Com mais de 400 aerogeradores com tamanho equivalente a prédios de 43 andares, projeto de parque eólico da Quinto Energy teve o licenciamento prévio aprovado sem o Estudo de Impacto Ambiental (EIA); ambientalistas dizem que empreendimento coloca em risco áreas sensíveis
Por Paula Bianchi * | Edição Carlos Juliano Barros e Diego Junqueira
Em um vídeo de apresentação em seu site, a empresa Quinto Energy define o Complexo Manacá, empreendimento de energia eólica e solar no semiárido baiano, como “o maior do Brasil” e o “3º do planeta”. A previsão é instalar pelo menos 405 torres eólicas, com investimento de R$ 10 bilhões.
Mas apesar de “colossal”, como descreve o narrador, o Complexo Manacá é tratado pelo governo da Bahia como de baixo impacto ambiental e teve a licença prévia aprovada sem a necessidade de apresentação do Estudo de Impacto Ambiental e do Relatório de Impacto Ambiental (EIA-Rima).
Esse conjunto de estudos técnicos detalha o impacto do empreendimento no ambiente, incluindo diagnóstico ambiental, análise dos impactos na região e nas comunidades e formas de monitoramento.
A legislação federal considera eólicas de baixo potencial poluidor e permite licenciamentos sem o estudo. Porém, determina que os parques precisam de EIA-Rima quando instalados em locais sensíveis. Zonas próximas a unidades de conservação ou com espécies ameaçadas de extinção, locais com vegetação remanescente de Mata Atlântica ou com rotas de aves são alguns exemplos.
Um cruzamento de dados realizado pela Repórter Brasil, a partir de coordenadas geográficas fornecidas pelo Ministério do Meio Ambiente, revela que tanto o município de Jaguarari quanto Campo Formoso, onde se planeja erguer o Complexo Manacá, estão integralmente localizados em áreas consideradas prioritárias para a conservação pelo governo federal. A região é classificada como de importância biológica “extremamente alta” e “prioridade de ação”.
Em grande parte localizadas na Caatinga, as duas cidades ocupam uma extensão de serras com resquícios de Mata Atlântica e Cerrado, além de abrigarem as nascentes de alguns dos principais rios do estado e de diversas espécies ameaçadas de extinção.
A Repórter Brasil mostrou que o município de Jaguarari, juntamente com a Universidade Federal do Vale do São Francisco, contabilizou ao menos 63 nascentes na cidade. Porém, no relatório técnico para concessão da licença prévia ao megaempreendimento, o Instituto de Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Bahia (Inema) considera apenas três nascentes.
A norma que incluiu os dois municípios dentro das áreas de preservação na Caatinga foi assinada pelo então ministro de Meio Ambiente do governo Michel Temer, Edson Duarte. Hoje, ele é o diretor de relações institucionais da Quinto Energy. Ex-deputado federal pelo PV da Bahia, Duarte é um dos principais defensores do projeto. Seu irmão, Edilson Duarte, figura entre os sócios da empresa.
A empresa vem sendo procurada pela reportagem desde o começo de junho, mas não retornou até a publicação desta reportagem.
Laços políticos e licença simplificada
Embora o governo estadual da Bahia não tenha exigido o estudo de impacto ambiental completo à Quinto Energy, a Assembleia Legislativa da Bahia concedeu uma moção de congratulação ao CEO da empresa, Rafael Cavalcanti, pelos seus “relevantes serviços prestados ao meio ambiente e ao setor de energias renováveis no Brasil”.
Sediada em Salvador e com um portfólio de nove projetos de energia renovável na Bahia, a empresa estima uma capacidade de 2,3 GW apenas de energia eólica com seus “gigantes”, como a empresa descreve as torres de Manacá. Somada à capacidade de produção de energia solar prevista pela empresa, é o equivalente a um quarto da Usina de Itaipu, a maior hidrelétrica do país.
Segundo a CNN, o ex-presidente da Petrobras José Sergio Gabrielli procura aproximá-la da estatal. À reportagem, Gabrielli confirmou que tem prestado consultoria à empresa na área de hidrogênio. Em seu site, a Quinto Energy afirma que implantação de um mega complexo de energia eólica e solar no sertão baiano tem com foco a produção de hidrogênio verde em larga escala.
Outro político que apoia os esforços da Quinto Energy é o também ex-ministro do Meio Ambiente José Sarney Filho. “Quero parabenizar toda essa empresa que tem uma importância que vai além do impacto econômico, mas principalmente pela contribuição ambiental”, disse em visita à empresa.
A documentação apresentada pela Quinto Energy ao estado inclui apenas um Estudo de Médio Impacto Ambiental, o EMI. “O EMI é um estudo simplificado, que facilita o licenciamento. O EIA é um estudo amplo, que requer mais tempo e engloba mais detalhes, o que seria necessário dado o tamanho deste empreendimento”, afirma Andrezza Oliveira, parte do movimento ambientalista Salve as Serras, que encaminhou uma denúncia formal contra o projeto ao Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA), em janeiro de 2023.
Entre outras questões, o documento cita a necessidade de preservação da região e pede uma “investigação sobre a forma de licenciamento que tem desconsiderado as leis e os danos dos empreendimentos”.
Em resposta à Repórter Brasil, o Inema informou que o empreendimento é classificado como de classe 4 – grande porte e pequeno potencial poluidor – pelo decreto estadual 14.024/2012, o que dispensaria o EIA-Rima. A licença prévia cita 690 aerogeradores, número previsto inicialmente pela empresa no projeto apresentado ao estado.
O próprio decreto, porém, cita resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) e do Conselho Estadual de Meio Ambiente da Bahia (Cepram) referentes a empreendimentos eólicos. A norma estadual exige o estudo completo de impacto ambiental a partir da instalação de mais de 120 aerogeradores.
O atual presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho, que participou da formulação da primeira resolução do Conama sobre eólicas em 2001, explica que, conforme a legislação federal, cabe aos estados definirem o grau de impacto ambiental de cada empreendimento.
Mas “existem exceções [na resolução atual] que muitas vezes não são respeitadas”. Segundo ele, a presença dos municípios em uma área de conservação indicaria a necessidade do EIA-Rima. “Alguns estados têm regras próprias com estudos com outros nomes. Mas o licenciamento precisa ter análise técnica de estudos ambientais, meio físico e sócio”, afirma.
Posição reforçada pela ex-presidente do órgão e especialista em políticas públicas do Observatório do Clima, Suely Araújo. Segundo ela, um empreendimento desta dimensão, numa área ambientalmente sensível e com comunidades locais, com modos de vida tradicionais, “deveria, sim, passar pelo rito completo com estudo de impacto ambiental”. “Se o empreendimento é de grande porte, e a área é sensível, quando eles vão exigir EIA-Rima?”, questiona.
Também parte do Salve as Serras, a professora Maria Rosa Almeida Alves, que estuda empreendimentos de energia renovável na região, acompanhou em novembro uma Fiscalização Preventiva Integrada realizada pelo MP-BA, em conjunto com técnicos do Inema. Ela conta que questionou os servidores do órgão estadual sobre a necessidade de preservação da região, mas ouviu que “as áreas não tinham relevância ambiental”.
A Repórter Brasil apurou que, em outra reunião realizada em uma das comunidades tradicionais do município, sem a presença de nenhum órgão público, o próprio Edson Duarte teria minimizado os impactos ambientais do projeto.
“Ele questionava tudo o que a gente dizia em relação aos impactos ambientais. O tempo todo só reafirmava que o empreendimento vai gerar renda e que as pessoas precisam ter dinheiro e que não vai ter prejuízo nenhum”, afirma Maria Rosa.
Questionado pela reportagem, o Inema afirmou que “a Licença Prévia emitida atesta a viabilidade locacional do empreendimento, tendo considerado as restrições ambientais e a preservação dos atributos naturais da região”. Leia a resposta na íntegra.
Segundo fontes ouvidas pela Repórter Brasil, apesar de o processo de licenciamento ser público, o estado tem dificultado o acesso aos documentos que fazem parte do trâmite. Até mesmo funcionários de órgãos ambientais não conseguem verificar os dados. Em março, o Grupo Ambientalista da Bahia (Gamba) solicitou formalmente todos os processos de licenciamento de empreendimentos eólicos no estado, mas até o começo de junho ainda não tinha recebido retorno.
“É uma caixa preta, não há nenhuma transparência. Eu mesmo, como conselheiro do Cepram, tenho tido muita dificuldade em acessar os processos de licenciamento [de empreendimentos de energia renovável]”, afirma Renato Cunha, coordenador do Gamba e membro do Conselho Estadual do Meio Ambiente.
O Ministério Público da Bahia, que acompanha o caso, também tem tido dificuldade para acessar os documentos. “Nosso objetivo é obter o máximo de informações possível e fazer com que os órgãos ambientais sejam muito criteriosos”, diz o promotor Igor Clóvis Silva Miranda. Ele destaca que a energia renovável virou uma política de Estado e ganha cada vez mais relevância.
No ano passado, 4.534 hectares de Caatinga foram desmatados em razão de empreendimentos de energia renovável, segundo o MapBiomas. A devastação foi 24% maior em relação a 2022.
Neste ano, 29 organizações, incluindo o Salve as Serras, encaminharam aos governos estaduais e federal e à Justiça as “Salvaguardas Socioambientais para Energia Renovável“, em que classificam os processos de licenciamento na região como “insuficientes” para compensar os danos.
Araújo vê as salvaguardas como um caminho para que as fontes renováveis não sejam deslegitimadas como importante componente da transição energética. “Apesar de ser uma alternativa importante para a produção energética, eles não podem simplificar os processos e excluir direitos”, afirma.
* Colaborou Isabel Harari