Em contraponto ao modelo econômico neoliberal defendido pelo G20, os participantes da Cúpula dos Povos, defenderam a vida, a justiça social e a soberania dos povos
Por Cláudia Pereira | Cepast-CNBB
Sob um céu cinzento e muita chuva, o Rio de Janeiro recebeu os movimentos populares para a semana do G20 com a mesma intensidade movida pela vibração cultural. O Cristo Redentor, quase oculto pelas nuvens, testemunhou as atividades em torno da agenda internacional do G20 que agitou a cidade. Dos prédios da praia de Copacabana, moradores e turistas viram e ouviram a marcha dos povos e do prédio da Fundição Progresso, centro cultural do Rio, o Tribunal dos Povos condenou o Imperialismo pelos crimes de genocídio, indução à pobreza, guerra econômica e racismo.
Passavam das 14 horas da tarde do dia 14 de novembro e quase já não havia cadeiras vazias do auditório da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) para acomodar centenas de pessoas. Mais de 700 pessoas de todas as regiões do Brasil, algumas representações da África do Sul e de países da América Latina e Caribe, participaram da plenária para debate crítico à Cúpula do G20. “Conseguimos, estamos aqui com a nossa jangada que é o nosso símbolo”, disse a economista e educadora popular Sandra Quintela. Sandra que integra a operativa da Cúpula dos Povos exaltava a conquista em razão dos diversos enfrentamentos para realizar o evento.
As atividades realizadas pela Cúpula dos Povos frente ao G20, foi realizado de forma independente, autônoma e autofinanciada, o evento foi promovido por um coletivo internacional de organizações da sociedade civil, sindicatos, redes e movimentos populares, em paralelo à programação oficial da Cúpula de Líderes do G20, ocorrido nos dias 18 e 19 de novembro na cidade maravilhosa do Rio. A Cúpula dos Povos foi construída em um processo coletivo, com realização de nove plenárias, comitês locais e articulações em várias cidades do país. “
O povo reunido naquele espaço representando os movimentos, organizações e coletivos de lutas, emanou alegria e potência ao reverberar as pautas em defesa da vida dos povos das cidades, do campo, das florestas e das águas. Unidade. A palavra unidade define o encontro dos povos na agenda paralela à agenda oficial do G20.
Com intervenções culturais de maculelê, capoeira, batucada da Marcha Mundial de Mulheres e um toré da TI Guarani Tekoa Ka’aguy Hovy Porã, da cidade de Maricá (RJ), o momento se tornou ainda mais forte. A plenária estava colorida com bandeiras dos movimentos e a presença das mulheres que eram maioria.
Aproveitar o espaço do G20 foi oportuno para os povos alertarem a sociedade que o sistema imposto e as decisões do G20, além de contraditórios não está comprometido em defender a vida e o planeta. “Os planos traçados por líderes globais, do G20, estão desconectados da nossa realidade. Ao colocarem o lucro acima de tudo, eles negligenciam as necessidades de bilhões de pessoas. Nós, mulheres, homens, jovens e crianças, estamos aqui para dizer que queremos um futuro diferente: um mundo onde a dignidade humana, a sustentabilidade socioambiental e os direitos humanos sejam de fato prioridades. Defendemos um mundo melhor e que sejamos incluídos nas decisões a partir das nossas propostas alternativas para uma vida digna, justa e segura para o mundo”, dizia Francisco Vladimir, da coordenação da Rede Jubileu Sul Brasil ao abrir a plenária.
“Nós precisamos dessa articulação que a cúpula dos povos para poder ecoar as nossas vozes”.
Com o lema “A vida acima do lucro: povos e natureza não estão à venda”, a plenária apresentou o painel com destaque para os temas sobre a reparação, governança capitalista, racismo e a luta dos povos. Cleusa Silva, da Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras e da Rede de Mulheres Afro Latino-americanas e Caribenhas, iniciou o debate com o tema sobre a reparação histórica e social. “Precisamos aprofundar a questão da reparação e a temática do bem viver, todas essas questões estão ligadas com a nossa vida, com a segurança alimentar, do direito à terra e água”, disse Cleusa.
Outro momento importante do painel foi a partilha da escritora e jornalista palestino-brasileira Soraya Mislesh que abordou sobre a resistência histórica do povo palestino. Soraya reforçou que a Cúpula dos Povos é um espaço articulação e de denúncia. Durante a sua fala ela denunciou o genocídio contra os palestinos e as violações de diretos humanos no Brasil e no mundo.
“Acho que a denúncia é muito importante justamente para que possamos articular a solidariedade, se organizar e entender que as armas que estão matando os palestinos são testadas nesses corpos palestinos, depois vendidas para o mundo para promover o genocídio do pobre negro, indígena, o genocídio contra os povos das periferias brasileiras. Nós precisamos dessa articulação que a cúpula dos povos para poder ecoar as nossas vozes”, afirmou Soraya.
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Após o painel os participantes se dividiram em grupos de plenárias temáticas e ao final do encontro partilharam os debates e encaminhamentos. O grito do povo ressaltou nesse encontro que a luta precisa ser feita em Unidade, não somente quanto ao Brasil, mas de mãos dadas com a América Latina. A causa palestina é uma prioridade atual e que precisa ser fortalecida, a necessário a reorganização dos movimentos populares e o protagonismo das mulheres nos espaços coletivos de luta precisa ser reconhecido.
“Essa canção bonita, esse coral, há de chegar aos ouvidos dos poderosos do mundo”
Para o deputado federal Chico Alencar (PSOL) que participou do encontro, a Cúpula dos Povos é de máxima importância. Embora o governo tenha organizado o G20 Social, o espaço expressou o grito dos invisibilizados. “Aqui tem mais vivacidade e mais intensidade, mais coração, mais sangue do que o próprio G20 social que o governo organizou. Tem seus méritos, mas aqui é a expressão mais pura, bruta no sentido mais bonito da palavra, bruta, bruta flor do querer da gente, dos povos indígenas, dos marginalizados, dos invisibilizados, das mulheres, de povos e nações secularmente oprimidos. Essa canção bonita, esse coral, há de chegar aos ouvidos dos poderosos do mundo”, disse ele.
Ao final do encontro houve uma solenidade de transmissão com a entrega da jangada símbolo da Cúpula dos Povos frente ao G20 a representantes de organizações, como a Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), para a “Cúpula dos Povos Rumo à COP 30”, que se realiza em Belém (PA), em 2025.
“A jangada é o enfrentar os mares bravios, é desbravar. É o bem viver, vida farta e plena. Chegamos até aqui e vamos continuar nos fortalecendo rumo à COP 30, na luta por um mundo de justiça, onde a vida esteja acima do lucro, onde os povos e a natureza não estejam à venda”, afirmou Sandra Quintela da coordenação da Rede Jubileu Sul Brasil, uma dos organismos que integrou na articulação da Cúpula dos Povos frente ao G20.
Tribunal dos Povos: o imperialismo no banco dos réus
“Caminhamos a passos firmes com os olhos no horizonte socialista, venceremos.”
Da Fundição Progresso, antigo prédio de uma fábrica de fogões na Lapa (RJ), que hoje é um importante centro cultural, foi cenário para o julgamento do imperialismo. Mais de 1.500 pessoas estavam presentes. Um momento marcante que certamente ficará na história da luta popular no Brasil.
Na tarde de 15 de novembro, o tribunal popular foi mais um espaço de denúncia contra as violações de direitos aos povos e as políticas imperialistas que causam guerras e a invisibilidade aos povos. Com objetivo em julgar os casos analisados a fim de condenar o capitalismo por seus crimes contra os direitos humanos, foram julgados: Genocídio dos povos, indução à pobreza, guerra econômica e violações da soberania autodeterminação dos povos e racismo estrutural e ambiental.
Vítimas diretas de crimes do imperialismo, representantes da Palestina, União Europeia, Cuba, Haiti e Brasil, estiveram presentes como testemunhas. O júri foi composto por representantes de povos afetados pelo imperialismo. “O objetivo deste tribunal é de denunciar os crimes praticados pelo imperialismo”, explicou a juíza Simone Nacif, membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).
O tribunal foi organizado de maneira autônoma pelos movimentos sociais que integraram a Cúpula dos Povos Frente ao G20, na cidade do Rio de Janeiro, entre os quais integraram o Movimento dos Trabalhadores Rurais (MST), Marcha Mundial das Mulheres, PCdoB, Rede Jubileu Sul Brasil, Movimentos da ALBA, Amigos da Terra Brasil, ABJD, MAM, Assembleia Internacional dos Povos, CONAM e teve apoio da Jornada Continental pela Democracia e Contra o Neoliberalismo.
Um minuto de silêncio em respeito às vítimas da palestina, foi o que pediu Rula Shaheed ao iniciar a sua fala. Representando seu povo ela relatou os horrores da guerra cometida pelo Estado de Israel. A negação de direitos para o povo palestino atravessa sete décadas e atualmente o que o mundo naturaliza e o genocídio, disse Shaheed ao relatar as dores do povo palestino com coragem e muita força.
Em referência a pauta sobre o livre comércio que afeta todos os povos, sobretudo povos do campo e comunidades tradicionais, Raiara Pires, militante do Movimento por Soberania Popular na Mineração (MAM), enfatizou que o tratado de livre comércio, embora esteja em negociação, viola os direitos humanos.
Cuba e Haiti foram destaque. As denúncias do bloqueio (embargos econômicos) a Cuba que causam consequências graves e ultrapassam valores estratosféricos acima de US$ 1 bilhão. Do outro lado está o Haiti que vive situação semelhante ao povo palestino, um genocídio com diferença de não haver bombardeio aéreo, mas massacres, fome e muita miséria.
O Tribunal Popular condenou o imperialismo por quatro crimes graves contra a humanidade.
“Julgo procedente o pedido e declaro ilegítimas as falsas e soluções apresentadas pelo sistema capitalista e condeno o imperialismo pelos crimes de genocídio dos povos na Palestina, de indução à pobreza através de políticas de austeridade e tratados de livre comércio, de guerra econômica com violação da soberania e da autodeterminação dos povos em Cuba e Haiti e de racismo estrutural e ambiental no Brasil contra a juventude negra no Rio de Janeiro e contra o meio ambiente pelo rompimento da barragem de Fundão Mariana. Exige reparação para que o sistema neoliberalismo seja extinto e que possamos construir uma sociedade com base na solidariedade. Caminhamos a passos firmes com os olhos no horizonte socialista, venceremos”, finalizou a juíza Simone Nacif ao condenar o imperialismo.
Marcha “Palestina livre do Rio ao Mar. Fora imperialismo!”
O sábado do dia 16 de novembro amanheceu chuvoso, mas nada impediu a Marcha dos Povos na orla de uma das praias mais famosas do mundo, a praia de Copacabana. Milhares de pessoas representando um coletivo de organizações nacional e internacional denunciou o genocídio em Gaza e no Líbano, além de denunciar as diversas violações sofridas pelos povos e comunidades tradicionais do Brasil.
Confira outras imagens da Marcha dos Povos no Flickr do Jubileu Sul Brasil
Sob chuva e um aparato de segurança a marcha alertou para sobre o avanço do agronegócio nos territórios dos povos tradicionais e originários, reforçou a denúncia de envenenamento através dos agrotóxicos, a destruição das florestas e biomas. Denunciou a exploração de minérios que alimenta os conflitos no campo e assim como o agronegócio distancia a reforma agrária. Sem contar que todas essas denúncias alertam para o risco de todas as formas de vida no planeta. A pauta dos povos do Haiti e Cuba teve representações durante a marcha para lembrar que os países têm sofrido com os embargos internacionais. A marcha reafirmou que a vida e a natureza não estão à venda e a vida.
O recado foi dado, a Marcha dos Povos apontou para a urgência e prioridades em políticas públicas, soluções concretas para a pauta sobre a crise climática, condenação ao genocídio dos povos da Palestina, Líbano e os povos originários. Com todas as dores, os povos demonstraram a força, coragem e alegria em defesa da vida.
A Cúpula dos Povos demonstrou que a esperança é teimosa, que lutar por um mundo mais justo é permanente, é como dizia o profeta dom Pedro Casaldáliga: se vive a luta na paz inquieta. A união dos movimentos populares, a diversidade dos povos e a força da mobilização popular são elementos essenciais para construir o caminho do futuro em que a vida está acima do lucro. A luta continua, e o desafio é transformar as palavras em ações concretas, pressionando os governos a adotarem políticas que beneficiem a todos sobretudo os mais pobres. E o compromisso com a casa comum é de todos e todas.