“Apesar das boas intenções da diplomacia lulista, é improvável que neste fórum sejam encontradas soluções para os temas elencados como prioritários – combate a fome, desenvolvimento sustentável e reforma da governança global”, analisa o historiador Miguel Borba de Sá, em artigo sobre os significados do Grupo das 20 maiores economias mundiais
Por Miguel Borba de Sá* – Opera Mundi
Em 2024, os encontros do G20 acontecem no Brasil. Em março último, os chanceleres das vinte maiores economias do mundo reuniram-se no Rio de Janeiro, ao passo que os dirigentes de Bancos Centrais ou Ministérios da Fazenda realizaram a sua reunião em São Paulo. Foram, ambos, momentos preparatórios para a cúpula de chefes de Estado que acontecerá em novembro na capital fluminense. Mas qual é o verdadeiro significado do G20?
Há quem se entusiasme com a projeção internacional que o Brasil pode adquirir ao sediar o encontro deste ano. Projeção não apenas para o país, pois até mesmo a prefeitura carioca aproveitou para consolidar a imagem de ‘cidade global’[¹] diante deste outro Mega-Evento na cidade, tendo espalhado vasta publicidade pelo município com os dizeres: Rio – capital do G20.[²] No entanto, a realidade é bem mais crua. Apesar das boas intenções da diplomacia lulista, é improvável que neste fórum sejam encontradas soluções para os temas elencados como prioritários pelo Brasil: (1) combate a fome, pobreza e desigualdade; (2) desenvolvimento sustentável; e (3) – o menos plausível de todos – reforma da governança global.
O G20 surgiu como uma resposta desesperada das elites capitalistas globais perante a crise financeira iniciada em 2008 e 2009, quando o tradicional clube dos países mais ricos do mundo – o chamado G7 – não possuía mais condições de restaurar sozinho a liquidez da economia global. A crise havia sido desencadeada pela especulação desenfreada com títulos podres nos Estados Unidos, conhecidos como subprimes, que produzira uma ‘bolha’ no setor imobiliário-hipotecário norte-americano. Quando a bolha explodiu, os efeitos se alastraram por outras economias capitalistas, tornando necessária a coordenação das respostas de diversos países. O objetivo era claro: transferir as dívidas privadas (especialmente dos bancos) para os cofres públicos, o que acabou por gerar crises de endividamento estatal em toda a parte nos anos seguintes.
Qualquer menção ao G20 previamente à crise de 2008-2009 é, portanto, anacrônica, senão enganosa. O fato da sigla “G20” já ter sido cunhada antes não significa nada, pois sua razão de existir, tal como o conhecemos hoje, somente surgiu no bojo daquela crise financeira. Afinal, na reunião da Organização Mundial do Comércio em Cancún, no ano de 2003, também fundou-se um “G20 Comercial”, cuja função era totalmente distinta, ou até mesmo oposta: enquanto no âmbito mercantil aquele G20 operou como uma frente comum dos países ‘emergentes’ contra os países ricos, no atual “G20 Financeiro” as economias emergentes simplesmente significam um alargamento do número de países que farão aportes (públicos) para que o capitalismo global siga em frente, apesar das contradições e crises que gera.
Antes de 2008-2009, não se falava a sério em G20 pois quem dava as cartas na governança da globalização capitalista eram fóruns do tipo a Comissão Trilateral[3] e, depois, o G7 – que ocasionalmente tornava-se G8, ao se incluir a Rússia por razões extraeconômicas (militares). Ninguém contestava abertamente a primazia ocidental (e de seus vassalos, como o Japão) até que o próprio ocidente precisou pedir ajuda. Foram os altos funcionários do governo estadunidense que escolheram, um por um, os membros daquilo que seria o G20.[4]
Não se trata de um fórum democrático, portanto, nem com uma legitimidade conquistada na prática. Seu maior sucesso, até hoje, foi manter um sistema injusto de pé: salvou bancos e grandes empresas multinacionais ao custo do empobrecimento massivo de milhões de pessoas – mas o fez de ‘forma coordenada’, sendo esta a grande função do G20: evitar descompassos que ponham em risco o sistema financeiro global.
Hoje, o que o G20 tem para oferecer não mudou substancialmente. Nos encontros prévios da semana passada sequer houve declaração final conjunta devido a impasses geopolíticos, nomeadamente a Guerra na Ucrânia e o massacre israelense em Gaza. Em termos de governança política, portanto, o G20 serve para pouca coisa. Mas no que se refere ao empenho comum em salvar o capitalismo de si próprio mediante novas rodadas de endividamento público, expropriação de direitos dos trabalhadores e consagração dos privilégios econômicos dos super-ricos, nisto sim, o G20 segue sendo o fórum mais adequado.
Por isso, há pouco – ou nada – a celebrar com a realização deste encontro no Brasil em 2024. O lugar escolhido para receber os dirigentes globais no Rio de Janeiro, a Marina da Glória, é mais um local de espetáculos privados que se apoderou de um espaço público, algo bem ilustrativo do caráter de Mega Evento que o G20 possui. Os cariocas sabem bem os custos sociais que o ciclo de Mega Eventos da última década os legou: remoções em massa de comunidades pobres; destruição de aparelhos e espaços públicos de lazer; gentrificação da cidade; encarecimento generalizado de produtos básicos, transportes e aluguéis; precarização laboral; práticas autoritárias de ‘limpeza social’ das áreas nobres e do centro da cidade, com ataques brutais ao comércio ambulante e pessoas em situação de rua. Enfim, a conhecida lógica da cidade-mercadoria que foi imposta ao Rio de Janeiro ‘global’.
O G20 da Marina da Glória promete ser mais um evento desta sociedade do espetáculo, na qual vale tudo para manter os lucros em alta, não obstante os custos sociais engendrados. Não podemos nos enganar nem por um segundo quanto ao caráter imperialista e subimperialista deste fórum. Assim como no território onde será realizado o encontro deste ano, em escala mundial o G20 também possui apenas uma única função: ser a nova face do capitalismo neoliberal globalizado.
Quem desejar celebrar, é livre para fazê-lo. Só não é recomendável se enganar: é impossível ser anti-imperialista, anticapitalista ou decolonial e, ao mesmo tempo, festejar o G20. Seria mais coerente enfrentá-lo e denunciá-lo, como aliás já fazem há muitos anos uma série de movimentos sociais, partidos de esquerda, sindicatos e entidades de luta da sociedade civil organizada mundo afora. Se o capitalismo neoliberal não mudou, por que nós haveríamos de mudar justo na hora de lutar contra ele?
(*) Miguel Borba de Sá é historiador pela UFRJ, doutor em Relações Internacionais pela PUC-RIO e Mestre em Ideologia e Análise de Discurso pela Universidade de Essex.