Por Rosilene Wansetto*
A dor que salta aos olhos das mulheres e crianças é imensurável. Os pés cansados seguem conduzindo centenas de famílias e milhares de pessoas na busca por seus direitos, direito à vida. As mãos trêmulas carregam a água escadaria acima para preparar o pouco alimento disponível. O coração cheio de dores por tudo que viveram há seis meses e pelo que ainda vivem. O descaso segue profundo e não é só de agora, de seis meses, o descaso vem de antes. A Mãe Terra havia dado outros sinais, mas a ganância e o descaso falaram mais alto, silenciando os sinais.
No próximo dia 19 de agosto completam-se seis meses da tragédia-crime no Litoral Norte de São Paulo, no município de São Sebastião. Em missão de denúncia e solidariedade, o que pudemos presenciar dialogando com centenas de famílias, que seguem totalmente abandonadas pelo poder público local, estadual e federal, foi o enorme descaso, desrespeito e racismo ambiental e estrutural cometido contra essas famílias.
As dezenas de famílias, áreas, morros, comunidades que foram atingidas com as fortes chuvas seguem sem providências. O entulho — árvores que foram arrastadas, pedras que rolaram, carros amassados como papel, casas destruídas —tudo segue igual ao dia da tragédia. As famílias sem ter para onde ir depois dos dias passados da tragédia voltam para suas casas e seguem em risco.
Muitas vidas foram perdidas devido aos soterramentos e as vidas que sobreviveram seguem com tanta dor e traumas que caminham com dificuldade de seguir em frente. O medo da próxima chuva é visível. O trauma pós tragédia as acompanha marcando o corpo, o psicológico e o coração sem nenhuma assistência.
As moradias já precárias que sofreram com a chuva seguem ocupadas por seus moradores com riscos ainda maiores. É nítido o descaso, mas é ainda mais evidente o racismo ambiental praticado contra essas mulheres, crianças, idosos e dezenas de comunidades, são em sua maioria pessoas negras, caiçaras, indígenas. É visível o descaso com as pessoas e famílias que vivem do lado do morro. Do outro lado da rodovia, onde vivem as famílias ricas e que exploram a mão de obra dos que vivem nas comunidades dos morros, demonstra o que falamos sobre racismo ambiental. De um lado da rodovia já tem praticamente toda a infraestrutura recuperada, do outro nem os entulhos foram removidos, a lama secou e continua lá, as pedras que rolaram seguem no mesmo lugar, as casas a ponto de cair com seus moradores dentro. Do lado da burguesia branca a recuperação já está em curso. Onde vive a população pobre atingida tudo segue igual ao dia da tragédia, sem reconstrução, só paliativos.
Essas famílias não têm transporte adequado, o acesso à escola para as crianças é negado ou quando oferecido está em estado precário. O acesso à saúde e atendimento assistencial é negligenciado. O direito à alimentação e a água potável é precário. As pessoas dessas áreas não são vistas como sujeitos de direitos. São vistas como massa de manobra para os interesses de alguns poucos detentores de poderes político na região e que defendem a especulação imobiliária. A tragédia ambiental era previsível, porém a vontade política e a prioridade do poder público de construir casas adequadas para essas centenas de famílias nunca foi prioridade.
O descaso sentido e vivido por essas centenas de famílias causa uma dor profunda. Não é possível mensurar os gritos silenciados. Por outro lado, o que vimos e sentimos foi uma coragem que vem desses gritos e dessas mulheres. Sim, em sua maioria são mulheres que fazem a luta acontecer.
“A dor nos move para fazer a nossa voz ser ouvida, nada sem nós”. Essa foi uma das frases que mais escutei durante a missão. Nenhuma decisão deve ser tomada pelo poder público sem a comunidade. Porém, isso não tem acontecido de fato. As famílias atingidas não têm tido o direito de participar das decisões, não estão sendo consultadas sobre as casas que estão sendo construídas, se desejam morar naquele local destinado pelos gestores públicos.
Os moradores dessas comunidades exigem do poder público transparência na aplicação dos recursos públicos destinados para a reconstrução das áreas impactadas. Dinheiro que, ao que parece, já desapareceu e nada ou quase nada foi feito. Onde estão sendo aplicados e em quais condições? Quanto de recursos públicos foram repassados pelo governo federal, estadual, por doações, onde estão os recursos? Outra demanda das comunidades é sobre o plano de proteção de emergências e contenção das encostas, dos morros. O que está sendo planejado? Pois até agora nas encostas onde essas centenas de famílias vivem nada foi feito, segue como no dia da tragédia crime.
O direito à moradia e habitação de qualidade segue sem solução, com algumas ações paliativas, mas que não dão nenhuma segurança futura. O descaso com a saúde, educação, transporte, alimentação, água, trabalho… são inúmeros os problemas que seguem sem nenhuma solução plausível. O que presenciamos foram os direitos humanos sendo violados em toda a sua amplitude. Racismo ambiental é tudo isso somado ao privilégio branco e à xenofobia. Os crimes são inúmeros com as pessoas atingidas.
Outra demanda das comunidades é um basta à perseguição das lideranças. Lutar não é crime. Lutar e reivindicar direitos é um direito. Basta de criminalização. Basta de ameaças para as comunidades e lideranças.
A dor do outro precisa ser sentida por todos nós e nos mover, criar sinergia, luta, sororidade. Que a coragem que vi nos olhos e corpos daquelas mulheres nos motivem a seguir de pé e em luta por elas e por nós. Que nossos pés sigam o mesmo compasso das batidas do coração dessas mulheres que carregam o desejo de que seus direitos sejam respeitados e garantidos. Há uma dívida social e ambiental imensurável nesta região. Sigamos na luta por justiça socioecológica.
*Rosilene Wansetto é secretaria executiva da Rede Jubileu Sul Brasil e participou da Missão-Denúncia e Solidariedade, de 24 a 26 de julho, no Litoral Norte e Baixada Santista (SP).