Retirada de urnas funerárias por técnicos do Museu da Amazônia (MUSA) é mais um passo no embate dos moradores pelo reconhecimento da terra frente à ação de reintegração de posse movida pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), que alegava ocupação de sítio arqueológico para despejo da comunidade. A regularização vai beneficiar cerca de 3.500 famílias que têm suas casas no bairro Cidade Nova, na região Norte de Manaus
Por Flaviana Serafim – Jubileu Sul Brasil
As cerca de 3.500 famílias da comunidade Nova Vida, no bairro Cidade Nova, na Zona Norte de Manaus (AM), avançaram mais um passo no processo de regularização fundiária. As urnas funerárias e outros artefatos indígenas que estavam na área foram retirados desde maio por arqueólogos e, no final de julho, a Justiça Federal divulgou o relatório técnico final de inspeção judicial do sítio arqueológico Nova Cidade.
A retirada dos artefatos é parte do acordo, consensuado em março último entre a comunidade e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), que era autor de ação judicial movida em 2018 visando à retirada dos moradores sob alegação de que ocupavam uma área de sítio arqueológico. Em maio, também foi estabelecido acordo para anular a ação de retirada da comunidade, assinado com a presença do Ministério Público da União (MPU), Ministério Público Estadual (MPE), Defensoria Pública da União (DPU) e Defensoria Pública do Estado (DPE), além do Iphan e do Museu da Amazônia (MUSA).
O avanço rumo à regularização da terra é resultado da luta coletiva de moradores da comunidade, que contou com apoio jurídico da Rede Jubileu Sul Brasil, por meio da Ação “Mulheres por reparação das dívidas sociais”, que a Rede promove nos territórios de Manaus em parceria com a Cáritas Arquidiocesana. O esforço conjunto engajou ainda a Campanha Despejo Zero e Fórum Amazonense de Reforma Urbana. Hoje, as cerca de 3.500 famílias são compostas por 16 etnias indígenas, e por migrantes do Haiti, Peru e Venezuela.
Articuladora da Ação Mulheres em Manaus, Marcela Vieira explica que a finalização do relatório técnico é parte relevante da ação de reintegração de posse para que a regularização das terras seja efetivada.
“Para a comunidade é um avanço porque havia um impasse e o relatório técnico era necessário. Por meio da DPE, conseguimos essa articulação com o MUSA e assim os arqueólogos foram até a comunidade fazer a retirada das urnas para levá-las ao museu. É possível que um ou outro artefato ainda seja encontrado, mas tudo o que foi localizado ao longo desse processo já foi retirado”, afirma.
Nesse embate, a articuladora ressalta a importância da atuação coletiva. “Isso é um ganho para nós porque houve um protagonismo da comunidade na identificação e na localização dos artefatos. A comunidade ainda providenciou alimentação para os técnicos do MUSA que fizeram a retirada, foi uma grande mobilização em prol da causa da comunidade, que é finalmente concluir esse processo”, diz a articuladora.
Quanto aos próximos passos, Marcela explica ainda que a comunidade aguarda um parecer conclusivo do Ministério Público Federal sobre a ação de reintegração, permitindo que a comunidade conquiste urbanização e outras políticas públicas como educação, saúde, saneamento e transporte.
“Para nós com certeza é uma alegria ter conseguido avançar com apoio da assessoria jurídica do Jubileu Sul Brasil, que foi super importante para acompanhar o processo. Desde que iniciamos a Ação Mulheres, temos atuado fortemente nisso junto com a assessoria jurídica para que, com esse diálogo, a reintegração de posse seja, de fato, encerrada. Foi um grande passo”, completa.
Recontar a história
Em conjunto com o Iphan, a comunidade identificou as urnas que estariam na superfície do solo e ficaram à vista quando foi feita terraplanagem para abertura de vias na Nova Vida.
Os moradores participaram do projeto de resgate das urnas funerárias e de reuniões sobre a questão, contando sempre com a presença de lideranças indígenas, entre as quais o Cacique Raimundo. Todas e todas também estão orientados a informar imediatamente ao Instituto do Patrimônio Histórico caso sejam encontrados novos artefatos arqueológicos.
De acordo com as informações do relatório, os artefatos encontrados no solo teriam pouco mais de mil anos, datação que será confirmada em análise arqueológica futura. “Seriam vasos grandes, provavelmente utilizados para fermentação de bebidas ou sepultamento de pessoas, hipóteses que são investigadas quando dos estudos a serem feitos nos artefatos”, pontua o documento – material arqueológico que vai permitir “recontar a história, modus de vida, hábitos, crenças e outros aspectos de comunidades antigas, que residiriam na região em aldeias, com casas comunais em formato circular e com praça no meio”.
No entorno da capital amazonense a área urbana possui centenas de sítios arqueológicos, o que permite inferir que, por volta do ano 100, com a densa ocupação do local onde hoje está Manaus, o sítio Nova Cidade poderia contar com mais de 1.000 habitantes. As evidências científicas mostram que a capital e o município de Iranduba, na região de confluência dos rios Negro e Solimões, havia entre 10 mil e 30 mil habitantes quando chegaram os portugueses e espanhóis. Também revelam que as áreas eram habitadas há mais de 10.000 anos.
Vale destacar que o relatório cita uma manifestação do Iphan, na qual o instituto afirma que “para fins de mitigar os danos já ocasionados ao sítio arqueológico, as providências de resgate e subsequente análise dos artefatos se mostram adequadas. Ademais, a compensação seria tópico que deverá ser debatido em ação civil pública, que não envolva pedido de desintrusão”.
No documento, o próprio instituto, que foi autor da ação civil contra a comunidade, também reconhece que “quando da ocupação urbana da área, o Estado estava em mora no cumprimento de liminar que determinava o cercamento da área e manutenção de uma guarita, exatamente para evitar a invasão e/ou seu aumento”.
Entenda o caso
Desde setembro de 2018, a comunidade Nova Vida enfrentada uma ação civil pública de reintegração de posse movida Ministério Público Federal, na qual o MPF reivindicava a retirada das famílias alegando que a ocupação se formou numa área pertencente ao Iphan, onde está o sítio arqueológico conhecido como Cemitério dos Índios.
Com apoio da assessoria jurídica contratada pela Ação Mulheres em Manaus, as famílias puderam finalmente conquistar o direito à terra. A retomada do acompanhamento do processo permitiu que a comunidade fosse à Defensoria Pública e, após uma missão-denúncia realizada pela Campanha Despejo Zero em 2022, foi aberta uma mesa de negociação.
No último dia 24 de março, com mediação da Defensoria Pública da União e estadual, foi acordado que o MUSA faria a retirada e a guarda das urnas funerárias de forma gratuita, além da elaboração de um projeto com aprovação do Iphan e definição de um cronograma para retirada dos artefatos arqueológicos.
Em abril, foi assinado acordo entre as instituições governamentais para anular a ação de retirada dos moradores. Além de representantes da Rede Jubileu Sul Brasil, a assinatura do acordo contou com a presença da Habitat para a Humanidade e de movimentos populares que também apoiam e contribuem para a luta por direitos na comunidade Nova Vida.
As iniciativas da Ação “Mulheres por reparação das dívidas sociais” contam com apoio do Ministério das Relações Exteriores Alemão, que garantiu ao Instituto de Relações Exteriores (IFA) recursos para implementação do Programa de Financiamentos Zivik (Zivik Funding Program). Também integram o processo de fortalecimento da Rede Jubileu Sul Brasil e das suas organizações membro, contando ainda com apoios da Cafod, DKA, e cofinanciamento da União Europeia.