Por Carlos Drummond | Carta Capital
O Banco Mundial realiza um ataque global sem precedentes às terras públicas e consuetudinárias, isto é, aquelas atribuídas pelos costumes a exemplo das áreas indígenas e a escalada da instituição encontra uma “receptividade assustadora” no Brasil, alerta o centro de pesquisas britânico Bretton Woods Project. A pressão pela privatização está estabelecida no projeto Enabling Business Agriculture(Capacitando a Agricultura Empresarial) que prescreve reformas de políticas para facilitar o acesso à terra para o agronegócio às custas de agricultores familiares, pastores e povos indígenas em troca de concessão de crédito pela instituição. Os detalhes estão na análise intitulada The highest bidder takes it all: The World Bank’s new scheme to privatise land in the Global South (Quem der o maior lance leva tudo: o novo esquema do Banco Mundial para privatizar terras no Sul Global), publicada neste mês no site do BWP.
O Banco Mundial sugere que os países de baixa renda não gerenciam aquelas terras de maneira efetiva e recomenda a sua privatização. Os governos devem se tornar corretores de terras públicas e indígenas com “alto valor econômico potencial” para os interesses privados, de modo que possam ter seu “melhor uso”.
A menção explícita ao País está no tópico denominado “A guerra aos povos indígenas e aos direitos dos agricultores”, que começa com este parágrafo: “A doutrina do Enabling Business Agriculture do Banco Mundial encontra ecos assustadores no recém-eleito presidente de extrema direita do Brasil, Jair Bolsonaro, que pretende colocar no mercado terras ‘economicamente valiosas’ ao usar a abolição de terras indígenas protegidas para expandir a pecuária, agricultura industrial e extração de recursos. Considerando que ‘onde há terra indígena, há riqueza sob ela’, Bolsonaro está ameaçando a própria sobrevivência das centenas de comunidades indígenas que vivem naquela terra, enquanto seus planos provavelmente levarão a mais desmatamento, aceleração da crise climática e aumento da degradação ambiental, representando uma grande ameaça para bilhões de pessoas em todo o mundo.”
‘Liberdade’ para o agronegócio
O projeto Enabling Business Agriculture foi lançado pelo Banco Mundial em 2013 a pedido do G8 como uma das chamadas “ações capacitadoras” para a então recém-formada Nova Aliança para a Segurança Alimentar e Nutrição. O objetivo é ajudar a criar “políticas que facilitem a realização de negócios na agricultura e aumentar a atratividade do investimento e a competitividade dos países”. Para alcançar isso, o Enabling Business Agriculture identifica as “barreiras jurídicas” para o agronegócio e prescreve reformas políticas para removê-las. Sob a orientação do Banco Mundial os governos deveriam, por exemplo, afrouxar os regulamentos sobre sementes e produtos fitossanitários, ou seja, fertilizantes e pesticidas. O governo brasileiro, é importante acrescentar, empreende uma escalada sem paralelo no mundo de liberação da venda de pesticidas causadores de doenças e mortes em sintonia com esse afrouxamento de regulamentos recomendado pelo Banco Mundial.
Para regulamentar os acordos de posse de terra dos países e “aumentar a produtividade do uso da terra” – dizem os analistas do Bretton Woods Project – o Banco Mundial“solicita aos governos que formalizem os direitos de propriedade privada, facilitem a venda e o arrendamento de terras para uso comercial, sistematizem o arremate de terras públicas em leilão pelo lance mais alto e melhorem os procedimentos de expropriação. A abordagem do Banco, portanto, fornece uma via legal para o aumento da desapropriação, concentração e tomada de terras. Esta agenda é tornada óbvia pois o Banco incentiva os governos a priorizar a formalização de direitos de terras privadas em ‘áreas agrícolas de alto potencial’. O Banco considera outras formas de posse da terra, como posse regular ou consuetudinária, apenas ‘áreas rurais com menores níveis de potencial agrícola’”.
Inicialmente focado em 12 áreas temáticas, incluindo sementes, fertilizantes,comércio e maquinaria, o último relatório da EBA, publicado em 2017, introduziu um novo indicador: a terra. A correlação entre as exigências do Banco Mundial e a concessão de crédito é explicada pelo Bretton Woods Project neste trecho da análise citada acima: “com financiamento dos governos dos EUA e do Reino Unido e da Fundação Bill e Melinda Gates – todos fortes proponentes da agricultura corporativa – a instituição embarcou em um novo esforço sem precedentes para enfrentar a ‘questão da terra’ nos países em desenvolvimento. Ao introduzir um indicador de terras no projeto EBA, o Banco criou um instrumento para prescrever reformas de políticas que facilitarão o acesso à terra para o agronegócio. Introduzido como piloto em 38 países em 2017, o indicador de terras deverá ser expandido para 80 países no relatório de 2019 da EBA. Conforme detalhado em relatório do Instituto Oakland de 2019 (The Highest Bidder Takes It All: The World Bank’s Scheme to Privatize the Commons ou O autor do maior lance leva tudo: o esquema do Banco Mundial para privatizar os bens comuns), esse indicador classifica os países em suas ‘leis e regulamentos que impactam o acesso aos mercados de terra para produtores e agronegócios’ e avalia os ‘encargos regulatórios’ que afetam o acesso privado à terra. As pontuações obtidas pelos países destinam-se a condicionar o dinheiro da ajuda e do investimento.”
Mais de 3,1 bilhões de pessoas em todo o mundo – chama a atenção o Bretton Woods Project –, o equivalente a metade da humanidade, dependem da terra para sua subsistência, a maioria nos países em desenvolvimento. A maior parte desses indivíduos não tem títulos de propriedade da sua área. Do ponto de vista legal, é tipicamente uma terra estatal ou terra consuetudinária. No Sul Global, recursos naturais como água, florestas, savanas, terras agrícolas e pastagens são frequentemente usados e administrados comunitariamente sob as leis consuetudinárias. “No entanto, a terra consuetudinária geralmente não é considerada como propriedade de um indivíduo que pode ser comprada ou vendida, mas é valorizada como um bem comum, um bem ancestral com profundo significado social e cultural, que deve ser preservado para as gerações futuras. É por isso que agricultores, pastores e povos indígenas em todo o mundo têm resistido à tomada de suas terras, protegendo seus meios de subsistência, bem como sua identidade cultural e social. A resistência tem sido frequentemente recebida com repressão e violência por milícias privadas ou forças de segurança do governo, que tiram a vida de centenas de defensores da terra todos os anos. Com protestos e bloqueios, petições, recursos administrativos ou ações legais, entretanto, muitas dessas lutas foram bem-sucedidas em retardar, interromper ou atrasar o estabelecimento de plantações em grande escala.”