Por Dirlene Marques*
Vi uma frase outro dia – “Não é sinal de saúde estar bem adaptada a uma sociedade doente”. Não me lembro de quem, nem se exatamente isso, mas, foi assim que entendi, e me fez refletir sobre minha condição atual. Não é apenas uma reflexão sobre um idoso doente. Mas, em especial, de uma cuidadora de um idoso de esquerda, doente.
Aluísio Marques, militante petista e meu companheiro, vem sofrendo sucessivos AVC [Acidente Vascular Cerebral]. Em junho de 2018, teve um AVC isquêmico que deixou, como sequela, uma leve afasia ocasionada por uma lesão no cérebro, que afeta a capacidade de expressão e de entendimento, a linguagem escrita e falada. E, novamente, no dia 9 de junho de 2019, teve um AVC hemorrágico extremamente grave, acentuando a afasia. Depois de passar dias na UTI, um mês em hospital especializado e mais um mês em hospital de recuperação, foi para casa. E, no dia 27 de setembro teve outro AVC isquêmico.
Desde a primeira ocorrência, fazia tratamentos com fisioterapeuta, fonoaudióloga e terapeuta ocupacional. A partir do AVC hemorrágico, ele perdeu qualquer autonomia, precisando de acompanhamento durante todo o tempo. Em termos físicos, está bem assistido. Tenho claro, que ele só sobreviveu pelo lugar que ocupamos na sociedade, pois temos recursos que possibilitaram um atendimento rápido e de qualidade. Sobreviveu fisicamente, mas e a vida social? Aquelas pessoas que eram referência em sua vida, onde estão? Algumas, passam ocasionalmente, em visita de meia hora. A solidão é muito grande.
O que acontece? Temos de entender estes comportamentos a partir da sociedade em que vivemos. O capitalismo é um sistema perverso. Na sociedade capitalista o objetivo primordial é o lucro, não o ser humano, já que gera a lógica de valorizar as pessoas pela sua contribuição no processo produtivo. Assim, quando não estão no espaço produtivo, do trabalho, não têm valor. Enfim, como se diz em Minas: não têm mais serventia.
De um outro lado, este sistema exige que as pessoas sejam competitivas, individualistas. A cobrança do cotidiano, do trabalho é tão intensa, que as pessoas que vivem do seu trabalho, não têm tempo para dedicar- se a alguém que não contribui mais com esse trabalho.
Nesse processo, quem está fora da lógica do trabalho, passa a ser um estorvo. Assim me senti, quando me aposentei. A faculdade onde dei aulas, durante quase trinta anos, não tinha mais espaço para mim. Eu me sentia um estorvo. Em conseqüência, deixei de ir lá. Imaginem, quem está doente e idoso! Onde tem espaço para ele? Não no local de trabalho, nem junto às pessoas ligadas a este trabalho.
O que sobra? O espaço doméstico, da família, o espaço privado. E, no caso especifico que tratamos aqui, isto é mais perverso, pois ele dedicou 24 horas de toda sua longa vida à militância política. Não cultivou o espaço pessoal, privado. Já, mais velho, ele reconhecia, até com certo pesar, a carência de nunca ter dedicado tempo algum, nem atenção à família, nem a ele mesmo, nem aos amigos. Não existia tempo para a vida privada. Por que, agora, o privado é que tem de dar conta?
Nesses casos, o capitalismo oferece duas alternativas: contratar profissionais, que o acompanhariam cotidianamente, criando atividades para ajudá-lo a superar as deficiências. Contudo, alternativa esta apenas viável para a classe média alta e a burguesia, que têm recursos financeiros. Não é o nosso caso. A outra alternativa, já naturalizada: a mulher assume o papel de cuidadora, de forma gratuita. Mas, neste caso, não é suficiente, pois não sou uma profissional, e nem consigo atender a necessidade da convivência política pois há muito nos afastamos politicamente. E, o Aluísio sempre foi um militante que se relacionava politicamente, não tendo construído relações de amizade, solidariedade e afetividade, que, agora poderiam contribuir neste processo.
Estes têm sido os temas de minhas reflexões, que me ponho a compartilhar com vocês. A vivência de mais esta perversidade do sistema com as mulheres e com os idosos.
E, fica a questão: nós, que sonhamos tanto com uma sociedade solidária e igual, não teríamos de estar construindo essas condições desde agora? Não estaríamos assumindo os valores desta sociedade tão doente?
Romper com a sociedade capitalista significa, desde agora, romper com o individualismo e a competitividade, construindo laços de companheirismo e de solidariedade. Temos vários exemplos de coletivos que procuram construir este espaço solidário. Um, mais próximo de nós, são as ocupações dos prédios: compartilham a cozinha, o cuidado com as crianças, o lazer, sala de reuniões, rodízios nas portarias, cuidados com as outras pessoas etc. Tem problemas, obviamente. Mas, é um aprendizado. E me vem, novamente, uma proposta que há muitos anos tenho apresentado, mas nunca concretizado: “e se vivêssemos todas/os juntas/os?
* Dirlene Marques é economista, coordenadora da regional Minas da Rede Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, membro da Rede Jubileu Sul Brasil.