Por Karla Maria | Comunicação Rede Jubileu Sul Brasil
Em maio, a dívida pública bruta atingiu 77% do Produto Interno Bruto (PIB), o equivalente a R$ 5,133 trilhões, conforme dados do Banco Central (BC). Ela abrange empréstimos contraídos pelo Estado junto a
instituições financeiras públicas ou privadas, no mercado financeiro interno ou externo, bem como junto a empresas, organismos nacionais e internacionais, pessoas ou outros governos.
Pouco mencionada e debatida pelos candidatos à Presidência da República, as decisões em torno da Dívida Pública Brasileira podem ditar as prioridades de um próximo governo e as consequências na vida de cada cidadão e cidadã.
O que é Dívida Pública e como ela impacta na sua vida? Deve-se ou não realizar uma autoria? Quais são as propostas dos candidatos e candidatas ao Planalto para os próximos quatros anos em relação à ela? O sociólogo e professor da Universidade Federal de Rondônia, Luis Fernando Novoa Garzon, responde estas e outras perguntas na entrevista a seguir. Novoa é também membro da Rede Jubileu Sul Brasil.
Como a Dívida Pública afeta os cidadãos brasileiros na prática, no dia a dia?
Na medida em que o mercado da dívida esvazia a democracia e virtualiza direitos, não se mantém nem a perspectiva de cidadania. Todos os bens e serviços que permitem pleitear essa mínima condição de equidade, estão sendo contabilizados como “despesas inviáveis”. A forma artificial de expansão da dívida pública no Brasil mede o grau de comprometimento da burguesia interna e do Estado frente às injunções do oligopólio financeiro global. Dívida pública significa transferir prerrogativas públicas que dizem respeito ao cotidiano de cada um a um punhado de bancos e fundos de investimento. A espiral que precariza o mundo do trabalho e devasta os territórios, tem seu centro na dívida pública. Isso quer dizer que ela é um saldo mais que numérico, é um saldo indica o potencial de novas espoliações por fazer e por cobrar. É preciso perceber a origem sistêmica dessas ofensivas para responder no mesmo nível.
Por que esse tema deveria ser mais debatido entre os candidatos à Presidência da República?
Porque o tema da dívida vem definindo de forma determinística as políticas orçamentária e fiscal do país. As contrarreformas que impõem crescentes cortes de gastos sociais, se tornaram pauta obrigatória nessas eleições, consideradas inadiáveis em função da trajetória de endividamento do país, sem que se discuta as verdadeiras causas e origens dos déficits. Então o tema é central no debate eleitoral, mas já chega invertido e resolvido, como um pacote que deve ser assumido em bloco para que os candidatos “competitivos” recebam o selo de confiabilidade dos mercados. Assim fica fora de pauta o aumento exponencial de gastos financeiros nas últimas décadas. A banalização da disciplina fiscal conduz à pregação que o Estado deve ser austero com a sociedade assim como o empresariado deve ser austero com o trabalhador. Austeridade frente a lucros, dividendos e farras financeiras, isso nem pensar. Por isso, temos que pensar, propor e pautar a revisão dos mecanismos de endividamento público. Não há como garantir austeridade fiscal sem austeridade financeira.
O senhor acredita que há irregularidades na Dívida Pública brasileira? Quais?
O problema está na origem do montante maior da dívida pública que provém de um processo de estatização da dívida externa privada no final dos anos 1980. Essa estatização curiosamente não incomodou ninguém no andar de cima da economia. Depois disso, o Banco Central passou a emitir títulos em condições amplamente desvantajosas para o próprio Tesouro, com juros estratosféricos e generosos swaps (reajustes) cambiais. São operações como essas que fazem com que centenas de bilhões de reais todos os anos engordem agiotas institucionais. E porque isso então não é considerado gastança? A questão é que esse conjunto de irregularidades e manipulações se tornaram o modo-padrão de rolagem e perpetuação da dívida pública brasileira.
Alguns candidatos Vera Lucia (PSTU), Guilherme Boulos (PSOL/PCB) e José Maria Eymael (DC), sugerem uma auditoria da Dívida Pública. Ela seria importante? Por quê? Quais os fatores e interesses que a impedem de acontecer?
O mecanismo da Auditoria, previsto constitucionalmente no Brasil, era direcionado para revisar as condições de pagamento da dívida externa. O primeiro grande desafio, portanto é demonstrar como dívida externa e interna se tornaram uma coisa só, e ainda de maneira totalmente irregular. Segundo, não pode ser uma auditoria contábil qualquer, pois se for se basear nos cálculos e números oficiais vai simplesmente legitimar as medidas de defesa da saúde financeira dos conglomerados e de austeridade contra o povo. Uma auditoria que reveja as regras do endividamento em si e de todos mecanismos pró-rentistas, implica na criação de uma arena política específica, com forte mobilização popular, com base por exemplo em consultas e plebiscitos nacionais. Terceiro, é preciso que haja um movimento de países, regiões e cidadãos em escala internacional, que proponha formas comuns de controle de capitais e de regulação dos financeiros.
Vera Lucia (PSTU) é a única candidata a defender a suspensão do pagamento da Dívida Pública. Isso é possível? Quais seriam as consequências?
Seria a medida mais coerente, porém as mediações para se chegar a ela não podem ser abstraídas. Uma declaração de não pagamento sem as condições institucionais, políticas e internacionais para sustentá-la, geraria fuga de capitais, o default do país e a asfixia econômica do “inadimplente”. É certo que o Brasil apresenta condições estruturais e conjunturais diferenciadas para enfrentar um bloqueio internacional decorrente de uma decisão soberana de suspensão e cancelamento dos pagamentos. Essa ruptura com o sistema financeiro, contudo, pressupõe outras rupturas simultâneas. Do contrário, a medida antecipará um confronto direto e aberto sem que existam forças sociais preparadas para tanto.
A revisão do custo de rolagem da Dívida Pública, sugerida por Álvaro Dias (Podemos, PSC, PRP, PTC), seria suficiente para sanar o impacto da Dívida à população brasileira? A quem beneficiaria?
A alteração da contabilização do que seja rolagem e amortização da dívida até seria um bom começo para pensar em uma nova relação do Estado/sociedade com o sistema financeiro. Todavia, discutir apenas nos termos dados, apenas os custos da rolagem, seria manter a máquina de endividamento intacta. Os grandes credores permaneceriam em suas posições e ainda com imagem limpa.
Diversos candidatos: Haddad (PT/PCdoB/PROS), Marina Silva (REDE/PV) e Ciro Gomes (PDT/AVANTE) defendem o pagamento da dívida mediante mudança das regras fiscais, aumento na arrecadação tributária e redução nos juros. Se há esse consenso por que até hoje não foi feito? A quem favorecem as altas taxas de juros da Dívida e o modelo tributário como o que temos hoje?
Há um conceito genérico, que na falta de outro mais consensualizável, serve para enquadrar esse fenômeno de concentração do poder econômico e político e torno de bancos e corretoras, que é a financeirização. O Estado brasileiro teve sua institucionalidade e operacionalidade alterada por dentro para atender requisitos de valorização financeira. Por isso, sem alterar o atuais poderes e funções do Banco Central e do Ministério da Fazenda, a dívida pode mudar de lugar, pode-se trocar papeis velhos por papeis novos, com maior ou menor exposição cambial, mas a dívida continuará dívida e a sangria financeira não será estancada. As alterações tributárias propostas por esse campo vão na direção de aproximar o Brasil das práticas internacionais correntes no capitalismo mundial, como a tributação de dividendos financeiros. E mesmo essas tentativas de isonomia tributária são vistas com escândalo pelos setores rentistas que se apossaram do aparelho governamental. O que prova que são medidas necessárias mas não são suficientes. É preciso abalar o fundamento criado pela Lei de Responsabilidade Fiscal da prevalência dos “compromissos financeiros” frente aos gastos sociais. Se incluirmos os gastos financeiros resultantes de contabilizações literalmente criativas, na Emenda Constitucional do teto de gastos, como gastos totais e não apenas os primários, implodimos o dispositivo.
Como os banqueiros, empresas e rentistas ganham com a Dívida Pública?
Ganham no varejo da valorização extraordinária dos títulos públicos, lastreados com juros e bônus de toda espécie. E também ganham no atacado, à medida que o Estado e a economia nacional vão sendo redesenhados em função de seus interesses a partir de privatizações e desnacionalizações combinadas e continuadas.
Candidaturas como a de Henrique Meirelles (MDB / PHS) e Geraldo Alckmin (PSDB / PTB / PP / PR / DEM / SOLIDARIEDADE / PPS / PRB / PSD) que nada falam sobre o tema da dívida pública em seus programas oficiais estariam, portanto, acenando positivamente aos banqueiros e financistas?
Esses são porta-vozes oficiais e oficiosos dos rentistas. Ainda que essas apostas eleitorais dos mercados não vinguem, ficam as chantagens colocadas em cena como se fosse princípios diretores da “boa economia”. A pressão sobre a definição do conteúdo da política econômica do próximo Governo chega a ser maior que a definição do presidenciável em si. Nesse momento, essa “transferência programática” terá peso significativo para uma candidatura ou outra seja considerada mais aceitável no segundo turno.
O candidato Bolsonaro (PSL / PRTB) ou seu tutor, o economista Paulo Guedes, sugere uma “Desmobilização de ativos públicos, com o correspondente resgate da dívida mobiliária federal. Estimamos reduzir em 20% o volume da dívida por meio de privatizações, concessões, venda de propriedades imobiliárias da União e devolução de recursos em instituições financeiras oficiais que hoje são utilizados sem um benefício claro à população brasileira.” Como avalia essa proposta?
A proposta revela o quanto Paulo Guedes representa o desejo dos mercados de abolir qualquer discussão pública e democrática acerca da política econômica. A própria indicação desse preposto dos mercados como um super-ministro revela a intenção de terceirizar previamente a política econômica e a administração da dívida. A presidência, obtida de forma de uma impostura demagógica e fascista, se cacifa no bloco de poder, oferecendo aos investidores é o controle direto dos centros de decisão econômica. O problema é que essa fórmula não tem nem consistência operacional, pois o presidencialismo continua de pé, nem consistência política, já que não haverá suporte ou legitimidade para consolidar essas medidas. Um Governo Bolsonaro, com um preposto dos mercados à frente, exporia a enorme fragilidade do campo conservador em forjar um projeto minimamente orgânico, até mesmo do ponto de vista do capitalismo realmente existente no país.