Brumadinho exposto em Botafogo, no Rio de Janeiro
Memorial das vítimas de Brumadinho exposto no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro (RJ), pela AIAAV.
Foto: Daniela Fichino/AIAAV

Mineração e Covid-19

Nem o coronavírus freou a exploração de minérios no Brasil. Por meio da Portaria 135/GM, logo no início da pandemia, em março de 2020, o Ministério de Minas e Energia (MME) declarou como o setor como serviço essencial, e a medida foi endossada no mês seguinte pelo Decreto 10.329/2020 do governo federal de Jair Bolsonaro.

A AIAAV mapeou a incidência da Covid-19 na mineração, numa pesquisa em parceria com o Movimento Nacional Pela Soberania Popular na Mineração (MAM) na região da Bacia do Rio Doce (MG). O levantamento mostrou que os contágios em municípios onde a atividade das mineradoras seguiu intensa mesmo na pandemia foram não só maiores, como crescentes na comparação com cidades sem projetos de mineração.

“A pesquisa exemplifica que a rota da exploração mineral colaborou no processo de disseminação de Covid-19 no Estado e que não teve curva decrescente em praticamente nenhum município onde a atividade minerária não parou. Situação que, se ampliássemos a amostra, certamente se confirmariam em outros estados”, explica Larissa.

Enquanto mais de 2,1 milhões de pessoas perderam a vida para a Covid-19 no planeta, o setor de mineração alcançou, pela primeira vez na história, US$ 1 trilhão em valor de mercado, considerando as 50 maiores mineradoras do mundo, segundo dado do Observatório da Mineração, e com a Vale como a terceira do ranking, valendo US$ 54 bilhões.

A vida acima da dívida! Reparações já!

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