Por Cese
Entre os dias 11 e 14 de abril, cerca de 150 pessoas percorreram as margens do Alto, Médio e Baixo Rio Doce e trouxeram na bagagem as histórias, as resistências, injustiças e os impactos do maior crime-tragédia da mineração brasileira: o rompimento da barragem de rejeito de mineração da Samarco (BhP/Vale), em Mariana (MG), em novembro de 2015. A jornada fez parte das atividades da Caravana Territorial da Bacia do Rio Doce, que teve como objetivo visibilizar as consequências do crime socioambiental; mobilizar e registrar denúncias das violações de direitos das comunidades atingidas; e anunciar alternativas que avancem na recuperação socioambiental da região, apontando para o fortalecimento de atividades produtivas e econômicas mais sustentáveis, como a agricultura familiar, camponesa e agroecológica.
Entre os dias 15 e 16, as rotas se encontraram em Governador Valadares (MG) e realizaram atividades e mobilizações contra a invisibilidade e impunidade do desastre. A Caravana foi articulada por mais de 40 organizações da sociedade civil, dentre elas a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), a Associação Brasileira de Agroecologia (ABA), a Articulação Mineira de Agroecologia (AMA), a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), a Associação de Geógrafos Brasileiros (AGB), Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE), os movimentos sociais (MAB, MST, MPA, MAM), as universidades (como a UFV, UFJF, UFES), entre outras organizações locais.
Nas atividades de culminância da Caravana, foram realizados debate sobre mineração e apresentação de grupos culturais locais no dia 15; e caminhada e ato político no sábado seguinte.
Mesa política
A Mesa Politica “Mineração, desenvolvimento e água” tomou a tarde do dia 15. Abrindo o debate, os Povos Krenak acolheram o momento de encontro das quatro rotas da Caravana, com saudação ao Grande Rio Watu, marcando o protagonismo dos povos ao redor da Bacia do Rio Doce.
Para refletir sobre a conjuntura e alimentar a discussão, a mesa foi composta por Gabriel Rivo e Padre Nelito, representantes da Comissão de Criação do Fórum Permanente em Defesa do Rio Doce; Edmundo Antonio Dias Netto Jr – Procurador da República (MPF-MG); Marcelo Firpo, representante da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco); e Douglas Krenak, representante do Povo Krenak.
O Procurador da República (MPF-MG), Edmundo Antonio Dias Netto Jr, se posicionou, afirmando que os principais direitos negados aos atingidos pelo crime da Samarco são o direito à informação e à participação nos processos decisórios de negociação. “A realização do acordo entre União, Estados de Minas Gerais e Espírito Santo e as empresas, sem a participação dos atingidos, é o mesmo que alguém dispor dos direitos de outra pessoa sem ouvi-la, ou seja, é tratar essa pessoa como objeto de direitos e não como sujeito de direitos”.
Estas violações têm atingido de modo especial os povos tradicionais que vivem no curso do Rio, uma vez que há descumprimento de acordo firmado internacionalmente. “Com relação aos povos Krenak Tupiniquim, Guarani e demais povos e comunidades tradicionais, a União sequer aplicou a Convenção 169 da OIT, que prevê a necessidade de realização de consulta prévia, livre e informada sobre as medidas administrativas que possam afetá-los direta ou indiretamente”, avalia.
Douglas Krenak leva para a mesa de debate a discussão sobre o sagrado que reside no Rio Doce para os povos originários afetados. “Hoje a gente se encontra numa situação de desespero. Porque o rio é fonte de vida de nosso povo. O problema não somos nós, mas ações de mineração, barragens descontroladas que vêm causando toda essa desgraça, um genocídio a longo prazo”.
Para o Krenak, a luta não deve parar enquanto não ocorra o fim das atividades mineradoras ou, ao menos, a fiscalização séria da atividade. “O poder público e as empresas estão trabalhando para mandar essa riqueza para fora do país. E para a gente, nada. Para a gente só fica a tragédia”, constata.
Marcelo Firpo, da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), critica a instrumentalização do campo das ciências em favor do modelo de desenvolvimento atrelado à mineração. “Precisamos de uma ciência que reconheça, dialogue e aprenda com os saberes tradicionais. Não é uma negação da ciência especializada, mas sim a necessidade de uma ciência que atue de forma ética e que responda a questões fundamentais: ‘Qual a dimensão da poluição dos rios? Qual o nível de contaminação que afeta as cadeias alimentares? Que alternativas temos de curto e médio prazo para contribuir com a qualidade de vida dos povos e comunidades da região?’”, se questiona, provocando a Caravana a construir propostas que contemplem os saberes tradicionais e populares.
“O silêncio da grande mídia é criminoso, assim como o crime da barragem. Mas se eles têm capital e mídia a seu favor, temos uns aos outros”. É com essas frases, que Gabriel Rivo convoca os presentes a se mobilizarem para participação no Fórum Permanente em Defesa do Rio Doce. A ideia da criação do Fórum é de unir forças pra criar uma política para a Bacia do Rio Doce e reconquista de direitos.
Ato político
“Águas para a vida, não para a morte!” foi o grito que ecoou pelas ruas do centro de Governador Valadares (MG) na tarde do dia 16de abril, durante caminhada que reuniu participantes da Caravana Territorial da Bacia do Rio Doce, moradores locais e comunidades tradicionais impactados pelo crime-tragédia. O intuito da mobilização popular foi visibilizar as consequências do desastre socioambiental e convocar os residentes e lojistas da cidade a se unirem na luta pela recuperação do Rio.
A caminhada fez parte da programação da culminância da Caravana. Cartazes, cantigas, performances, faixas e gritos de ordem marcaram a passagem dos manifestantes de todo o Brasil, que saíram da Praça dos Pioneiros rumo à Estação da Vale.
“O povo tá na rua, ô Vale, a culpa é sua!”
Moradores de Governador Valadares, representantes de comunidades tradicionais e de povos originários marcaram presença na caminhada, para denúncia de como o modelo de desenvolvimento adotado no Brasil atinge suas existências e relato das inúmeras violações de direitos a que se encontram submetidos com o rompimento da barragem de rejeitos em novembro do ano passado.
Moradora da periferia da cidade, Gilsa Santos relembra dos dias em que seu bairro ficou sem água após a tragédia e das brigas pelo líquido que passaram a ser travadas entre os próprios vizinhos. A precariedade do acesso à água potável mobiliza Gilsa a se unir na pressão para que seus direitos sejam reavidos. “Esse rio não está morto, ele vive em mim”, sintetiza, expressando sua esperança de que o Rio Doce volte a viver.
“Queremos progresso de vida, não de morte”, sentencia o guarani Wera kwaray, denunciando como os impactos da visão desenvolvimentista que rege a economia do país afeta o modo de vida dos povos originários, mesmo antes do rompimento da barragem. “Nós queremos que o poder público mostre seu papel, mas não como autoridade comprada pelos recursos, pelo dinheiro, pela ganância. O que a gente vê é que a autoridade que se diz defensora do meio ambiente está sendo cúmplice da matança dos seres humanos, dos animais e dos peixes que vivem no Rio Doce”, conclui o guarani.
O pescador José de Fátima Lemos ainda aponta como a mineradora tem tentado cooptar lideranças locais. “Fomos nós que recebemos uma avalanche de minérios. Se estão achando que vão nos calar com esses salários, não vão!”, exclama. “Estamos juntos pela vida do Rio Doce. Água é vida, pescador é vida, indígena é vida. Sem água, morreremos juntos”.
“Temos que transformar luto em luta”, pondera o professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (campus Governador Valadares), Reinaldo Queiroz. Para o acadêmico, são muitos os impactos na água, no solo e na vida do povo e somente o combate à impunidade trará de volta a vida do Rio.
“Pátria livre, venceremos!”
O ato foi encerrado com leitura da carta política da Caravana do Rio Doce na Praça da Estação da Vale, com relatos de experiências das rotas que percorreram a Bacia do Rio Doce. Compõem o documento denúncias dos impactos do crime ambiental e anúncios de alternativas de desenvolvimento que avancem na recuperação socioambiental da região e apontem para o fortalecimento de atividades produtivas e econômicas mais sustentáveis, solidárias e saudáveis. A íntegra da carta será divulgada na próxima semana na página da Caravana no facebook: https://goo.gl/5RKJq4
Eliza Chaves, participante da Rota 2 (Alto Rio Doce – Vale do Piranga e Casca), coloca na balança que, apesar da Caravana ter visto e vivenciado diversos exemplos de como a tragédia afetou as comunidades tradicionais locais, os dias na estrada suscitaram um sentimento de esperança. “Vimos trabalhadores e trabalhadoras da agricultura familiar e a juventude organizados, comunidades produzindo remédios homeopáticos. Ou seja, não é só destruição, também se mostrou pulsante a força do povo. Juntos somos mais que a Vale”, ressalta a caravaneira.
O protagonismo das mulheres nessas experiências de resistência são apontados pela pesquisadora do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), Marianna Brito, como ponto-chave de observação da Rota 1 (que percorreu Mariana e Bento Rodrigues). “São elas que movem a agricultura familiar nas regiões que passamos. Lição que tiramos é que precisamos fortalecer a auto-organização das mulheres, para que outro modelo de desenvolvimento seja possível e para que elas ocupem mais espaços de formulação de políticas”, determina, emendando avaliação para o momento político atual. “E precisamos fortalecer o mandato da primeira mulher eleita democraticamente em nosso país”, no que é seguida, em coro, pelos participantes do ato, em defesa da legalidade democrática no país: “não vai ter golpe, vai ter luta!”.