Por José Lisboa Moreira de Oliveira.
Muito tem se falado nos últimos anos sobre a mercantilização da educação superior no Brasil, resultante, segundo Morais, da devastação intelectual e dos regimes discricionários que só criaram até agora uma pseudodemocracia (MORAIS, 2011, p. 24). Essa mercantilização, segundo o autor apenas citado, seria uma espécie de nova barbárie, uma vez que despreza por completo o mais precioso capital humano, a inteligência (Ibid.,p. 30).
1. A mercantilização da educação
Porém, quando falamos de “mercantilização da educação” no Brasil não devemos pensar apenas naquelas “faculóides” que oferecem cursos a R$ 1,99, sem se importar com o futuro que estão preparando para o país. Esse tipo de instituição de ensino superior (IES) é um mero “supermercado de diplomas” (Ibid., p. 70) que vende, no senso mais estrito da palavra, certificados e históricos escolares, e se mantêm funcionando porque as disposições legais que regema educaçãosuperior no Brasil não são cumpridas e essas instituições não são seriamente fiscalizadas.
A mercantilização da educação superior pode acontecer também em instituições que, se declarando sérias, vão, aos poucos, deixando-se seduzir pelos atrativos do mercado. Pressionadas pela lei da concorrência, essas instituições deixam de lado os objetivos da missão e a ética e terminam por ceder às imposições do mercado. E isso acontece porque os atuais discursos e práticas ideológicas neoliberais permeiam tudo, inclusive ajudando a dissimular a realidade:
A ideologia caracteriza-se por dissimular a realidade, apresentando como “naturais” elementos que na verdade são determinados pelas relações econômicas de produção, por interesses da classe economicamente dominante […]. O discurso liberal permeia, entre nós, as propostas oficiais e muitas das concepções dos próprios educadores […]. Essa tendência expressa uma visão da instituição escolar que chamaríamos de otimista e ingênua. Ela a vê como algo fora da dinâmica social, como impulsionadora desta dinâmica e acredita que, sendo espaço privilegiado de transmissão de cultura, a escola “dá o tom” à sociedade (RIOS, 2007, p. 35-36).
Tem razão Rios, uma vez que quem “dá o tom” é a visão neoliberal que tem no mercado o seu foco. Tudo vira mercadoria a ser vendida e negociada, inclusive a educação. E neste contexto as decisões não ficam por conta dos que fazem e dos que agem. Elas são tomadas pelos que investem:
[…] os empregados, os fornecedores e os porta-vozes da comunidade não tem voz nas decisões que os investidores podem tomar; e que os verdadeiros tomadores de decisão, as “pessoas que investem”, têm o direito de descartar, de declarar irrelevante e inválido qualquer postulado que os demais possam fazer sobre a maneira como elas dirigem a companhia (BAUMAN, 1999, p. 13).
E de que maneira as IES, inclusive as públicas, cedem a essa pressão do sistema neoliberal? De várias maneiras, eu responderia. De um modo geral as IES continuam com um discurso bonito, defendendo princípios éticos e de uma educação de qualidade, voltada para a construção de um país justo e solidário. Na prática, porém, a teoria é outra.
2. Os passos da mercantilização da educação
O primeiro passo, para a mercantilização neoliberal da educação superior, é a instalação de uma burocracia infernal que emperra tudo e não deixa nada funcionar.
[…] as universidades como sistemas complexos não sobrevivem sem os expedientes burocráticos. Naturalmente, há sistemas burocráticos inteligentes e que beneficiam os que delas participam, tanto quanto há autênticos emaranhados burocráticos que são estorvos ou, como já disse, barricadas de impedimento a determinados acessos; isto para a produção de cargos, vantagens e explorações espúrias (MORAIS, 2011, p. 61).
A resultante da burocracia é a despersonalizaçãodas relações. Deixa de existir a comunicação entre pessoas que têm rosto e passa a vigorar a relação virtual. Os “donos” das empresas ou instituições (sejam elas públicas ou privadas) nunca são vistos e encontrados. Os funcionários de mais alto nível se comunicam mediante “chamados eletrônicos” e, com isso, escondem-se, livram-se e livram os donos da instituição de qualquer responsabilidade de discutir os problemas. As respostas são dadas eletronicamente, e os humanos que estão lá na ponta, suportando o peso de tudo, são os únicos a aguentar toda a carga explosiva das reclamações daqueles e daquelas que estão descontentes com os serviços prestados. Portanto, não há aqui o encontro com a alteridade. A distância é o produto final da burocratização. Falta proximidade, entendida como “um espaço do qual a pessoa pode sentir-se chez soi, à vontade, um espaço no qual raramente, se é que alguma vez, a gente se sente perdido, sem saber o que dizer ou fazer” (BAUMAN, 1999, p. 20). No caso das IES acontece como nos supermercados comuns: os que fazem a educação (estudantes, professores e funcionários) só se encontram com “os caixas”, os quais foram treinados para usar de esperteza, manha e de regras estranhas para “passar as informações”, evitando o máximo que os problemas cheguem aos patrões (Ibid., p.20-25).
Dá-se, assim, uma desintegração da comunhão, um verdadeiro isolamento corpóreo ou, para usar uma expressão de Bauman, uma “incorporeidade” (Ibid., p. 25-28), no sentido que, devido a esse isolamento
[…] os detentores do poder tornam-se realmente extraterritoriais, ainda que corporeamente estejam “no lugar”. Seu poder está, real e integralmente, não “fora deste mundo” – não do mundo físico no qual constroem suas casas e escritórios supervigiados, eles próprios extraterritoriais, livres da intromissão de vizinhos de uma comunidade local, inacessíveis a quem quer que esteja (ao contrário deles) a ela confinado (BAUMAN, 1999, p. 26).
Decorrente dessa incorporeidade é o adoecimentodaqueles e daquelas que são obrigados a cumprir os “veredictos baixados no paraíso ciberespacial” (Ibid., p. 27), veredictos esses que não podem ser questionados, mesmo porque as “autoridades” que emanam tais veredictos estão completamente distantes, isoladas em espaços nos quais não podem ser alcançadas. O adoecimento, muitas vezes, é visto pelos “donos do negócio” como irresponsabilidade e preguiça, mas, na verdade os trabalhadores e trabalhadoras estão doentes, com estresse ou síndrome de burnout:
Após se dar, por certo tempo, o envolvimento afetivo com seu trabalho, o profissional se desgasta de tal modo que, no extremo, desiste: o burnout o leva a não agüentar mais manter o sentido de trabalhar que, em época passada, o susteve (MORAIS, 2011, p. 91).
Essa “desenergização afetiva que faz os educadores sentirem-se incapazes de doar humanamente mais si mesmos”, incide na capacidade de raciocinar, de criar e de produzir. Além disso, provoca sérios “bloqueios relacionais” que levam os profissionais a atitudes negativas e até mesmo cínicas (Ibid.p. 92). Entre as atitudes negativas não se descarta a real possibilidade de ações agressivas, através das quais as pessoas diminuídas em sua dignidade tentam, mesmo que inconscientemente, reagir à humilhação do isolamento na qual foram confinadas (BAUMAN, 1999, p. 29-31). No caso dos professores há uma dupla humilhação:
Muitas vezes o professor encontra também uma estrutura administrativa mediocremente autoritária que, desdobrando-se para não perder a clientela, trata os docentes como se lhes fizessem o imenso favor de mantê-los na instituição […]. Muitas vezes, os alunos não valorizam a pessoa culta que busca auxiliar-lhes no desenvolvimento humano e profissional; outras tantas vezes, os administradores institucionais tratam esse docente culto e esforçado apenas como umnecessitado de emprego. Nesse caso também a maioria cognitiva desestabiliza o tônus emocional do docente, causando-lhe confusão íntima e desgaste (MORAIS, 2011, p. 88-89).
No que diz respeito às IES confessionais e/ou comunitárias o risco de sucatear a educação, e de transformar a instituição de ensino em mero supermercado de diplomas, cresce cada dia mais. Morais identificoua principal causa deste risco. A citação é longa, mas vale a pena apresentá-la por inteiro:
Ocorre que mesmo organizações comunitárias confessionais têm chamado, para sua orientação interna, o que há de pior. São umas consultorias –elas mesmas empresas atualmente muito rentáveis– que em nada podem auxiliar os meios educacionais, uma vez que têm uma visão precariamente empresarial de educação e ensino. Pestalozzi, Freinet, Paulo Freire e Dom Bosco nunca contratariam os arautos do financismo consumista para opinarem sobre a educação. Como viajo muito e muito observo, conheci várias faculdades e centros universitários que visivelmente cresciam em respeitabilidade e projeção social, até que se submeteram às “orientações” dessas consultorias e auditorias; logo em seguida, tiveram maior conta bancária e menor prestígio institucional. Que as indústrias e organizações comerciais chamem economistas para orientá-las; mas que também as organizações educacionais e de ensino convoquem educadores, cientistas sociais e pessoas competentes em gestão educacional para mostrar-lhes caminhos que levem a um melhor futuro para o nosso país. Infelizmente, sempre respeitadas algumas exceções, tenho visto organizações acadêmicas comunitárias (e mesmo confessionais) entregues a administradores que, pouco se importando com educação e ensino, vão, com o auxílio de alguns disfarces ou mesmo abertamente, aceitando para esses meios universitários os mais mesquinhos valores empresariais e de mercado (MORAIS, 2011, p. 101-102).
Burocratização, despersonalização das relações, distância, desintegração da comunhão, adoecimento e bloqueios relacionais terminam fazendo da IES um supermercado de diplomas, uma vez que tudo isso “obstaculiza o envolvimento pessoal” dos educadores. E quando isso acontece se desemboca “no prejuízo intelectual e existencial às novas gerações, o que significa prejuízo social maior a curto, médio e longo prazos” (MORAIS, 2011, p. 92-93).
3. Caminhos para sair do “supermercado de diplomas”
Há algum caminho para sair do “supermercado de diplomas”? Claro que sim, mas tudo depende do modo como gestores e professores lidarão com essa situação. Antes de tudo é preciso que se distinga gestor de administrador. Se houver confusão entre as duas coisas a IES necessariamente se reduzirá a “supermercado”:
O gestor administrativo faz muito mais do que dar ordens impositivas, cuidar de custos e lucros ou calcular investimentos. As palavras nucleares do discurso administrativo são: controlar e cobrar. O objetivo das administrações se resume a que haja funcionalidade sem conflitos. O gestor coordena e anima a totalidade institucional, sendo indispensável que tenha competência para cuidar: a) da gestão de resultados educacionais, para os indivíduos e para sua sociedade; b) da gestão participativa, isto é, descentralizada, e com divisão de responsabilidade; c) da gestão pedagógica, atenta à qualidade do ensino e da educação; d) da gestão de pessoas, seja nas relações interpessoais internas, seja nas relações com o meio social; e e) da gestão de serviços de apoio, bem como de recursos físicos e financeiros […]. Ora, em uma sociedade de grandes interesses lucrativos, as faculdades, centros universitários e universidades têm conhecido muito puros administradores do que gestores dotados de ideal educativo (MORAIS, 2011, p. 37-38)
Em segundo lugar é indispensável que as IES, vencendo todo “pragmatismo empresarial” tratem cada um dos seus colaboradores como pessoa, ou seja, como “unidade biológica enriquecida por todos os conteúdos íntimos e relacionais dos seres humanos”. E isso deve ser dito porque são pouquíssimas as “instituições muito sérias e conscientes, que tratam seus contingentes de professores e alunos como pessoas” (Ibid., p. 71). De nada servem, diz Morais, o “tartamudeio de slogans” se, na prática as pessoas são tratadas de modo impessoal, distante, levando os colaboradores a se sentirem desprezados e despojados de sua dignidade.
Além disso, é necessário que a IES se veja comocentro de pensamento e de debate, pois, se assim não for, terminará sendo “uma agência (mais complexa, embora) de comercialização de habilitações e de diplomas” (MORAIS, 2011, p. 82). Muitas vezes, para evitar gastos e para não possibilitar a formação de uma consciência crítica, tende-se a baratear a educação, evitando investir em atividades que discutem ideias e promovem valores. Assim cria-se um círculo vicioso no qual uma coisa leva à outra. Desta forma a IES se reduz a uma organização acadêmica voltada para “meros caçadores de diplomas, que ainda garantem algum status ou promoções em empregos públicos” (Ibid., p. 105), mas não forma o cidadão e a cidadã.
Quanto a nós professores, é indispensável que não encenemos o nosso trabalho, fingindo atuar seriamente, quando, na verdade e às vezes, apenas dissimulamos e não queremos realizar nada de construtivo. Além disso, é sumamente importante, especialmente quando ocupamos cargos de confiança dentro da IES, que evitemos alianças e cumplicidades com os maus administradores. Muitas vezes, para garantirmos a perpetuação da cadeira onde sentamos, somos coniventes e silenciamos diante de situações desumanas e antiéticas:
Os auxiliares de administração que ocupam cargos de confiança tanto podem ser vítimas das decisões mais altas e autoritárias, quanto podem ser culpados de uma aliança prazerosa com os maus administradores. E o chamado “efeito cascata” se prolonga com coordenadores – também ora vitimados, ora propriamente culpados, à semelhança dos médios oficiais nazistas que alegavam apenas cumprir ordens (MORAIS, 2011, p. 97).
Por fim, da parte de todos e de todas é sumamente indispensável pautar-se sempre por princípios éticos fundantes. Quando as pessoas que fazem uma IES esquecem a ética, a instituição não é reduzida a um “supermercado”, mas um mero “botequim de esquina de rua”, onde se serve bebida adulterada e comida estragada. Numa IES desse tipo,
O ideal de formação do cidadão, homem emancipado e livre, através da razão, transformou-se no “ideal” do homem submisso à ordem burguesa e aos seus interesses, disposto a aceitar as regras do mercado e a instrumentalização do ser humano a seu serviço. A razão, ela própria, conforme denunciam com muita propriedade Adorno e Horkheimer, de instrumento de emancipação, tornou-se instrumentalizada (GOERGEN, 2001, p. 61)
Finalmente, para que não aconteça esse fim tão trágico é preciso que as IES cultivem dentro delas, de forma prática e efetiva,a pastoralidade, entendida como “espaço de cidadania”, no qual a educação seja uma ação política, isto é, uma ação que esteja a serviço da libertação integral de todas as pessoas que circulam dentro dela e ao redor dela (OLIVEIRA, 2011, p. 60-64). Cultivar a pastoralidade é cultivar a ética, ou seja, a abertura ao “Outro”, entendido como sujeito aberto a possibilidades sempre novas. E a ética de uma IES se conhece pela sua capacidade de ser uma instituição humana e humanizante (Ibid., p. 73-74).
Referências bibliográficas
BAUMAN, Zygmunt. Globalização. As consequências humanas. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
GOERGEN, Pedro. Pós-modernidade, ética e educação. Polêmicas do nosso tempo. Campinas: Autores Associados, 2001.
MORAIS, Regis de. Um abominável mundo novo? O ensino superior atual. São Paulo: Paulus, 2011.
OLIVEIRA, José Lisboa Moreira de. Universidade em pastoralidade. Ética nas instituições de ensino superior. São Paulo: Loyola, 2011.
RIOS, Terezinha Azerêdo. Ética e competência. São Paulo: Cortez, 2007, 17ª edição.
Fonte: Adital