“O comércio entre os blocos aumenta a violência, as desigualdades, a crise dos direitos humanos e a emergência ambiental”.
Por Jucelene Rocha | Jubileu Sul Brasil
“Para nós população negra, especialmente para as mulheres, esse Acordo não é bem vindo e estamos buscando formas de enfrentar essa realidade. Não se trata apenas de dizer que a gente tem que resistir, mas da certeza de que temos que atuar”, afirma Raimunda Oliveira, mulher negra e articuladora da Rede Jubileu Sul Brasil em Salvador.
A globalização da economia empurrou os países a se organizarem em blocos, com o objetivo de gerar oportunidades comerciais e de investimentos mediante a integração competitiva das economias nacionais ao mercado internacional. É nesse cenário que hoje temos em curso a formalização do Acordo UE-Mercosul (União Europeia e Mercado Comum do Sul).
Apesar de se tratar de uma negociação em estágio avançado — o acordo comercial entre os dois blocos foi assinado pelo governo de Jair Bolsonaro e está em fase de ratificação —, e trazer implicações danosas para o futuro econômico e social dos países do Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai), não há informações suficientes ao alcance da população que será fortemente impactada.
“O comércio entre os blocos aumenta a violência, as desigualdades, a crise dos direitos humanos e a emergência ambiental”, sintetiza Tom Kucharz, militante da confederação espanhola Ecologistas em Ação.
Entre os componentes gravíssimos que integram a lista de impactos previstos com a aprovação do Acordo estão o aprofundamento do modelo agroexportador; a desindustrialização; o aumento do déficit comercial com a União Europeia; o aumento dos preços de medicamentos, insumos e tecnologias; a escalada das privatização em áreas como serviços postais, água e energia; o aumento da precarização do trabalho; a desregulamentação do sistema financeiro, com o livre fluxo de capitais; a diminuição da capacidade do Estado de incentivar pequenas e médias empresas e a agricultura familiar; o aumento da disseminação dos agrotóxicos; além dos graves impactos ambientais com a expansão da fronteira agrícola, com propriedades agropecuárias adentrando, principalmente, a área da floresta amazônica.
“Do lado da União Europeia, entre os setores econômicos que serão beneficiados pelo Acordo estão principalmente a indústria automotiva, a indústria química e o setor de serviços, mas também os setores farmacêutico, agrícola, energético, de mineração e bancário. Dentro do setor de serviços, as empresas multinacionais com maiores expectativas comerciais são as de telecomunicações, finanças e transporte. As empresas da União Europeia também poderão concorrer nas licitações públicas dos quatro países do Mercosul, ‘nas mesmas condições que as empresas locais’”, alerta Tom Kucharz, no texto da publicação “25 perguntas e respostas sobre o Acordo UE-Mercosul”, revelando a total desigualdade no quesito perdas e ganhos, e claro, nesse jogo, Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai ficam com as perdas socioeconômicas e socioambientais, e os países da União Europeia interessados nesse Acordo, com os ganhos comerciais e financeiros.
Sociedade civil contra o acordo
Diante desse cenário, grupos da Europa e da América Latina estão mobilizados para impedir que o Acordo UE-Mercosul e outros semelhantes a ele se confirmem. No Brasil, a Frente Brasileira Contra os Acordos UE-Mercosul e EFTA-Mercosul realizou em Recife (PE), nos dias 14 e 15 de outubro, um momento formativo: o “Curso Regional Nordeste Contra os Acordos Mercosul – União Europeia/EFTA”, para promover a integração de organizações da sociedade civil contra a iniciativa que representa graves riscos para a segurança alimentar, a garantia dos direitos humanos, o crescimento econômico sustentável, a proteção dos direitos da natureza, dos povos originários e tradicionais e o acesso a direitos fundamentais como saneamento, água potável e energia.
“Nós enfrentamos há muito tempo os acordos de livre comércio, como aconteceu com a ALCA, e estamos vendo que o Acordo UE-Mercosul traz o mesmo esquema: retirada de nossos direitos, incentivo às privatizações dos serviços de distribuição da água, da energia, de saneamento e, consequentemente, a piora da qualidade de vida das mulheres especialmente, porque elas terão mais dificuldade para viver nesse cenário em que alimentos, água e energia ficarão mais caras. Estamos aqui para fortalecer a resistência e as lutas territoriais diante dos impactos socioambientais e econômicos que esses acordos promovem”, destaca a articuladora da Rede Jubileu Sul Brasil, Sandra Quintela, que participou da formação junto com o grupo da Ação Mulheres por reparação das dívidas sociais, da Bahia e do Ceará.
Para a articuladora da Rede Jubileu Sul Brasil em Fortaleza (CE), Nenzinha Ferreira, o acordo representa a retirada de direitos da população. “Eu penso que hoje no Ceará a gente consegue perceber que com esse Acordo as mulheres tendem a perder o direito básico à moradia, alimentação, à saúde pública, à infraestrutura local…, porque quando você retira recursos das políticas públicas e prioriza a aplicação em empresas privadas o que fica é o déficit nas políticas públicas. Mas estamos na luta para tentar reverter os impactos dessa negociação”, destaca.
A Rede Jubileu Sul Brasil integra a Frente Brasileira Contra os Acordos UE-Mercosul e EFTA-Mercosul e tem acompanhando o processo de animação para o enfrentamento desses Acordos a partir do Brasil. “Estamos buscando refletir em todas as regiões do país o que significam esses Acordos. Eles representam um caráter neocolonial, na medida em que o Mercosul vende basicamente produtos primários aos dois blocos europeus, em troca de abrir seus mercados de manufaturados, serviços e compras públicas, além de garantir a propriedade intelectual e os investimentos aos europeus. Se assinados, os efeitos sociais e trabalhistas podem ser a perda de postos de trabalho e, consequentemente, de renda nos países do Mercosul”, afirma Francisco Vladimir, articulador da Rede Jubileu Sul/Américas para o Cone Sul.
Veja AQUI outras fotos do Curso Regional Nordeste
Em março, a Frente Brasileira Contra os Acordos União Europeia-Mercosul divulgou a carta aberta dirigida ao Congresso Nacional, a candidatas/os ao parlamento e à presidência este ano. O documento contou com a participação de 40 representantes de organizações e movimentos sociais e destaca “o caráter colonial, com aprofundamento neoliberal do modelo exportador de commodities [agro-minero], importador de mais agrotóxicos, violador de direitos e privatista de serviços públicos, atinge diretamente a vida da população brasileira”.
A partir de 2023 o Acordo UE-Mercosul pode entrar em pauta para ratificação sem o devido debate público entre sociedade civil, parlamentares e governo brasileiro.
As iniciativas da Ação Mulheres por reparação das dívidas sociais ocorrem numa parceria entre o Jubileu Sul Brasil, 6ª Semana Social Brasileira (SSB) e Central de Movimentos Populares (CMP), com apoio do Ministério das Relações Exteriores Alemão, que garantiu ao Instituto de Relações Exteriores (IFA) recursos para implementação do Programa de Financiamentos Zivik (Zivik Funding Program).
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