Comunidade Kurupi aguarda há mais de 20 anos demarcação de suas terras e entra com ação judicial a fim de obrigar a União e a Funai a demarcá-las

*Por Maiara Dourado, da Assessoria de Comunicação do CIMI

Indígenas Guarani e Kaiowá impunham borduna em sinal de resistência a invasão de seu território.Foto: Comunidade Kurupi

Há pelo menos 24 anos a comunidade Kurupi do povo Guarani e Kaiowá aguarda a demarcação de suas terras. Um tempo de espera longo demais para viver sob ameaças e conflitos, e não obter, nem ao menos, a conclusão dos trabalhos de identificação e delimitação de seu território, reivindicada pela comunidade desde 1999.

“A gente está sendo enganado há muito tempo. A gente se calou demais. Ficou muito tempo calado. Agora chega”, afirma Kunumi Vera’ju, morador do tekoha Kurupi, cujo território está localizado às margens da rodovia BR 163, no município de Naviraí, no estado do Mato Grosso do Sul (MS).

A impaciência expressa na fala de Kunumi se deve pela demora e omissão do Estado em dar andamento ao processo de demarcação da Terra Indígena (TI) Kurupi. A falta de providências quanto à demanda da comunidade é o principal argumento levantado pelos indígenas para mover uma Ação Civil Pública (ACP), ingressada na última sexta-feira (30) na Justiça Federal de Naviraí, contra a União e a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).

Com a ação, a comunidade busca a retomada do procedimento administrativo de identificação e delimitação da TI Kurupi que, apesar de ter sido requerida em 1999, só teve seu pedido de demarcação ratificado pelo Funai em 2005.

Audiência pública realizada no tekoha Kurupi na última quinta (29). Foto: Anderson Santos

O reconhecimento do pedido, contudo, não resultou no andamento do processo. A Funai – entidade responsável pela realização dos procedimentos administrativos que envolvem a demarcação das terras indígenas no Brasil – levaria mais três anos para instituir o Grupo de Trabalho (GT) de identificação e delimitação da área, instalada apenas em 10 de julho de 2008.

Hoje, passados quinze anos desde a instalação do GT, a TI Kurupi segue sem providência, paralisada na mesma fase inicial desde a abertura do processo. A ação proposta pela comunidade resulta de um longo processo vivido pelos Guarani e Kaiowá, que antes de decidir entrar com a ação tentou esgotar todas as medidas administrativas que estavam a seu alcance.

Foram inúmeras as cartas e pedidos de urgência enviados ao órgão indigenista oficial para que se concluísse os estudos de identificação e delimitação do território Kurupi – que é a primeira das sete etapas que constam no Decreto 1775/96, que regulamenta a demarcação das terras indígenas no país.

É importante frisar que a omissão do Estado desencadeou consequências drásticas à comunidade Kurupi, que vive sob a mira de policiais e jagunços da fazenda Balneário Tejuy, sobreposta a parte do território tradicionalmente ocupado pelos Guarani e Kaiowá.

As ameaças e os frequentes ataques sofridos pela comunidade são também levantados na ACP como motivação para seu ingresso. Para a comunidade, a incerteza quanto à demarcação de suas terras acirra a violência na região e aumenta a tensão entre indígenas e fazendeiros.

“A gente quer a nossa demarcação para acabar com esse tipo de conflito no campo, porque enquanto não sair alguma decisão boa para nós, vai continuar sendo dessa forma. Estamos entrando com essa ação, porque a gente quer resultado”, afirma o representante da comunidade.

Ação inédita

É a primeira vez que uma comunidade indígena figura como autora de uma ação judicial, o que torna a ACP um caso inédito no âmbito jurídico brasileiro. A singularidade está no fato de não ser o Ministério Público Federal (MPF), em nome da comunidade, a propor a ação, como comumente ocorre em processos de judicialização, e sim a própria comunidade.

Segundo Anderson Santos, assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Mato Grosso do Sul e advogado da comunidade na ação, junto com a advogada Gabriela Milani Pinheiro, as populações indígenas são consideradas pela Constituição Federal como pessoa jurídica, podendo, portanto, entrar como autoras de uma ACP.

A autoria da comunidade se ancora em uma ação semelhante, de 2020, em que uma organização indígena entra, também como autora, com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no Supremo Tribunal Federal (STF) contra o governo federal.

Na ADPF 709, a Articulação dos Povos Indígena do Brasil (APIB), em conjunto com outros seis partidos políticos (PSB, REDE, PSOL, PT, PDT e PC do B), demandaram a adoção de medidas de controle e contenção ao avanço da pandemia nos territórios indígenas.

O caso é emblemático pois destaca o protagonismo indígena na ação, o que para o assessor do Cimi “evidencia a autodeterminação e o rompimento da tutela, pois a comunidade litiga em juízo, perquirindo seus direitos constitucionais previstos na Constituição Federal de 1988 e efetivando os direitos previstos o art. 232 do texto constitucional”, explica.

Pedidos

Na ação, a comunidade solicita à Justiça Federal de Naviraí o atendimento de pedido liminar que determina à União e à Funai a retomada imediata dos estudos de identificação e delimitação da Terra Indígena Kurupi. Caso o pedido seja acolhido pela Justiça, a Funai tem o prazo de um ano para concluir e publicar o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RECID).

O documento é gerado após pesquisas realizadas pela equipe interdisciplinar que integra o GT de identificação e delimitação criado pelo órgão. No relatório, constam dados importantes de natureza antropológica, histórica, fundiária, agrária e ambiental capazes de definir os limites e a caracterização da área de usufruto e direito da comunidade.

A ação impõe ainda, multa diária de R$50.000,00 (cinquenta mil reais) em caso de descumprimento dos prazos, podendo incorrer até o cumprimento da ação.

Para a comunidade, o acolhimento da ação pela Justiça Federal é urgente. “A gente sabe que não é só Kurupi que está pedindo [medidas da Justiça], mas o nosso caso é emergencial porque a gente é o [grupo] que mais sofre ataques aqui no Mato Grosso do Sul”, esclarece Kunumi.

Expulsão, retomadas e conflitos

A luta dos Guarani e Kaiowá da comunidade de Kurupi contra a histórica tentativa de expulsá-los de seu território remonta ao século passado, quando buscavam resistir ao avanço da colonização sobre suas terras em meados dos anos de 1940. Entre despejos e retomadas, a comunidade conseguiu, em 2014, permanecer, mediante um acordo, em uma pequena área de mata, onde 100 famílias vivem em um espaço de 20 hectares, no interior da fazenda Balneário Tejuy.

Em junho do ano passado, a comunidade tentou retomar outra parte de seu território ancestral, chegando a ocupar a sede da fazenda Balneário Tejuy. Os indígenas, no entanto, foram duramente reprimidos, sendo atacados por funcionários da fazenda que, do ano passado para cá, têm ganhado reforços da segurança pública do estado do Mato Grosso do Sul e relevante apoio da Força Nacional.

Para Kunumi, é o “Estado que está matando o indígena, por isso que nós estamos entrando em ação contra o Estado”, explica. “A maioria [da polícia] está envolvida junto com os ruralistas. São tudo milicianos armados”.

Em maio desse ano, sob o pretexto de realizar uma ação social, uma equipe da Força Nacional escoltou funcionários da fazenda Balneário Tejuy que, com uma retroescavadeira, derrubaram e enterraram barracos da comunidade. A ação social, que forneceu lanches e pula-pula para crianças, foi usada para distrair membros da comunidade, enquanto policiais prestavam serviço de segurança a funcionários da fazenda.

Em uma outra ocasião, também nesse ano, a Força Nacional serviu, novamente, de policiamento para funcionários da fazenda Balneário Tejuy que trabalhavam na construção de uma cerca, que buscava dividir a comunidade Kurupi da sede da fazenda.

A conduta violenta da Polícia Militar (PM) do Mato Grosso do Sul também já é velha conhecida das comunidades indígenas do estado, que nos últimos anos têm sofrido ataques sistemáticos e ilegais por parte da força policial. Comunidades inteiras são despejadas sem mandado ou ordem judicial. Em cinco anos, já foram pelo menos dez ações do tipo, tendo duas sido efetuadas contra a comunidade Kurupi, uma em junho do ano passado e outra em março desse ano.

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