“É preciso uma política pública que ampare pessoas afetadas por eventos climáticos extremos. Com essa preocupação, diversas organizações e movimentos sociais estão propondo uma legislação chamada ‘auxílio calamidade climática”.
Por Rosilene Wansetto*
O estado do Rio Grande do Sul está localizado em um importante corredor geomorfológico por sua localização geográfica. Está dividido por 497 municípios, destes 467 foram atingidos pelas fortes chuvas e enchentes, segundo dados da Defesa Civil do Estado [1]. A população é de 11 milhões de habitantes, sendo que 2,3 milhões de pessoas foram atingidas e destas aproximadamente 581 mil desabrigadas, 72 mil pessoas resgatadas e em abrigos, 161 mortes e 85 desaparecidos (dados em constante atualização).
A região do Estado do Rio Grande do Sul abriga o bioma Pampa, tão importante para o clima e para a sustentabilidade. Bioma muito afetado pelas mudanças climáticas antes mesmo das enchentes e pelas mudanças na legislação ambiental. Outro elemento para conhecer mais a região do RS tem a ver com a formação geográfica e sua topografia, com planaltos e planícies que favorecem o escoamento da água das chuvas para os rios da região: Jacuí, Sinos e Taquari, os quais deságuam no Guaíba e na Lagoa dos Patos, antes de alcançar o mar.
A região dos Pampas, mas não só, tem sofrido nestes últimos anos um retrocesso na legislação ambiental patrocinada por legislações estaduais e federais que facilitam a deflorestação das margens dos rios, assim como a destruição da mata ciliar. Ambos os importantes na proteção dos rios e servem como contenção das encostas quando de chuvas intensas, como as ocorridas desde o final de abril no RS. Essa mudança da legislação favoreceu o desmatamento para a criação de gado de corte, a expansão do agronegócio da soja, para exportação, e a plantação de eucalipto.
As consequências dessa política estatal equivocada e de desmonte da legislação ambiental, aliado ao abandono e falta de manutenção dos diques e casa de bombas essencial para a proteção de enchentes na região metropolitana, assim como o abandono das periferias das cidades, têm contribuído para o atual quadro de calamidade que acomete o estado do RS. Vale ressaltar que as mudanças climáticas e o seu enfrentamento se faz necessário a partir de mudanças no modelo de desenvolvimento e um planejamento a curto, médio e longo prazo com a adaptação das cidades às mudanças que vêm para ficar. O que vimos no RS já presenciamos em outras regiões do país, como Nova Friburgo e Petrópolis, no Rio de Janeiro; na Bahia; em São Sebastião, São Paulo; ou no Amazonas, em proporções diferentes. Ou seja, as situações de calamidade podem ser diferentes em cada região, mas em todas elas precisamos de um plano de enfrentamento que privilegie as comunidades em situação de vulnerabilidade, o que nos indica a necessidade do enfrentamento do racismo ambiental, fortemente alinhado com o modelo como nossas cidades são construídas, privilegiando a especulação imobiliária e o mercado.
Plano de enfrentamento às mudanças climáticas – A capital gaúcha, Porto Alegre, e a região metropolitana, assim como as cinco ilhas atingidas pelas inundações do rio Guaíba, e as cidades do Vale do Taquari – que foram totalmente destruídas como Roca Sales e Muçum – não tinham nenhum plano de adaptação, nem mesmo diretrizes de enfrentamento às mudanças climáticas, mesmo que neste último ano tenham sido atingidas pela terceira vez com chuvas e enchentes. Desde as primeiras enchentes não se avançou em um sistema de proteção. Há cidades que, segundo estudos, não há nenhuma condição de serem erguidas no mesmo local, devem ser totalmente alocadas para outras áreas por segurança. Na situação dessas cidades é visível o descaso do poder público e o negacionismo aos alertas emitidos.
Faz necessário sublinhar que toda essa catástrofe climática tem efeitos advindos da natureza, porém a culpa ou a responsabilidade sobre toda essa situação de calamidade reside na ausência de políticas públicas que atendam a população, que vive nas áreas de maior vulnerabilidade, e de um sistema de proteção ambiental eficiente. Não é possível seguir negando que as mudanças climáticas estão em curso, as consequências e causas estão sendo sentidas e batem de forma mais forte nas pessoas que vivem em áreas de risco, encostas e nas margens dos rios.
Esse modelo de desenvolvimento capitalista é responsável, em parte, pelo que está sendo vivenciado por mais de 2,3 milhões de pessoas hoje no RS e que pode ser o futuro de outros milhões de pessoas se algo não for feito. Basta de falsas soluções e negacionismo. A prioridade no momento é salvar vidas, dar condições para que as pessoas possam voltar para suas casas, sem dúvida. É necessário pensar em soluções para que isso não venha mais a ocorrer, com planejamento e planos de adaptação como política pública.
Pessoas afetadas – Quando essas situações de calamidade ocorrem a população mais afetada é a que vive em áreas periféricas, em moradias precárias, comunidades indígenas, quilombolas, mulheres, crianças e idosos. Ressaltamos que a população do RS tem um alto índice de pessoas idosas – segundo dados do IBGE de 2022[2], o RS tinha 2.193.416 pessoas com 60 anos ou mais, o equivalente a 20,15% da população brasileira, em comparação. De modo geral, segundo dados da Defesa Civil, quase 80% da população do RS é atingida levando em conta que apenas 10% dos municípios não foram afetados, considerando os que decretaram estado de calamidade ou situação de emergência.
A solidariedade ativa do povo para com o povo é imensurável, com diversas campanhas que se multiplicam no país e internacionalmente. É o povo pelo povo, desde os voluntários salvando e resgatando vidas, assim como pessoas nos abrigos, nas cozinhas solidárias, populares, preparando os alimentos, pessoas organizando os abrigos – estas mesmas que perderam suas casas e estão se voluntariando, encontrando forças onde ninguém mais consegue ver esperança. E vemos mutirões acontecendo de limpeza e reconstrução em muitos locais.
Como reconstruir – A reconstrução perpassa por diversas áreas: moradias adequadas fora das áreas de risco, cidades que serão totalmente reconstruídas em outra zona, assim como escolas, unidades de saúde e toda a infraestrutura de água, esgoto, saneamento básico. Há diversas medidas dos governos federal, estadual e dos municípios para buscar soluções. A União suspendeu a dívida do estado do RS por 3 anos sem a cobrança de juros neste período, uma economia de R$ 23 bilhões. Espera-se que este recurso seja revertido de fato na reconstrução. O governo federal destinou um volume de recursos de R$ 60,7 bilhões ao Rio Grande do Sul. Desse total, R$ 46,2 bilhões configuram-se em novos recursos, destinados a uma série de finalidades, como o programa emergencial de acesso a crédito; ações de Defesa Civil; acréscimo de parcelas do Seguro-desemprego; intervenções emergenciais e reconstrução de rodovias; além de medidas voltadas à área da saúde e educação. Outros R$ 14,5 bilhões referem-se à antecipação de benefícios como Bolsa Família e Benefício de Prestação Continuada; antecipação de restituição do Imposto de Renda; antecipação de benefícios previdenciários e prorrogação na cobrança de tributos, entre outros.”[3]. O banco dos Brics destinou R$ 5,7 bilhões. O volume arrecadado pelo Pix do SOS Rio Grande dos Sul alcançou um valor de R$ 100 milhões [4]. Os recursos, segundo dados publicados, estão sendo aplicados para atender as pessoas e resolver o problema urgente com alimentação, água e dar as condições de infraestrutura de rodovias para o acesso de ajuda solidária, inclusive com medicamentos.
Contudo, toda esta situação no RS está intrinsicamente vinculada ao processo de financeirização da natureza, ao desmatamento e à venda de crédito de carbono, modelo defendido e apresentado desde as Conferências do Clima como solução para as mudanças climáticas, o que se demonstra como falsas soluções para conter as mudanças em curso.
Plano de adaptação – Medidas importantes e necessárias para reconstruir as zonas de proteção ambiental nas encostas, a redução de áreas da pecuária e agronegócio para uma produção sustentável e em harmonia com o ecossistema, desenvolver um plano de adaptação que priorize a vida humana e a natureza, com diretrizes que tenham como base a adaptação e a resiliência do clima no país, pois não podemos tratar somente o caso do RS, precisamos de base legal para um plano para o Brasil. Esses planos são fundamentais para construir cidades para as pessoas e não para o mercado imobiliário, infraestruturas que resistam aos efeitos das tempestades ou secas extremas, tendo como base primeira a preservação da vida.
E deste modo, com planejamento adequado de moradia, esgoto, saneamento, energia elétrica, estradas, sistema de saúde e de educação, enfim, um plano de adaptação não somente para conter alagamentos, mas uma mudança profunda no modo como pensamos hoje e de como historicamente a vida urbana foi alicerçada no cimento e no concreto cinzento dos edifícios. Temos exemplos e técnicas de cidades esponja, como na China. E para as pessoas se faz necessário uma legislação de apoio em situação de calamidade, é preciso uma política pública que ampare pessoas afetadas por eventos climáticos extremos. Com essa preocupação, diversas organizações e movimentos sociais estão propondo uma legislação chamada “auxílio calamidade climática[5]”.
A hora é agora, basta de falsas soluções para o clima.
*Socióloga, militante da Rede Jubileu Sul Brasil e membro da Pastoral da Moradia e Favela. Artigo publicado originalmente no portal da Comissão Episcopal para a Ação Sociotransformadora.
[1] https://www.defesacivil.rs.gov.br/defesa-civil-atualiza-balanco-das-enchentes-no-rs-21-5-18h
[2] Fonte: Censo Demográfico 2022.
[3] https://www.gov.br/secom/pt-br/assuntos/noticias/2024/05/governo-federal-lanca-portal-para-concentrar-informacoes-sobre-apoio-ao-rio-grande-do-sul consultado em 15/05/2024.
[4] https://www.defesacivil.rs.gov.br/doacoes-via-pix-do-sos-rio-grande-do-sul-ultrapassam-r-100-milhoes consultado em 15/05/2024.