Texto e fotos Karla Maria | Rede Jubileu Sul Brasil
A ansiedade de pegar o primeiro voo da vida, de deixar o bairro do Jangurussu para trás naquele Ceará de padim Ciço, e aterrissar em São Paulo para partilhar a vida, a poesia, a sua realidade e a de tantas mulheres foi a missão de Rita de Cássia Silva Santiago, 51 anos. Ela é moradora do Gereba, uma comunidade da periferia de Fortaleza. Rita é uma mulher alta, magra, negra de sorriso largo e representa bem as mulheres que participaram do Projeto “Nós, mulheres em defesa e na luta por direitos”, e que participaram entre os dias 20 e 22 de julho, da Oficina Nacional de Cartografia Social, coordenada pela Rede Jubileu Sul Brasil.
Na ocasião, a cearense e outras cerca de 30 mulheres das cidades de Fortaleza, São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Rio de Janeiro, Francisco Morato e São José dos Campos compartilharam a realidade de seus territórios, do dia a dia, marcado pela omissão do Estado e pela violência institucional que se manifesta de diversas maneiras.
“Moro no conjunto perimetral que é conhecido como Gereba. Moramos em um local que não existia no mapa, nem podíamos chamar uber, mas agora existe porque temos direito de estar no mapa. Nós, oito mulheres, saímos batendo de porta em porta para fazer um censo da nossa comunidade. Fizemos esse levantamento e apresentamos a Cartografia Social para os moradores da nossa comunidade conhecerem a nossa realidade e tudo aquilo que a gente tem”, disse Regina, orgulhosa do trabalho feito.
Rita não levou “só” cidadania às mulheres e aos homens do Gereba. Juntas, as mulheres do Jangurussu, deram novo significado à cidadania e ao protagonismo da mulher na comunidade com poesia. “Um lugar que nos fortaleceu, nos ensinou e nos educou. Um caminho todo nosso, logo dali brotou […]”, declamou Rita que participa do grupo de mulheres que se fortaleceu ao longo do Projeto “Nós, mulheres em defesa e na luta por direitos”, graças a parceria do Instituto Negra do Ceará (Inegra), que apoio e articulou o projeto em Fortaleza.
O processo de realizar o diagnóstico de suas realidades, chamado metodologicamente pela coordenação do Projeto de Cartografia Social, levou cerca de um ano para ser realizado nas diferentes regiões com mulheres das comunidades, que em sua maioria, não tinham engajamento político ou de militância por seus direitos. O exercício de olhar para seus territórios e ali destacar quais são os aparelhos públicos disponíveis para jovens e idosos terem um lazer, quais as unidades básicas de saúde disponíveis entre outros abriu os olhos da população para a carência a que estão submetidas, e mais, à necessidade de se exigir das autoridades públicas a aplicação de políticas públicas pensadas a partir da realidade das mulheres.
Simone Miranda é uma mulher forte, como todas que aceitaram o desafio de estarem ali para partilharem suas realidades. Ela deixou Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, por três dias para representar o Coletivo de Mulheres de São Mateus. “Somos uma comunidade muito carente. Não temos uma creche, não temos nada. Temos a gente agora”, disse Simone animada e emocionada.
Simone destaca que o acesso a posto de saúde e ao transporte público são distantes e também por isso de difícil acesso. “O que está próximo da gente é o tráfico, a Igreja e o Curumim”, destacou a mineira. Curumim é um espaço “abandonado” pelo poder público que foi diagnosticado por meio da Cartografia Social e que o Coletivo de Mulheres de São Mateus negocia com as autoridades públicas para que o mesmo se transforme em um possível Centro Cultural da comunidade, geridas por elas mesmas.
Para Ermelinda de Fátima Heleno de Melo, da Rede Feminista que aplicou o projeto com as mulheres em Contagem, o processo da Cartografia Social possibilitou uma desnaturalização da presença do tráfico de drogas na comunidade. “No início, na fala das mulheres havia uma naturalização sobre o tráfico e à medida que a gente foi fazendo o encontro, a fala das mulheres do grupo mudaram o posicionamento. Ao trabalhar esses processos dentro da comunidade desnaturalizamos a lógica da presença do tráfico na comunidade, claro que não vamos ao enfrentamento, mas apontamos que este é um diagnóstico de violência na comunidade”, avaliou Ermelinda.
Angela da Silva é uma militante de experiência, advogada, negra, dona de um coração gigante. Vive em São José dos Campos, no interior de São Paulo, na resistência e na luta por moradia contra as desapropriações feitas sem consulta e diálogo com a população. Ela é membro do Centro Dandara de promotoras Legais e acredita que promover grupos de mulheres que discutam os problemas da cidade com o recorte de gênero e raça são precípuos para o fortalecimento das mulheres e da sociedade contra os modelos neoliberais e patriarcais.
“Conseguimos avanços com a luta. As mulheres do Berta Flores e do Rio Comprido terão a regularização de suas casas. Na caminhada de fazer a carta nós conseguimos sensibilizar as pessoas. A gente cresceu com essa discussão. Nos debruçamos e vimos o quantos nós somos ousadas em querer e conseguir. A Cartografia surtiu tanto efeito na cidade que alunos de Serviço Social da Universidade do Vale do Paraíba (Univap) estão fazendo curso de extensão em Cartografia Social.
Angela e as mulheres do Cento Dandara de Promotoras Legais têm trabalhos que apontam bem o poder da organização feminina. Em São José dos Campos elas trabalham em abrigos que acolhem mulheres vítimas de violência e mulheres trans. “As mulheres precisam estar juntas pressionando o poder público e conquistando nossos direitos”, disse Angela.
As mulheres de São José dos Campos conseguiram em parceria com a Defensoria Pública de São Paulo, que o Município de São José dos Campos e as diretorias do Hospital Dr. José de Carvalho Florence e do Hospital Materno Infantil Antoninho da Rocha Marmo firmassem um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) para combater a violência obstétrica e em defesa do parto humanizado
A expectativa é que no ano de 2019 cerca de 30 mil gestantes e parturientes sejam beneficiadas pelo TAC que prevê a humanização do atendimento, o direito à informação adequada da gestante, o direito a ter acompanhante em todas as fases do atendimento, respeito à autonomia da gestante e ao direito de escolha em relação a métodos e procedimentos eletivos, dever de justificativa por escrito das práticas médicas interventivas e dever de adequação das práticas às orientações da OMS, Ministério da Saúde e governo estadual.
“O Jubileu nos trouxe a voz, as informações de como nos organizarmos. Comecei a escrever depois que entrei no Coletivo e com a Cinthia [Abreu, coordenadora do Projeto] passamos a pensar mais em autoestima, autocuidado. O nosso coletivo é marcado por muito sofrimento”, desabafou Mara, que como as demais catadoras garante cerca de R$ 300 por mês com a catação.
De São Paulo ouvimos ainda sobre a realidade das mulheres indígenas, que contaram com o apoio do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e da Pastoral Indigenista para a aplicação do projeto, que respeitando as características de cada etnia presente da região metropolitana de São Paulo, contava com agenda e metodologias muito próprias, já que as reuniões aconteciam nas casas das famílias indígenas e no tempo disponível.
“Elane da Silva Reis é pankararu. Nasceu no Pernambuco, mas mora há 30 anos em Francisco Morato, na grande São Paulo. Do alto do seu salto, Elane falou da dificuldade de manter sua identidade e de dar visibilidade à cultura de seus parentes. “É muito bom poder compartilhar a minha tribo com o povo, foi muito bom. Raramente a gente consegue dar visibilidade à nossa origem, mas a gente sempre tenta. Precisamos lembrar que a gente é indígena honrando a nossa história”, contou a jovem.
As mulheres imigrantes também marcaram presença. Jovens, artistas, advogadas, mães, algumas desempregadas partilharam na Cartografia Social a dificuldade que é viver em São Paulo, em tempos de intolerância e xenofobia. Paola Miyagusuku tem 33 anos, 31 de Peru e dois de Brasil. Nesta entrevista ela fala do processo de construção da Cartografia Social que para as imigrantes leva à reflexões sobre qual é a territorialidade que precisa e deve ser registrada.
“As mulheres imigrantes e refugiadas vem de outros contextos, então no início foi um pouco complicado de contextualizar, porque nossos territórios são também os nossos países de origem. São Paulo é uma cidade machista, racista e pensamos nela como nosso território, mas também tudo aquilo que trazemos com a gente. Aqui criamos comunidades entre as mulheres que vão além da nacionalidade. Juntas derrubamos as fronteiras e os muros”, disse a tímida Paola, dona de um abraço carinhoso.
O afeto aplicado nas palavras deste texto refletem – de certo modo – a dinâmica dos três dias de oficina norteadas pela autogestão das atividades, pela construção coletiva de soluções, pela partilha e acolhida amorosa e enfeitada dos ambientes, pela presença divertida das crianças, já que mulheres não deixam ser mães mesmo quando estão construindo um mundo melhor.
Mas a dor, a denúncia, e a indignação também tomaram conta dos debates da Cartografia Social. Se em Porto Alegre (RS) os pobres e imigrantes são apartados da sociedade em detrimento das corporações, como denunciou Ilisiane Vida; no Rio de Janeiro – de Marielle Franco assassinada – surgiu um grito contra a militarização que assola os pobres e negros das favelas, especialmente da Zona Oeste.
O grito é das mulheres de diversas idades, origens e lugares, moradoras e militantes da Zona Oeste do Rio de Janeiro, do Militiva: Militância Investigativa, que construiu uma Cartografia Feminista com o apoio do Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs) e nela a realidade em que vivem e resistem diariamente. Ouça*.
Para Cinthia Abreu, coordenadora do Projeto “Nós, Mulheres em defesa e na luta por direitos, a missão [do projeto foi cumprida. “Por meio da cartografia elas puderam identificar suas lutas. Muitas delas fazem muitas coisas e não percebiam. Criaram também muitas expectativas, e o fundamental é que o projeto mexe no processo de organização das mulheres e sobretudo na autoestima, com a força, com o afeto e encoraja outras mulheres”, destaca a coordenadora.
“Foi um desafio e não imaginei que seria possível. Saio daqui com a missão cumprida. Esse processo mexeu demais comigo, pelo afeto e confiança que depositaram em mim e na Rede Jubileu”, afirma. O projeto “Nós, mulheres, na defesa e na luta por direitos” ocorreu nos territórios de Porto Alegre, Belo Horizonte, Fortaleza, São Paulo e São José dos Campos. Contou com realização da rede Jubileu Sul Brasil e apoios do Instituto Irmãs da Santa Cruz, Adveniat, Cafod e DKA.
* A denúncia foi feita por uma das mulheres que vive na zona oeste do Rio. temendo sua segurança ela pediu para não ser identificada.