Seis meses após a tragédia-crime que afetou a região com enchentes e deslizamentos, centenas de famílias sofrem com falta de assistência e de políticas públicas para reconstruir suas vidas
Por Flaviana Serafim – Jubileu Sul Brasil
Entre os dias 24 e 26 de julho, a Rede Jubileu Sul Brasil (JSB) participou da missão-denúncia que apurou violações de direitos humanos na Baixada Santista e Litoral Norte de São Paulo, causadas por conflitos fundiários, catástrofes decorrentes das mudanças climáticas, megaprojetos e ausência de infraestrutura, tais como acesso à moradia digna e à água.
A iniciativa é da Campanha Despejo Zero e do Fórum Nacional de Reforma Urbana, entre outras organizações, que preparam um relatório para dar visibilidade às denúncias, além de recomendações visando à garantia do cumprimento de direitos das populações afetadas.
“Nessa missão-denúncia, percebemos que a luta por moradia e pelo direito à vida também envolve um debate bastante importante que o Jubileu Sul Brasil vem fazendo, que é o da justiça socioecológica. Isso tem a ver com a discussão que tem sido feita sobre o impacto das mudanças climáticas nas cidades, comunidades, territórios. O que aconteceu, sobretudo no Litoral Norte, demonstra que a questão tem tudo a ver com especulação imobiliária, com o uso inadequado dos recursos públicos e a não priorização ao direito à moradia, à saúde e educação”, afirma Rosilene Wansetto, secretária executiva da Rede. Ela compartilha seu relato sobre a missão no artigo Os olhos carregam a dor do descaso.
“A missão é importante para contribuir de forma coletiva com as comunidades na visibilidade da luta, da resistência, das proposições e necessidades que essas populações enfrentam no cotidiano, e ainda para pressionar os gestores públicos municipais, estadual e federal a tomar providências urgentes e a responder aos atingidos de forma adequada”, completa Wansetto.
Nos dias 24 e 25 de julho, a missão visitou comunidades nas cidades de Bertioga, Cubatão, Guarujá, Santos, São Sebastião e São Vicente. No dia 26 de julho foi realizado diálogo dos moradores com o Ministério Público e a Defensoria Pública, na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) Subseção São Sebastião, encerrando com audiência pública popular no auditório do Campus Baixada Santista da Unifesp, em Santos.
Em meio ao enfrentamento às condições precárias e a luta por moradia digna, as comunidades e suas lideranças têm sofrido ameaças, perseguições e retaliações por parte das prefeituras e das polícias locais. Por isso, os nomes das e dos entrevistados não serão identificados na reportagem.
Luta por regularização fundiária, contra despejos e megaprojetos
Na Baixada Santista, onde há mais de 150 mil moradias precárias, a especulação imobiliária, os processos de gentrificação, a ausência de políticas públicas de habitação e de regularização fundiária têm mantido diversas comunidades em condições inadequadas de acesso à moradia, água, luz e outros serviços públicos.
A missão-denúncia começou visitando o Morro do Itararé, em São Vicente, uma grande área pertencente à Irmandade da Santa de Misericórdia de Santos é ocupada há anos por meio do chamado aluguel de chão, locação no qual os inquilinos pagam aluguel do terreno e constroem as casas por conta própria sem que tenham direito à propriedade do imóvel.
No Morro do Itararé, a Santa Casa santista alega “área de risco” e “impacto ambiental” numa ameaça de despejo que é seletiva, afetando os moradores que não têm condições de pagar o aluguel de chão – os que pagam não serão despejados, apesar da condição de risco e a degradação ambiental afetarem o conjunto da área. A Defensoria Pública informou que aguarda audiência sobre o caso na Vara Cível de São Vicente e, caso não haja um acordo, a expectativa é barrar, no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), a ação de despejo movida pela Santa Casa de Santos.
Na Ocupação Bela Vista, liderada pela Central de Movimentos Populares (CMP) no bairro Vila Progresso, Morro Nova Cintra – o ponto mais alto de Santos, a 184,7 metros acima do nível do mar – há mais de 50 anos se arrasta a mesma situação de aluguel de chão numa área particular pertencente à família da imigrante italiana Giuliana Mecocci Russo. Depois de um deslizamento de terra ocorrido no Morro do Jabaquara, em 1966, a Prefeitura de Santos precisava de um local para transferir as famílias que haviam perdido suas casas e, proprietária de uma chácara grande, Russo foi cedendo a área por meio do aluguel de chão.
Hoje são centenas de famílias lutando por regularização fundiária e direito à propriedade, uma vez que há gerações vêm pagando o aluguel do terreno onde construíram suas casas. Muitos estão em área de risco de deslizamentos, em moradias vulneráveis, sem saneamento básico, sob ameaça de despejo, além de enfrentarem a truculência policial, com relatos de assédio e perseguição a moradores pela Guarda Civil Metropolitana e pela Polícia Militar. Enquanto isso, há anos se arrasta um imbróglio judicial entre a Prefeitura e a família proprietária, com ação pelo Ministério Público. A situação da comunidade é narrada no curta-metragem Aluguel de chão.
No São Manoel, região noroeste de Santos, cerca de 150 famílias que viviam em palafitas foram retiradas entre 2018 e 2019, e atualmente cerca de 200 estão sob ameaça de despejo numa área pertencente à União, mesmo vivendo majoritariamente em casas de alvenaria e num bairro com infraestrutura urbana. Além da alegação de questões ambientais envolvendo a área, que é banhada pelo Rio dos Bugres e Rio Casqueiro, na divisa com Cubatão e São Vicente, o Plano Municipal de Mobilidade e Acessibilidade Urbanas (PlanMob Santos) prevê a construção de uma via pública que pode levar à retirada de dezenas de residências ao longo da Rua João Carlos da Silva.
“A Prefeitura alega problema ambiental, mas por que não vão nas empresas que estão na mesma área que nós? Por que não tiram também as empresas em vez de retirar quem é trabalhador?”, questiona um líder da comunidade. Recentemente, houve uma reunião entre a comunidade e representantes do Escritório Descentralizado do Patrimônio da União (EDESC – SPU), e os moradores aguardam retorno federal sobre a situação.
Na Vila dos Pescadores, em Cubatão, o que a prefeitura chama de “projeto de urbanização” significa para a comunidade incertezas, falta de diálogo e de transparência. Há uma proposta de construção de mais de 1.300 moradias, que serão principalmente verticais, e 80 casas flutuantes nas margens do Rio Casqueiro. Contudo, o que está em jogo é a retirada de moradores para a construção de um viaduto, custeado pela MRS Logística, interligando a Av. Tancredo Neves à região. Em reunião com a missão-denúncia, lideranças reclamaram da falta de informações e de consulta à comunidade.
“Não estamos de acordo porque não fomos comunicados sobre como isso será feito. Nós devemos ser escutados porque nesse projeto nossas casas não aparecem mais. É um projeto que está no escuro, não sabemos como seremos inseridos nem o que vai acontecer com nossas casas e com a comunidade. Não é simplesmente construir prédios e desalojar as pessoas, mas sim fazer uma melhoria para todos ouvindo a comunidade”, critica a moradora A. O.
Confira a reportagem sobre a missão na TV Tribuna
Litoral Norte: “bonito por natureza, destruído pelo sistema”
Seis meses após a tragédia-crime ocorrida no Litoral Norte, em São Sebastião, o cenário caótico também expressa o descaso e a indiferença dos poderes públicos com o problema de moradia. Junto com as perdas humanas e materiais, as comunidades atingidas continuam sofrendo com todo tipo de abandono: ausência de auxílio para pagamento de aluguel e para compra de itens da linha branca, incertezas quanto ao futuro das moradias, falta de atendimento à saúde e transporte adequados, e ainda ausência de informações e de canal de diálogo com os atingidos.
Nas comunidades visitadas no dia 25 de julho, a missão-denúncia também constatou que sequer houve a retirada total de entulho dos locais atingidos pelos deslizamentos e enchentes, como é o caso da Vila Tropicanga, em Boiçucanga. Na área, há imóveis não demolidos que podem desabar a qualquer momento no alto de um barranco, e nas ruas permanecem pedras gigantescas trazidas com os deslizamentos de terra e até a sucata retorcida de um automóvel.
O Morro do Esquimó, no Juquehy, é uma das comunidades ainda mais precárias devido à vulnerabilidade das moradias, a maioria barracos de madeira, sem acesso à água tratada, esgoto e fornecimento regular de energia. Laudos da Defesa Civil apontam a necessidade de os moradores deixarem o local, mas sem teto e sem qualquer assistência da Prefeitura de São Sebastião, foram obrigados a retornar às moradias.
Na primeira quinzena de julho, com os impactos da passagem do ciclone extratropical pelo Sul do país, a forte ventania obrigou os moradores a sair de suas casas no meio da noite, com medo das casas desabarem. Sob o frio e a chuva, eles se abrigaram num ponto de ônibus na beira da estrada próxima, inclusive diversas mulheres com crianças e até bebês recém-nascidos. No Morro Pantanal, também no Juquehy, falta infraestrutura e para ter acesso à água limpa as mulheres têm que subir centenas de degraus de uma escadaria íngreme para chegar à caixa d’água tratada instalada numa igreja.
Preconceito e xenofobia
Na Vila do Sahy, em São Sebastião, o cenário é semelhante ao de um terremoto, com escombros em meio à terra dos deslizamentos. Junto com a falta de assistência para reconstruir suas vidas, os moradores denunciam o terrorismo de Estado que sofreram em meio à tragédia devido à atuação truculenta do Exército, do Corpo de Bombeiros, da Polícia Militar e da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU) para desocupação do local. Apesar da tragédia, a área é de forte interesse pela especulação imobiliária na região.
Representantes da comunidade relataram que, em vez de receber assistência para moradia, muitos foram pressionados a aceitar passagens para que mudassem para o Nordeste – o próprio prefeito de São Sebastião, Felipe Augusto (PSDB), chegou a abordar moradores que o questionaram sobre a necessidade de medidas urgentes e disse a atingidos: “volte para sua terra”.
“Voltar para minha terra? A terra é o mundo todo e, mesmo sendo do Nordeste, é aqui o meu lugar há décadas, é aqui onde construí minha casa, onde pago meu IPTU, a taxa de esgoto e todos os impostos”, desabafa uma moradora.
Ao mesmo tempo em que se defende de um processo de cassação do mandato por superfaturamento e desvio de verbas durante a pandemia de Covid-19, Augusto entrou na Justiça contra a própria Prefeitura Municipal cobrando R$ 247 mil alegando “direitos trabalhistas” para receber férias e 13º salário como os servidores públicos de São Sebastião. Em junho último, a ação foi julgada improcedente pela 2ª Vara Cível da cidade, mas cabe recurso.
Já as 300 famílias transferidas de São Sebastião para Condomínio Quaresmeira, no Conjunto Habitacional Caminho das Árvores, em Bertioga, denunciam que, por terem acessado à moradia temporária nos apartamentos, deixaram de receber qualquer outro tipo de apoio da prefeitura sebastianense.
Para sair para trabalhar, têm que estar às 4h da madrugada no ponto de ônibus para entrar na fila do transporte a São Sebastião, e os que estão desempregados sofrem preconceito em Bertioga com a recusa de vagas por serem de outra cidade. Todo o atendimento à saúde desses moradores é feito exclusivamente em São Sebastião, obrigando quem precisa do SUS a viajar por quase duas horas nos cerca de 100 km de distância entre os dois municípios.
A missão-denúncia visitou e dialogou com a população do Morro do Itararé (São Vicente); dos bairros São Manoel, da comunidade Alemoa e da Ocupação Bela Vista (Santos); da Vila dos Pescadores (Cubatão); do Sítio Conceiçãozinha (Guarujá); dos morros do Esquimó e Pantanal, da Vila Sahy e Baleia Verde, das comunidades Beira Rio e Tropicanga (São Sebastião) e do conjunto Quaresmeira (Bertioga).
Entre as organizações, entidades e movimentos que integraram a missão, além da Campanha Despejo Zero, Fórum Nacional de Reforma Urbana e Rede JSB, participaram a Associação de Favelas de São José dos Campos, a Habitat para Humanidade, Comitê de Atingidos do Litoral Norte de São Paulo, Instituto Polis, Conselho Nacional de Direitos Humanos, Confederação Nacional das Associações de Moradores (Conam), Central de Movimentos Populares (CMP) e Coletivo Caiçara.
Confira o álbum: