Por Lucas Rocha – Jornal do Brasil com Sputnik Brasil
As comemorações oficiais do Bicentenário da Independência começaram de modo curioso, com a chegada do coração de D. Pedro I. O gesto indica uma valorização da historiografia oficial e dos “heróis” que estampam monumentos pelo país. Mas, há 28 anos, um movimento se organiza para dar voz a quem não teve desde o famoso Grito do Ipiranga.
O Grito dos Excluídos surge nos anos 1990 como uma forma de contraponto à narrativa oficial e a celebrações do 7 de Setembro de um país que, segundo os movimentos que constroem a iniciativa, nunca se tornou totalmente independente. Esse grito começa a ecoar a partir de uma campanha da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e é mantido desde então pela CNBB e por movimentos sociais.
“Entre as motivações que levaram à escolha do dia 7 de Setembro para a realização do Grito dos/as Excluídos/as estão a de fazer um contraponto ao Grito da Independência. O primeiro Grito dos Excluídos/as foi realizado em 7 de Setembro de 1995, tendo como lema A vida em primeiro lugar, e ecoou em 170 localidades. […] Mais do que uma articulação, o Grito é um processo, é uma manifestação popular carregada de simbolismo, que integra pessoas, grupos, entidades, igrejas e movimentos sociais comprometidos com as causas dos excluídos. Ele brota do chão, é ecumênico e vivido na prática das lutas populares por direitos”, diz documento que narra a história do Grito.
Na série de reportagens especiais sobre o Bicentenário da Independência, a Sputnik Brasil conversou com integrantes da coordenação do Grito dos Excluídos e com historiadora sobre a exclusão no processo de independência, as articulações feitas pelos movimentos sociais para a data, as celebrações oficiais que estão sendo organizadas e a conjuntura política nacional.
O mote do Grito dos Excluídos de 2022 é bem claro: “200 anos de Independência. Para quem?”. Rosilene Wansetto, ativista da rede Jubileu Sul e integrante da coordenação nacional do Grito dos Excluídos, disse que o objetivo é “trabalhar a ideia de que nós não somos um país totalmente independente”.
“O grito vem há 28 anos discutindo essa soberania, essa ‘independência’ que, na verdade, não se reflete para todos. Essa independência só se reflete para parte da sociedade. As desigualdades estão aí, são visíveis. A exclusão só tem aumentado, basta olhar o número de pessoas desempregadas, subempregadas e informais, a situação das mulheres, da fome, então, é com esse conjunto de elementos que o grito debate e promove as mobilizações neste Bicentenário”, aponta Wansetto.
O Grito vai questionar “se o Brasil realmente está independente ou continua um Brasil dependente”, segundo Wansetto.
“Quando olhamos para a economia, para várias questões que envolvem o desenvolvimento, a gente vê que o Brasil gera mais dependência, gera mais violências, violências estruturais históricas, inclusive. Como é o caso do racismo, violências contra as mulheres, contra os povos indígenas, contra os povos quilombolas. [O Brasil] não fez a reforma agrária, a reforma urbana. Segue pagando uma dívida desde as colônias, uma dívida financeira e social”, diz a ativista, que ainda defende uma reforma tributária que cobre os mais ricos e critica a flexibilização das leis trabalhistas.
Essa reflexão é feita também pela historiadora Lúcia Bastos Pereira das Neves, professora de história da Universidade Federal Fluminense (UFF) e autora de livros como “O Império do Brasil”, “Corcundas e constitucionais: a cultura política da Independência, 1820-1822” e o premiado “Dicionário do Brasil joanino”.
“Esses 200 anos nos devem fazer pensar o que significa ser independente. Na época, o Brasil ainda tinha pessoas escravizadas. É importante repensar esse passado para entender melhor o presente. Já demos o nosso grito de independência?”, disse Pereira das Neves.
Para a professora da UFF, o Bicentenário pode ser um momento para repensar a história política brasileira e entender a formação dos latifúndios e os casos de escravidão moderna.
“São marcas que permaneceram e que ainda envolvem a nossa sociedade. É um momento de não apenas comemorar a independência, mas ter um olhar crítico”, destacou. “Como escravizados participaram desse processo. Será que a independência deles é a mesma que a dos brancos?”, questionou.
Ao mesmo tempo, a pesquisadora defende a derrubada do mito do “brasileiro pacífico” e lembra que o período foi marcado por revoltas populares em diferentes estados. “Para evitar esfacelamento do Brasil, foi preciso muita guerra. Não podemos dizer que a independência foi amigável”, disse.
“Há muita coisa a se pensar. O que foram os desdobramentos do projeto vitorioso? Era um projeto concebido pelas elites, que deixaram de fora as camadas situadas nas margens. Era um projeto que tinha a escravidão como fundamento e isso perdurou por todo o império. Houve sempre um pensamento voltado para as camadas mais altas da sociedade”, aponta a historiadora.
Diante disso, o Grito dos Excluídos acredita que “não há o que comemorar” nesse Bicentenário.
“O povo não tem nada a comemorar, não há o que celebrar porque o Brasil vive uma das suas crises mais profundas depois do período da ditadura e da abertura democrática, com uma situação democrática bastante fragilizada. Não há o que comemorar neste Bicentenário, mas muitas coisas a lutar, a defender. A perda de direitos é gigantesca. […] Nossa organização está focada em pensar um projeto para o Brasil, pensar que país nós queremos. E é a partir disso que o Grito se organiza e propõe atos em todo o Brasil, não só no dia 7, mas durante toda a Semana da Pátria, que começa no dia 1º, e muitos locais já vem realizando desde antes porque o Grito é um processo, não é só um ato no dia 7, já aconteceram muitas rodas de conversa, muitas atividades preparatórias”, disse Wansetto.
Os atos do 7 de Setembro
Mesmo com uma agenda prévia, é no 7 de Setembro que ocorre a tradicional manifestação que toma as ruas de diversas cidades do país. Segundo Wansetto, os manifestantes estão atentos para evitar enfrentamentos com apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (PL), que os convocou às ruas na data.
“Nós não queremos violência, nós queremos tranquilidade para fazer nossos atos, levar nosso grito, nossa bandeira. Essa é a orientação e a nossa movimentação em torno do 28º Grito”, disse. “A gente sabe que os apoiadores do Bolsonaro agem com muito ódio, tratam as coisas com violência, com armas, enquanto o Grito trabalha com outra perspectiva, a perspectiva do diálogo, da paz. Nós não queremos entrar em confronto.”
Para a coordenadora dos atos, as movimentações do presidente para o 7 de Setembro podem configurar crime eleitoral e devem ser vigiadas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O senador Jean Paul Prates (PT-RN), líder da Minoria no Senado Federal, chegou a apresentar um pedido de impeachment contra Bolsonaro em razão da convocação feita. A oposição critica o uso da data para fins eleitorais e para o acirramento dos ânimos.
O principal evento convocado por Bolsonaro deverá ser no Rio de Janeiro, onde o tradicional ato no Centro da cidade dará lugar a apresentações militares e manifestações políticas em Copacabana, na Zona Sul.
Para a historiadora Lucia Pereira das Neves, a mudança “é uma maneira de projetar as propostas de Bolsonaro”. Ela faz uma distinção entre os desfiles do 7 de Setembro no período do governo de Getúlio Vargas e no período da ditadura militar e os desfiles conduzidos no governo Bolsonaro: “Na época tinha um apelo patriótico, agora é mais emocional e politico”.
“Não vejo os projetos do Governo Federal para o 7 de Setembro como projetos para comemorar o Bicentenário, só fala em desfile”, afirmou a historiadora.
Dilcéia Quintela, que faz parte da organização do Grito dos Excluídos no Rio de Janeiro, disse à Sputnik Brasil que os manifestantes não temem ir para a rua na capital fluminense.
“Não há temor. Teremos cautela e não aceitaremos provocações”, afirmou Dilcéia, que é militante do PCdoB e foi presa política durante a ditadura militar.
“Aqui no Rio, nós vamos concentrar, como sempre, na Rua Uruguaiana com a Avenida Presidente Vargas, às 9h. Vamos caminhar até o Cais do Valongo, onde faremos uma homenagem aos povos originários e aos que foram trazidos para o Brasil escravizados”, disse a ativista. A caminhada para o Valongo é uma novidade em 2022.
Grito no Carnaval
Historicamente visto como um contraponto à narrativa oficial, o Grito dos Excluídos vai virar enredo no carnaval de 2023 na Beija-Flor de Nilópolis justamente pelo questionamento dos 200 anos de Independência.
“Esta é uma convocação aos sobreviventes deste país que não nos reconhece. Um país que ignora nossas existências. Um país que comemora 200 anos da marginalização da sua própria gente. Seremos a voz do desejo de uma nação inteira: independência e vida!”, diz trecho da sinopse do enredo elaborado pelos carnavalescos André Rodrigues e Alexandre Louzada e pelo antropólogo Mauro Cordeiro.
“Se o Estado brasileiro se ergueu como um instrumento para conservação de uma ordem patriarcal, escravocrata e latifundiária, o povo brasileiro, mesmo alijado dos espaços institucionais, insiste em disputar no Brasil sem temer nem a luta nem a morte”, narra o texto.