Tiremos a areia dos olhos. Neste país, meninas indígenas são sequestradas, estupradas e mortas por garimpeiros. Neste país, a cada dois dias, uma pessoa morre por intoxicação de agrotóxicos, sendo que 20% das vítimas são crianças e adolescentes. Neste país, em meio à maior crise sanitária do nosso tempo, e com uma decisão judicial que proíbe tal medida, mais de 27 mil famílias foram removidas das casas em que dormiam.

É neste mesmo país que, nos últimos 35 anos, a caatinga perdeu 40% de sua superfície natural de água e 10% da cobertura remanescente de vegetação nativa. E essas reduções, vale enfatizar, são causadas não por fatores naturais, mas por formas de uso e ocupação do solo, a exemplo do desmatamento nas margens dos rios, que resultam na improdutividade da terra e no ressecamento dos corpos de água.

É neste mesmo país que multinacionais como Bayer, BASF e Syngenta utilizam milhões de euros para incentivar grupos que tentam influenciar decisões do poder público em favor da liberação escancarada de agrotóxicos.

É neste mesmo país que, dias após ser condenado criminalmente por incitar a animosidade entre as Forças Armadas e o Supremo Tribunal Federal e usar de violência ou grave ameaça para tentar impedir o livre exercício dos Poderes, um deputado federal é “absolvido” pelo presidente da República e eleito para integrar cinco comissões na Câmara dos Deputados, sendo uma delas a Comissão de Constituição e Justiça, onde poderá ampliar a pressão pela aprovação de projetos que reduzam as atribuições da instância máxima do Poder Judiciário.

É neste mesmo país que quase 9 milhões de mulheres, homens, idosos e crianças passam fome todos os dias, mais de 19 milhões de pessoas estão em situação de insegurança alimentar grave (escassez de alimento) e mais da metade da população nacional tem algum nível de dificuldade no acesso a alimentos.

É neste mesmo país que, uma década depois da aprovação de uma Emenda Constitucional que lhes garantiu direitos trabalhistas, as trabalhadoras domésticas – majoritariamente negras – seguem ganhando, em média, uma remuneração inferior a um salário mínimo e 76% não têm sequer a carteira assinada.

É neste mesmo país – que escancara as suas heranças coloniais, escravocratas e racistas – que uma mulher negra idosa, como Madalena Santiago da Silva, passa 50 dos seus 60 anos de vida em situação análoga à escravidão, sem salários, vítima de maus tratos e roubada por quem deveria lhe garantir direitos trabalhistas.

O que esses dados e fatos têm a ver? Todos articulados entre si, nos dizem sobre a perversidade do modo de funcionamento do sistema econômico e do sistema político no Brasil. São situações que escancaram o objetivo brutal do capitalismo: enriquecimento cada vez maior dos já ricos e empobrecimento, adoecimento e morte dos explorados e exploradas.

Por explorados e exploradas, entendamos trabalhadores e trabalhadoras. Sim, porque na contramão da estratégia narrativa do próprio capital, de incluir na gramática cotidiana as expressões “empreendedor” ou “colaborador”, é fundamental lembrarmos da condição de classe trabalhadora como marca definidora da maioria da população brasileira.

É essa classe trabalhadora que tem enfrentado, todos os dias, um conjunto de ataques aos seus direitos. É essa classe trabalhadora que está cada dia mais empobrecida por consequência de um projeto político-econômico que promove a ampliação do desemprego e do trabalho precário, que aumenta assustadoramente o preço dos alimentos, que reduz a possibilidade de acesso a itens da cesta básica, que permite o descontrole da inflação e que implementa sucessivos aumentos no gás de cozinha, nos combustíveis e na conta de energia elétrica.

É essa classe trabalhadora que, pela gravidade da carestia no país, tem sido afetada também em termos de saúde mental. Como não ser impactado mentalmente quando não se tem um prato de comida para dar aos filhos e filhas? Desconsiderando a subnotificação, que certamente é altíssima, estamos falando de 11,3% das pessoas adultas do país com diagnóstico médico de depressão.

É essa classe trabalhadora que, pela ausência de legislações que regulem o poder das plataformas digitais (controladas por grandes capitalistas, a exemplo de Elon Musk) e pela falta de projetos de literacia midiática, tem recebido conteúdos de fake news e desinformação, que têm efeitos em suas próprias vidas e na democracia do país.

É essa classe trabalhadora que seguirá cada vez mais alijada de serviços públicos de qualidade, num país que insiste na privatização do seu patrimônio, a exemplo das tentativas de venda da Eletrobras, dos Correios e dos bancos públicos.

É essa classe trabalhadora que, inclusive pelo progressivo distanciamento dos setores democráticos nos últimos anos, tem sido alvo de fundamentalismos religiosos que negociam a utilização privada de recursos públicos em Brasília, promovem discursos de ódio contra a pluralidade das expressões da fé e fazem o Estado girar em seu benefício.

Todo esse cenário, que fala sobre o Brasil de 2022 e também sobre o Brasil pós-1500, deve servir de alerta contra perspectivas ilusionistas de humanização do capitalismo, que tem como uma de suas principais táticas a crença da resolução das desigualdades e problemas fundamentais unicamente no sistema eleitoral.

Depositar as esperanças da transformação no sistema eleitoral unicamente é manter o estado de inércia, de passividade.

A seriedade do cenário exige a prática do esperançar. Isso não significa preocupar-se com o Planalto. Ao contrário, é preciso, sim, estancar, conter o projeto genocida em curso. Porém, ao mesmo tempo, é essencial investirmos na planície. Isso passa pela priorização das resistências populares, da organização territorial, da mobilização diária.

As cenas dos indígenas pataxós contra o presidente genocida no sul da Bahia e a recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), atendendo a pleitos de organizações da sociedade civil, de derrubar decretos governamentais de destruição ambiental, são exemplos do que não podemos esquecer: só a luta muda a vida.

Não devemos, não pagamos!

Somos os povos, os credores!

Não à militarização!

Pela autodeterminação dos povos!

Rede Jubileu Sul Brasil, 03 de maio de 2022.

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