Todos os anos, empresas como a Vale S.A. precisam ser submetidas a uma avaliação sobre seus impactos na economia, meio ambiente, sociedade e governança. Em geral, esses relatórios oficiais passam longe da realidade das comunidades cotidianamente atingidas pelas ações da empresa. Como forma de rebater as informações e mostrar quais os reais danos causados pela corporação, a Articulação Internacional dos Atingidos pela Vale (AV) elabora o Relatório de Insustentabilidade da Vale.

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Trata-se de um trabalho coletivo onde são reunidas várias denúncias e descumprimentos legais da empresa nas áreas acima citadas. Perseguição aos trabalhadores, espionagem, gente infiltrada nos movimentos sociais, interferência direta no modo de vida de quilombolas e indígenas, operações sem as devidas análises de impactos, são só algumas apontadas no Relatório de Insustentabilidade da Vale 2015.

Em entrevista com a rede Jubileu Sul Brasil, o padre Dário Bossi, da Rede Justiça nos Trilhos, integrante da Articulação Internacional dos Atingidos pela Vale, fala da importância do relatório que surgiu a partir “da indignação dessas comunidades frente a informações incompletas e às omissões da da empresa nos relatório”.

De acordo com Bossi, também não se percebe dos Estados nenhuma intenção em reparar essas violações. Mais: os Estados parecem mais contribuir para que essas violações aumentem. Por isso, a urgência da articulação e resistência. Confira a entrevista:

Jubileu Sul Brasil – O objetivo do relatório, além de denunciar, é questionar a sustentabilidade da Vale em vários aspectos. Exerce claramente, também, um papel de resistência. Pode falar um pouco sobre como começou a ideia de realizar esses levantamentos?

Dário Bossi – A Articulação Internacional dos Atingidos pela Vale (AV) é uma rede de apoio a comunidades, trabalhadores e bens naturais atingidos ou potencialmente atingidos em diversos países do mundo por operações e projetos da mineradora brasileira. É composta por lideranças dessas comunidades, bem como por entidades, movimentos sociais, sindicatos e grupos de estudo acadêmico aliados às diversas vítimas da mineração. A ideia do “Relatório de Insustentabilidade”, chamado também “Relatório Sombra”, veio a partir da indignação dessas comunidades frente às informações incompletas e às omissões da empresa nos Relatórios de Sustentabilidade publicados anualmente.

Se quiserem aderir ao programa das Nações Unidas Global Compact e à Global Reporting Iniciative, as empresas precisam responder anualmente a um questionário de autoavaliação de seus impactos em quatro áreas estratégicas: economia, meio ambiente, sociedade e governança. O objetivo desse questionário é estimular as multinacionais a diminuir cada vez mais as violações provocadas por suas atividades nesses âmbitos e, portanto, se afirmarem como atores sustentáveis e garantirem um “selo de qualidade” para suas atividades.

Os AVs são a princípio muito críticos a respeito dessas iniciativas de automonitoramento dos impactos por parte das empresas. No caso da Vale S.A., que conhecemos por estar provocando graves conflitos nos territórios em que habitamos, os relatórios apresentam sempre uma meia verdade e relativizam, em diversos casos, os problemas reais que as populações atingidas pela Vale denunciam com muita frequência.

Por isso, escutar a voz dos atingidos, sistematizar suas denúncias, mostrar a discrepância entre o que a Vale S.A. declara e a realidade dos fatos, bem como desvendar os mecanismos da empresa para a captura de valores, torna-se para a Articulação Internacional dos Atingidos pela Vale um precioso e consistente instrumento de denúncia e resistência.

JSB – Há a Assembleia dos acionistas e representantes da Articulação dos Atingidos estarão presentes como “acionistas críticos”. Essas participações têm dado resultados no sentido de explanar quais são hoje as reais condições da Vale? Há reações?

Dário Bossi – Pela sexta vez ao longo dos últimos anos, os AVs fizeram-se presentes na Assembleia Geral dos Acionistas da Vale, como acionistas críticos. Em cada oportunidade, diversos membros da Articulação dos Atingidos pela Vale ou lideranças diretamente impactadas pelas operações da mineradora compram algumas poucas ações da empresa, para terem o direito de participar e de ter voz e voto junto aos maiores acionistas da multinacional. Já lideranças comunitárias, jornalistas, professores acadêmicos, ambientalistas ou sindicalistas foram acionistas críticos.

Com suas abstenções ou votos divergentes aos pontos de pauta pré-estabelecidos pelo Conselho de Administração da empresa, os acionistas críticos querem denunciar as violações provocadas pelas operações da multinacional, mas também alertar os maiores acionistas a respeito do assim chamado “risco Vale”.  Trata-se da análise custo-benefício que a empresa e os mercados financeiros aplicam a todo tipo de atividade, inclusive aos impactos negativos das operações da mineradora. Na visão dos acionistas críticos, a Diretoria Executiva da empresa peca ao omitir informações relevantes em seus relatórios aos acionistas. Certos casos de conflito entre as operações da empresa e as comunidades geram danos à sua imagem e às próprias operações, mas isso não é exposto, muito menos debatido.

Na lógica dos empreendedores, se o custo econômico das violações provocadas pela empresa for comprovado e se demonstrar em médio-longo prazo uma ameaça às perspectivas de lucro, a mudança e um maior respeito das reivindicações populares se torna a alternativa mais conveniente.

Alguns membros dos AVs participam à Assembleia Geral dos Acionistas, outros colegas na mesma oportunidade oferecem entrevistas à imprensa e outros ainda manifestam em frente à sede da empresa. Nesse ano, por exemplo, uma liderança do município mineiro de Catas Altas denunciou os impactos de cinco minas da Vale em sua região e o descaso da empresa. A cacique do povo Akrâtikatêgê, no Município de Bom Jesus do Tocantins (PA) relatou chorando os danos provocados pela empresa em seu território e uma liderança quilombola de Itapecuru Mirim (MA) explicou porque os quilombos de sua região decidiram bloquear por cinco dias a Estrada de Ferro Carajás (EFC), através da qual a Vale escoa o minério para exportação.

Há resultados imediatos, que impactam a imagem da empresa e confirmam frente à opinião pública o desrespeito da mesma para com inteiras comunidades e territórios. Apesar de uma aparente disposição ao diálogo, infelizmente a empresa não está querendo mudar sua relação com os atingidos. Depois de diversos anos de participação à assembleia, por exemplo, ainda nessa última edição os AVs denunciaram a falta de transparência com respeito à pauta da reunião e suas atas, a omissão de informações nos relatórios da empresa, bem como os obstáculos para uma efetiva participação dos acionistas na assembleia.

JSB – Este é o Relatório 2015. Há como fazer uma avaliação sobre se houve avanços ou retrocessos no que diz respeito à reparação das violações?

Dário Bossi – Muitas das violações denunciadas têm suas raízes no passado e ainda hoje não têm sido reparadas, nem enfrentadas pela empresa com a suficiente determinação e eficácia.

Um caso interessante e positivo, porém, demonstra que a persistência das comunidades organizadas, com uma assessoria competente e firmemente concentrada na defesa dos direitos humanos, é capaz de incidência na lógica de maximização do lucro das empresas. É o caso da comunidade de Piquiá de Baixo, no Município de Açailândia-MA, ao longo da Estrada de Ferro Carajás.

Trata-se de um povoado de cerca 350 famílias (mais de mil pessoas) fortemente atingido pela poluição de cinco empresas siderúrgicas em estreita parceira com a Vale.

Por dois anos seguidos (2013 e 2014) um membro da Associação Comunitária dos Moradores do Pequiá participou da assembleia de acionistas da Vale; o caso de Piquiá de Baixo foi publicado em dois relatórios de insustentabilidade redigidos pelos AVs. Além disso, uma acurada pesquisa da Federação Internacional dos Direitos Humanos em 2011 resultou no relatório “Quanto valem os direitos humanos”, denunciando as graves violações do direito à saúde, à moradia e à vida naquele bairro.

A gravidade do caso, a mobilização e a organização da comunidade e das entidades que a assessoram, junto à mediação do Ministério Público e da Defensoria Pública, fizeram com que a empresa Vale aceitasse sentar a uma mesa de negociação, junto às empresas siderúrgicas e ao poder público municipal e estadual. O problema de Piquiá de Baixo ainda não está resolvido, mas já foram dados vários passos significativos na direção da garantia de direitos e na defesa da vida daquela população.

JSB – Lendo o trabalho, percebe-se que nos países em que a Vale atua as violações são constantes e com aspectos diferentes, ambientais, econômicos, hídricos, de exploração trabalhista. No Brasil especificamente há alguma iniciativa dos governos em reparar essas violações?

Dário Bossi – É uma pergunta para a qual precisaria de uma resposta detalhada e aprofundada. Em linhas gerais, com exclusão do caso indicado acima, sinto-me de responder que não só não vejo iniciativas consistentes para reparar essas violações, mas também parece-me que a política dos governos esteja, há vários anos, contribuindo para que essas aumentem. Posso citar, por exemplo, a Suspensão de Liminar com que o Tribunal Regional Federal da Primeira Região, em Brasília, suspendeu os efeitos da decisão da Justiça Federal no Maranhão que declarava ilegal o licenciamento ambiental da duplicação da Estrada de Ferro Carajás.

De um lado, dezenas de comunidades impactadas pelas operações de expansão do enorme sistema de escoamento de minério para a exportação denunciavam comprovadamente a falta de consulta e a ausência do Estudo de Impacto Ambiental; do outro lado, o Poder Judiciário alegou ameaça à ordem e economia públicas na medida que determinara a suspensão as atividades da empresa privada Vale S.A. Assim, enquanto o processo ainda aguarda julgamento, as obras de duplicação estão correndo de vento em popa e as violações estão se multiplicando ao longo dos quase 900 Km da EFC.

Essa atitude do Presidente do TRF da 1a. Região responde a relevantes interesses econômicos, os mesmos que orientaram a redação do Plano Nacional de Mineração 2030. Esse plano prevê para os próximos 20 anos o aumento da extração mineral em 3, 4 ou 5 vezes (conforme os diversos tipos de minérios). Para isso, precisa de um Marco Legal da Mineração que flexibilize ainda mais as vinculações da legislação ambiental e não avance na afirmação dos direitos trabalhistas na mineração.

Um outro exemplo da ambiguidade das decisões do Estado brasileiro é o caso da disputa de territórios entre a mina Apolo da Vale e o projeto de Parque Nacional da Serra de Gandarela, em MG. Afinal o governo criou o Parque Nacional, mas resguardando para a empresa exatamente as áreas mais ricas em minério, que são, porém, também as bacias da água que alimenta a inteira região… e o próprio Parque!

Por último, precisamos fazer referência à absoluta omissão do governo, até agora, em investigar as graves denúncias sobre espionagem, infiltrações e acesso a dados pessoais reservados, para monitoramento das lideranças, grupos e entidades que denunciam as violações da empresa Vale S.A. e do consórcio de construção da barragem de Belo Monte.

Uma ação significativa do Governo é o combate ao Trabalho Escravo, realizado pelo Ministério do Trabalho com seriedade e incidência, especialmente nas denúncias e fiscalizações. O trabalho escravo é outro fenômeno ligado à cadeia de mineração e siderurgia, seja na produção de carvão para uso siderúrgico, seja nas próprias minas. Em fevereiro de 2015, a Vale foi denunciada por submeter 309 trabalhadores da Mina do Pico (Itabirito – MG) à situação análoga à escravidão. As denúncias reportam banheiros com ar empesteado e fezes espalhadas pelo chão, jornadas de trabalho exaustivas, condições degradantes e trabalhadores vítimas de fraude, promessa enganosa e ameaça. Os auditores fiscais classificaram o ambiente como “repugnante”. O canteiro foi interditado e a Vale autuada por 32 infrações trabalhistas.

JSB – Por fim, o relatório deixa claro, inclusive, sobre a sustentabilidade financeira – alvo de questionamentos quando da privatização e do plebiscito popular. É possível afirmar que a privatização foi, de fato, um retrocesso num cenário econômico de fragilidades?

Dário Bossi – Sem dúvidas, assim como outros casos de privatizações mais ou menos recentes. O que aconteceu com a Vale é particularmente escandaloso, pela desvalorização total com que a empresa foi entregue ao capital e aos interesses privados, mas também pelas cumplicidades mal disfarçadas que permitiram esse negócio ilegal e ainda hoje impune.

Mais de cem ações populares foram impetradas contra a privatização da Vale. O movimento de denúncia não se perde de ânimo, apesar do injustificável retardamento do ministro Gilmar Mendes, e continua reivindicando do STF a devolução das ações à Justiça Federal de Belém, onde deverá ser instaurada uma perícia de reavaliação do acervo da Companhia Vale do Rio Doce e realizados os julgamentos em primeira instância.

Por Rogéria Araujo, Comunicação Rede Jubileu Sul Brasil

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