Luta por soluções e por maior presença no espaços de decisão passa pela por ações que considerem as múltiplas opressões – de gênero, raça e classe – que afetam sobretudo as mulheres negras no enfrentamento às mudanças do clima
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Flaviana Serafim I Jubileu Sul Brasil
Os 20 bilionários mais ricos são responsáveis, em média, por 8 mil vezes mais emissões de carbono do que o 1,3 bilhão de pessoas em condições de pobreza no mundo, segundo dados da Oxfam. Desse bilhão, 70% são mulheres, que no Brasil chefiam 40% das famílias.
Enquanto os bilionários contribuem para a piora do clima, as mãos de mulheres pobres semeiam e colhem de 50% a 80% da produção mundial de alimentos saudáveis, mas menos de 10% delas possuem a propriedade da terra. Essa desigualdade também se reflete na desproporcionalidade com que as mudanças climáticas impactam a população, sobretudo as mulheres negras. Além das múltiplas consequências das mudanças do clima, elas vivem num contexto agravado pelas questões de classe, de raça e gênero, que ocorrem ao mesmo tempo e entrelaçadas.
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“As questões ligadas às mudanças climáticas afetam diretamente a população negra, principalmente nos casos de racismo ambiental. Nossas comunidades quilombolas, terreiros, comunidades pesqueiras e rurais são, em sua maioria, vítimas da especulação imobiliária, de todo esse impacto climático e dos crimes ambientais nos territórios, para servir ao capital. E sabemos que essas comunidades são majoritariamente de mulheres negras, ainda que faltem dados”, afirma Lourdes Vieira.
Mulher negra, egbomy¹ do Ilê Ase Osanyin Yansan e advogada popular, ela atua em projetos de defesa de direitos indígenas e trabalha no Escritório de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica Popular Frei Tito de Alencar (EFTA), da Assembleia Legislativa do Estado do Ceará. “Seja no meio rural e mesmo no meio urbano, as mudanças climáticas impactam diretamente essa população. E no meio urbano, atingem principalmente as periferias com os grandes desastres que temos assistido, como os alagamentos e outros que não estávamos acostumados a ver, e que impactam sobretudo as mulheres negras”.
A degradação ambiental recai “sobre os sujeitos excluídos da democracia brasileira, com um tremendo recorte racial porque a construção do Brasil se deu estruturada a partir do racismo, da dominação dos povos indígenas originários”, diz Cris Faustino, presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos do Ceará, ao podcast Economia Fora do Eixo (ouça aqui).
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Ela aponta que o racismo ambiental não é só questão do capital contra o povo, é também, mas esse povo é marcado por uma série de desigualdades. Os ricos brancos também são marcados por uma série de privilégios que precisam vir à tona, porque nunca vi uma comunidade branca ser despejada, não vemos comunidades brancas sofrendo o que os indígenas sofrem”.
A conselheira também observa que os projetos ambiental e socialmente mais degradantes são nos territórios historicamente vividos pelas populações negras, indígenas e comunidades tradicionais, que estão longe do processo capitalista da branquitude.
“São comunidades e grupos que estabelecem diferentes modos de vida, de ver e de se relacionar com os ecossistemas e a biodiversidade. São grupos que não têm o interesse de acumulação, de lucro, que não têm na natureza e nos ecossistemas o interesse de explorar, de destruir para ganhar muito dinheiro”.
Ações hoje para mudar o amanhã
Maior escassez de água e altas temperaturas em regiões já secas como o Nordeste; redução da capacidade de trabalho em 24% e queda geral da produção geral de alimentos – (que no caso do milho, pode chegar a 71% no Cerrado) são os cenários previstos para o Brasil até o final do século se não houver cortes rápidos nas emissões de gás carbônico, aponta o relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). Independentemente da região do país, são cenários que afetam em cheio as mulheres negras e indígenas.
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“A mudança climática e seus impactos são um problema de gestão pública, nossos gestores públicos eleitos têm o dever de traçar políticas de prevenção e de adaptação”, afirma a advogada Marina Marçal, do Instituto de Clima e Sociedade (ICS). Ela foi painelista do curso virtual Gênero, raça e mudanças climáticas: uma abordagem interseccional, realizado em março com a participação de Thayane Queiroz, do Instituto PACS e da Rede Jubileu Sul Brasil.
Marina destacou que não se pode ter uma narrativa de que os eventos climáticos não têm data, pois existe tecnologia para saber quando vão ocorrer e os gestores públicos têm que desenvolver políticas específicas para lidar com a questão. Para ela, também é preciso olhar os impactos das mudanças climáticas a partir dessa perspectiva interseccional de gênero e raça.
“Somos mulheres plurais, do campo e da cidade. As realidades de uma mulher negra na Amazônia ou no Nordeste e as de uma mulher branca no Sudeste são muito diferentes. Existem pluralidades nesse ser mulher e que traz múltiplas opressões”.
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Justiça socioecológica
Segundo Lourdes Vieira, a discussão sobre o clima tem avançado entre as mulheres negras e indígenas, mas o debate precisa se aprofundar frente ao curto período de tempo em que os impactos têm se ampliado. Ela afirma que as mulheres estão apropriadas e organizadas, mas existe o desafio de fazer a discussão localmente, nas bases. Outro é promover transformações num nível mais amplo, com governos que pautem a defesa do meio ambiente como prioridade, e que a legislação existente saia do papel:
“Precisamos de políticas públicas que protejam não só o meio ambiente como as populações que vivem nos territórios e que são alvo principal dos grandes empreendimentos. Precisamos principalmente de efetivação da legislação que temos, que os tribunais e governantes possam executar o que já temos de legislação e possam estar protegendo esses territórios”, afirma. Lourdes relata que o Ceará não tem nenhuma comunidade quilombola titulada e que apenas uma terra indígena demarcada.
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“Temos legislação que prevê procedimentos para demarcação de quilombo e que não é obedecida, não é efetivada. Nós já temos algumas leis favoráveis, o que precisamos é da sensibilidade e da efetivação dessas leis por parte dos governantes e que também a própria sociedade reconheça a importância dessas populações e atue nessa defesa”.
Como as questões climáticas são atravessadas por relações de poder, Cris Faustino reforça que a mudança também precisa ser estrutural.
“A gente pensa que está colaborando com a mudança do mundo não usando copo descartável, economizando água, seguindo regras que aprendemos na 5ª série. Isso é uma iniciativa importante, humanitária e saudável, mas não resolve o problema da degradação ambiental. O que resolve são mudanças estruturais nas regras, nas estruturas de poder, no reconhecimento dos conhecimentos e da diversidade dos modos de vida da população, na diversidade de se pensar as relações com a natureza”, conclui.
Foto de capa: Clauber Cleber Caetano/PR/Flickr/CC
¹Egbomy é quem cumpriu o período de iniciação (Iaô) na feitura de santo e também as obrigações ritualísticas de um período de sete anos (odu ejé) que marcam o ciclo de iniciação no Candomblé, podendo se tornar Iyalorixá (mãe de santo) ou Babalorixá (pai de santo).
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