Painelistas do Fórum “Diálogos interculturais: Povos e a Natureza” defenderam uma ruptura estrutural para a construção de novas formas de produzir e viver com equilíbrio entre os direitos dos povos e da natureza, destacando a importância do papel das mulheres, da memória histórica e da ancestralidade entre os caminhos para transformação. Debate marcou o relançamento da campanha por Justiça Socioecológica e a conclusão da formação “Direitos da natureza a partir da interculturalidade”, que reuniu mais de 60 participantes da América Latina, Caribe e Europa.

Por Flaviana Serafim I Jubileu Sul Brasil

A Rede Jubileu Sul/Américas realizou no dia 13 de maio, o fórum “Diálogos interculturais: Povos e a Natureza”, com debate ao vivo pelas redes sociais marcando a conclusão do curso “Direitos da natureza a partir da interculturalidade”, promovido virtualmente pela Rede Jubileu Sul/Américas (JS/A) entre março e maio, em coordenação com a Acción Ecológica, organização membro do JS/A, e a Universidade Politécnica Salesiana do Equador. O evento, transmitido ao vivo (acesse o vídeo na página do Jubileu Sul Brasil ou no final do texto) também marcou o relançamento da campanha por Justiça Socioecológica, iniciada em março de 2021.

Abrindo o debate, Ivonne Yánez, da Acción Ecológica, chamou atenção para a importância da compreensão e defesa dos direitos da natureza, especialmente na atual conjuntura de uma nova onda progressista na América Latina e Caribe, que é acompanhada por uma tendência de expansão do extrativismo. Como exemplo, ela citou a diferença entre a proposta neodesenvolvimentista de Lula nas eleições do Brasil, uma vez que o candidato afirma ser inviável a não exploração de petróleo, em comparação com a posição do presidente do Chile Gabriel Boric, que defende a garantia dos direitos da natureza na nova Constituição chilena.

“Esses direitos são uma poderosa ferramenta de proteção frente à qualquer Estado, porque há uma interdependência com os direitos humanos que não pode estar dissociada. São direitos para proteger os ciclos naturais, funções, estruturas, que também são valiosos para proteger as pessoas, comunidades e povos. Mas, da mesma forma como aconteceu com os direitos humanos, se os direitos da natureza caírem nas mãos de governos e corporações, podem ser usados para justificar abusos de poder e violações dos próprios direitos humanos”.

Por isso, a importância de que, desde as organizações e movimentos populares, se compreenda o âmbito, as potencialidades e, sobretudo como proteger, defender e exigir os direitos da natureza, diz Yánez. Ela enfatizou que a visão biocêntrica ou o biocentrismo não são a mesma coisa que colocar a vida no centro das decisões políticas e econômicas. Da mesma forma como o conservacionismo, que ao defender a retirada de populações de territórios onde sempre estiveram, sob alegação de proteção de áreas naturais, pode levar tanto à violação dos direitos da natureza, quanto dos direitos humanos.

Sendo os direitos da natureza e os direitos humanos indissociáveis, “além dos problemas e críticas que podem haver, o que temos que criar são propostas conjuntas, transformadoras, com reflexões sobre práticas emancipadoras em torno desses direitos”, completa. 

Assentamento Roseli Nunes. Foto: Andres Pasquis/Gias/Flickr

Crise civilizatória: capital ou vida

Diretor do curso de Antropologia na Universidade Politécnica Salesiana do Equador, o

professor Rubén Bravo afirma que há uma crise global civilizatória que traz um dilema: o capital ou a vida? Para ele, desde a extrema direita até os setores ditos progressistas, a escolha tem sido a de um caminho suicida, de um sistema ecocida.

“É como uma doença que mata, corrói, gera dor, e obviamente essa não é a opção. Quem responde à pergunta e diz que preferimos a vida é um grande desafio porque nos convida a entrar em uma lógica diferente. É um caminho totalmente desconhecido, em que você tem que ir não apenas descobrindo coisas como também fazendo seu próprio caminho”, avalia.

Citando o filósofo italiano Antonio Gramsci ao afirmar que “o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer”, Bravo disse que o momento mostra que o capitalismo não é um sistema absoluto na história, e que é preciso pensar como será essa nova sociedade:

“Acima de tudo isso depende do que temos em nossas cabeças, das concepções que temos sobre o mundo, a vida e o ser humano porque é isso que nos guia. É necessário sistematizar o pensamento de uma nova maneira de viver, de produzir, de conhecer, de sentir. Ou seja, um processo cultural diferente, o que significa uma ruptura estrutural profunda das estruturas que temos hoje”. Nesse sentido, o professor afirma que o processo intercultural deve ser o caminho em contraponto à hegemonia do pensamento único por permitir coletar pensamentos, concepções e práticas culturais dos povos indígenas, por exemplo.

“Nesta nova sociedade, se não o fizermos do ponto de vista dos críticos das culturas, é impossível dialogar com aqueles que defendem cada uma das culturas. Obviamente não é possível dialogar com o Império porque estamos em outras lógicas agora. Diria que o diálogo seria entre os críticos da cultura capitalista moderna, que são justamente as organizações e os movimentos sociais. Estou falando, por exemplo, do movimento feminista, do movimento ambientalista, do movimento indígena, dizendo que todos aqueles que desenvolveram uma crítica e também setores intelectuais que estão nesse processo e que apontam os problemas, os erros”.

Usina Hidrelétrica Belo Monte em Altamira (PA). Foto: Bruno Batista/ VPR/Flcikr

Mulheres e terra não são territórios de conquista

Lourdes Contreras, da Marcha Mundial de Mulheres Macronorte Peru, compartilhou as concepções que estão recuperando e construindo não só no processo de mudança constitucional de seu país, mas também no cotidiano da organização, principalmente entre as mulheres, povos indígenas e camponeses. Para a militante, trata-se de uma criação coletiva a partir da consciência comunitária vital na relação entre os povos e a natureza, uma relação holística integral indissociável para manter a vida no centro de uma proposta política da humanidade.

“Isso implica reconsiderar, reconstruir novos processos recuperando nossas memórias como povos em nossa diversidade. É nosso sistema também como natureza a partir da memória de nossos ancestrais, reconhecendo que tem que haver equilíbrio e harmonia. Numa vida extrativista e equilibrada entre a economia e a natureza deve haver relações recíprocas entre o ser humano e a natureza, um equilíbrio comunitário de todas as relações sociais que existem e que se constrói como parte desse processo de recuperação”, pontua. 

Lourdes também destacou o papel das mulheres nesse processo, trazendo o lema da organização que afirma que nem as mulheres nem a terra são territórios de conquista. Segundo ela, não se trata apenas da dominação da natureza, mas de uma mesma dominação conceitual sobre os corpos das mulheres pelo patriarcado, responsável pela quebra dessa visão holística integral da vida.

“É importante mencionar que o patriarcado e o capitalismo oprimem as pessoas, a natureza, os corpos e a vida de diversas mulheres. Quando falamos de diversidade é porque tem um impacto diferenciado nas mulheres indígenas, camponesas, lésbicas, meninas, e é o colonialismo e racismo no contexto peruano”.

Participantes do fórum transmitido ao vivo

Por um mundo sem dívidas

A socióloga Martha Flores Recinos, da Secretaria Regional da Rede Jubileu Sul/Américas, recordou a trajetória de 22 anos de luta da Rede e suas organizações membro contra o sistema de endividamento, e que a campanha por Justiça Socioecológica é um processo para debater, questionar e entender que a justiça só pode ocorrer tendo a natureza como parte de todos, como centro. Para uma transformação política, e para descolonizar o poder e o saber, ela afirma que é preciso questionar as estruturas, sendo impossível falar de justiça socioecológica sem falar do papel da dívida e das instituições financeiras internacionais.

“É preciso questionar e disputar a narrativa que vem de uma perspectiva muito ocidental, colonizadora, capitalista, em que também houve uma apropriação da linguagem do conceito, dos slogans e até das lutas. Por isso é importante pensar que a justiça socioecológica tem que ser feminista, antipatriarcal, anticolonial. E tem que ter um sentido no qual também nega e desmistifica todo esse processo de construção teórica que existe em relação à questão dos direitos”, ressalta.

Martha defendeu o resgate da memória histórica e da ancestralidade nesses processos, afirmando que os povos ancestrais tiveram uma compreensão da existência em equilíbrio porque já tinham a preocupação com o que poderia acontecer no futuro. Ela avalia que é fundamental pensar na dinâmica entre os povos, natureza e interculturalidade de forma cotidiana em todos os territórios, reconhecendo as dinâmicas próprias dos territórios, além da multiplicidade e multicausalidade de elementos que levam à emancipação.

“Temos que continuar avançando, tecendo em rede com as diferenças que podemos encontrar em relação às concepções, mas com um entendimento de que também precisamos avançar na diversidade do reconhecimento. E também continuar acreditando que podemos e precisamos nos unir na desconstrução de um modelo de opressão. É por isso que estamos muito felizes em poder continuar avançando e convidando para que se juntem às ações pela justiça, pela vida e por um mundo sem dívidas”, conclui.

Sobre a campanha por Justiça Socioecológica

A Rede Jubileu Sul/Américas parte da premissa de que o social e a natureza estão inter-relacionados, e de que não há justiça social sem justiça ambiental. Por isso, a campanha por Justiça Socioecológica foi lançada em março de 2021, visando contribuir para os processos de luta e resistência aos modelos extrativistas e seus impactos sobre os corpos e territórios, para o reconhecimento da dívida ecológica numa perspectiva decolonial, antipatriarcal e antirracista.

Para o Jubileu Sul/Américas, a injustiça socioecológica é reflexo das dívidas pública, social, ecológica e histórica, dos megaprojetos e da militarização, problemas que perpetuam o domínio e exploração das pessoas, dos povos e da natureza. Para avançar, a Rede defende enfrentar o sistema capitalista patriarcal, global e institucionalizado, superar o âmbito individual e caminhar rumo aos direitos coletivos dos povos, em conjunção e interdependência com os direitos da natureza.

Entre os temas centrais da campanha estão dívida social, ecológica e climática e sua relação com a dívida financeira, direitos da natureza, soberania alimentar, defensores da natureza, mudança climática, extrativismo minero, petroleiro e hídrico, lutas de resistência e práticas territoriais, interseccionalidade de gênero e raça e os impactos socioambientais sobre a natureza. A iniciativa também fomenta o debate dos diferentes significados e visões sobre o que é e como se consegue justiça socioecológica, discussão que vem se aprofundando dentro das próprias organizações membro que compõem a Rede.

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