“Já estamos num processo de transformação do ilegal em legal, com todas as mudanças de políticas, com o enfraquecimento da fiscalização, do comando e controle e com as mudanças na legislação brasileira. Ainda que o Acordo União Europeia-Mercosul aponte que a questão comercial não pode infringir as normas ambientais, nós já estamos num cenário de desregulação e o Acordo não vai contribuir para mudar isso, vai contribuir na verdade para aprofundar.”
A avaliação é de Maureen Santos, cientista política, ecologista, coordenadora do Grupo Nacional de Assessoria da FASE e integrante do BRICS Policy Center, em entrevista concedida à equipe de comunicação da Rede Jubileu Sul Brasil sobre os impactos do Acordo UE-Mercosul na questão ambiental no Brasil.
Uma das principais pesquisadoras do Acordo entre os dois blocos regionais, que teve o anúncio de intenção de assinatura em junho de 2019, Maureen compreende que o principal beneficiado no caso brasileiro e dos demais países do Mercosul será o setor do agronegócio, o que tende a aumentar os conflitos socioambientais, considerando que parte expressiva dos conflitos no campo têm relação direta com essa prática produtiva, e a fragilização de direitos dos povos e comunidades tradicionais.
Ao não vincular expressamente o capítulo de comércio e desenvolvimento sustentável com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o Acordo UE-Mercosul, no entendimento de Maureen, tem “uma interpretação enviesada da Convenção 169 e isso é muito preocupante porque efetivamente o protocolo de consulta vem sendo uma ferramenta de defesa e de proteção dos direitos dos povos e comunidades tradicionais no Brasil”.
Para Maureen, a sociedade civil tem um papel fundamental na qualificação do debate público e na reivindicação por transparência, especialmente porque o Acordo “foi retratado pela mídia, que pouco falou sobre os impactos, como um acordo muito bom, muito positivo”.
Leia abaixo a íntegra da entrevista.
Qual o papel da sociedade civil brasileira e dos demais países do Mercosul e da União Europeia no descortinamento das problemáticas socioambientais e socioeconômicas do Acordo UE-Mercosul, especialmente num cenário de pouca reflexão crítica pelos meios de comunicação?
Maureen Santos: A sociedade civil tem um papel fundamental no sentido de trazer informação para a opinião pública, qualificar melhor o que o Acordo significa, porque ele foi vendido pela mídia, que pouco falou sobre os impactos, como um acordo muito bom, muito positivo.
Ao mesmo tempo, é preciso pensar como a sociedade civil amplia o diálogo com os parlamentares para que esse processo tenha algum debate público, porque foram 20 anos de negociação com pouquíssima transparência, em que a sociedade civil ficou à margem da discussão. Mesmo na Europa, onde as organizações têm muito mais acesso a documentos ou a diálogos políticos, há muita crítica sobre como foi conduzido o Acordo.
Alguns estudos têm apontado o aumento da fome e da insegurança alimentar no Brasil e outros países da América do Sul, nos últimos anos. De que forma o Acordo UE-Mercosul, que prevê, por exemplo, a eliminação de tarifas de exportação de alguns produtos, pode agravar esse quadro?
Maureen Santos: Há uma grande preocupação sobre esse ponto. Primeiro, vale dizer que o Acordo UE-Mercosul é dividido em três acordos ou tratados, digamos assim: um acordo político, um de cooperação e um de bens.
Em relação ao acordo de bens, existe toda uma liberalização para o setor do agronegócio relativa a commodities. E quando se elimina uma série de alíquotas de exportação, invariavelmente muitos dos produtos primários receberão benefícios para entrada no mercado europeu. Por um lado, isso pode representar uma mudança no cenário de venda desses produtos, no sentido de deixar de vender para outro lugar se o preço europeu for melhor, mas ao mesmo tempo pode também gerar maior produção de itens como cana-de-açúcar, milho e soja, em detrimento da produção de outros alimentos.
E sabemos que o setor não vai se moldar pelas necessidades da população, basta vermos o que está acontecendo com os preços dos alimentos. O que haverá é a preferência pela exportação e não de venda para o mercado interno, o que gera uma grande preocupação com a segurança alimentar.
Em relação aos agrotóxicos tem um outro elemento, porque zerando tarifas num país onde nos três últimos anos têm sido recorde a aprovação instantânea de agrotóxicos, isso também é um complicador.
Num país em que o ministro do Meio Ambiente defende, em meio a pandemia, “passar a boiada” e aprovar progressivamente o desmonte da estrutura legal de proteção ambiental, como o Acordo UE-Mercosul sinaliza para o aprofundamento de destruição ambiental e dos conflitos socioambientais?
Maureen Santos: Se o grande setor que vai ser beneficiado, no caso do Brasil e dos países do Mercosul, é o agronegócio, que é produtor de commodities para a exportação, e num cenário em que os grandes conflitos rurais e das florestas têm relação com essa prática produtiva, vamos ter um impacto muito importante em relação não apenas ao aumento de conflitos socioambientais, mas também em perda de direitos, considerando o marco de aprofundamento do desmonte da legislação brasileira.
Já estamos num processo de transformação do ilegal em legal, com todas as mudanças de políticas, com o enfraquecimento da fiscalização, do comando e controle e com as mudanças na legislação brasileira. Ainda que o Acordo UE-Mercosul aponte que a questão comercial não pode infringir as normas ambientais, nós já estamos num cenário de desregulação e o Acordo não vai contribuir para mudar isso, vai contribuir na verdade para aprofundar.
Quem defende o Acordo diz que ele prevê cláusulas ambientais. Mas não existe cláusula ambiental, o que existe é um capítulo de comércio e desenvolvimento sustentável, dentro do acordo de bens, que aponta alguns compromissos relativos à manutenção do país no Acordo de Paris e na implementação desse Acordo de Paris.
Contudo isso não é um elemento essencial do acordo político. O Acordo também não prevê litigância, não prevê solução de controvérsias e não é um capítulo vinculante do ponto de vista legal. Logo, é muito frágil.
Além disso, outra fragilidade é a vinculação de todo um debate ambiental que é mais amplo à discussão climática, que é somente uma das crises ambientais que estamos vivendo.
Sobre essa questão climática, a última edição da COP, realizada em dezembro do ano passado, em Madrid, foi bastante criticada por cientistas, ambientalistas e integrantes de movimentos sociais, que avaliaram as resoluções aprovadas como aquém de um compromisso efetivo com as necessárias mudanças. Como o Acordo UE-Mercosul pode consolidar o descompromisso de governos nacionais com a agenda ambiental, a exemplo do brasileiro, que foi qualificado como um dos “bloqueadores climáticos”?
Maureen Santos: De alguma forma, o Brasil já se comprometeu verbalmente a não sair do Acordo e acredito que com a eleição de Biden, o Brasil saindo do acordo seria um pária no debate climático. Mas o Brasil não vem sendo considerado mais um ator relevante no sentido de liderança política, entre outros atributos que o país tinha até um tempo atrás. Isso é uma perda para a diplomacia brasileira, para a política externa e ao mesmo tempo para a própria participação do Brasil na definição dessas políticas que vão ser tão importantes para o futuro.
Para Povos e Comunidades Tradicionais, que têm uma relação com a terra e os territórios a partir de uma perspectiva diferente da exploração comercial, quais os principais impactos possíveis do Acordo UE-Mercosul?
Maureen Santos: Poderia trazer vários apontamentos, vou focar em um exemplo de implicação, que é sobre a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho.
O Acordo UE-Mercosul inclui várias questões sobre direitos trabalhistas dentro do capítulo de comércio e desenvolvimento sustentável, mas não menciona claramente a vinculação do capítulo com a Convenção 169 da OIT, que garante o direito de consentimento livre e prévio informado através do mecanismo dos protocolos de consulta.
O que há, dentro do capítulo, é que os povos indígenas e comunidades poderão ser consultadas previamente sobre sua participação muito mais como parte do processo produtivo do que em relação ao uso ou acesso aos seus territórios. A redação traz, então, uma interpretação enviesada da Convenção 169 e isso é muito preocupante, porque efetivamente o protocolo de consulta vem sendo uma ferramenta de defesa e de proteção dos direitos dos povos e comunidades tradicionais no Brasil.
Em artigo recente, publicado no site da Fundação Heinrich Böll, você escreveu que o Acordo UE-Mercosul “cristaliza uma visão pós-colonial dos países do Sul como eternos fornecedores de matérias primas e os países do Norte como produtores e exportadores de bens de alto valor agregado”. Pode nos falar mais sobre essa afirmação?
Maureen Santos: Essa afirmação diz respeito ao que foi o Brasil colônia, que sempre foi produtor de matéria-prima para mandar para a sua metrópole no Norte, e como o Acordo UE-Mercosul referenda uma mesma lógica tanto tempo.
Efetivamente, o Acordo vai garantir o acesso aos recursos naturais dos países do Mercosul em troca de produtos industrializados de valor agregado dos países da União Europeia, só que como os acordos têm o desagravamento de 15 anos de algumas alíquotas, e a ideia é que o acordo seja de médio e longo prazo, se configura um modelo de desenvolvimento como fornecedor de matéria-prima para os países do Norte que é também de médio e longo prazo e não pautado na transferência de tecnologia ou no fortalecimento do setor produtivo industrial brasileiro.
Qual o papel da sociedade civil brasileira e dos demais países do Mercosul e da União Europeia no descortinamento das problemáticas socioambientais e socioeconômicas do Acordo UE-Mercosul, especialmente num cenário de pouca reflexão crítica pelos meios de comunicação?
Maureen Santos: A sociedade civil tem um papel fundamental no sentido de trazer informação para a opinião pública, qualificar melhor o que o Acordo significa, porque ele foi retratado pela mídia, que pouco falou sobre os impactos, como um acordo muito bom, muito positivo.
Ao mesmo tempo, é preciso pensar como a sociedade civil amplia o diálogo com os parlamentares para que esse processo tenha algum debate público, porque foram 20 anos de negociação com pouquíssima transparência, em que a sociedade civil ficou à margem da discussão. Mesmo na Europa, onde as organizações têm muito mais acesso a documentos ou a diálogos políticos, há muita crítica sobre como foi conduzido o Acordo.
Devemos considerar ainda que estamos vivendo um período em que a questão democrática está em risco grande e apenas aquela intenção de assinatura, num momento como esse, já foi um choque muito grande. Principalmente porque vimos um bloco que tende a se apresentar como um bloco que defende a democracia, que defende os direitos humanos e que defende as lutas contra as mudanças climáticas, apoiar e dar suporte para a assinatura de um Acordo num país onde isso tudo está em processo de destruição profunda.
Então, é fundamental a sociedade civil brasileira e dos outros países continuar denunciando isso.