Vivemos sob o jugo de um modelo desagregador e impiedoso com os diferentes setores que historicamente se insurgem ou incomodam os “do lado de lá”, em especial as mulheres. Nesse modelo, o Estado servil não tem cumprido seu papel de garantidor e de protetor dos direitos dessa população.

No caso da mulher, se compararmos as políticas públicas e equipamentos de proteção e defesa de direitos existentes, com as estatísticas da violência no país, vamos nos deparar com uma diferença abissal. O receituário aplicado não dá conta da epidemia provocada. Se não bastasse, o estímulo às diversas expressões da violência contra a mulher, está presente na conduta econômica, política, social e cultural do país.

A recente pesquisa do IPEA que trata da “Tolerância Social à violência contra as mulheres”, nos deixou a todas estupefatas e indignadas. Não que já não soubéssemos disso; mas porque ela reuniu várias vertentes sobre a mesma questão, em percentuais e por gênero. Mesmo assim, a pesquisa nos dá oportunidade de trazer à reflexão aspectos que lhe são subjacentes, na tentativa de lançar novas luzes sobre esse abismo profundo, que é a superação da violência contra a mulher. Até para não chegarmos à conclusão de que o que nos resta é a indignação. Ao contrário, sua análise aponta por onde podemos caminhar, se quisermos ir acumulando para grandes enfrentamentos.

Algumas considerações sobre o perfil da pesquisa e suas conclusões:

1- Não sei se intencional, mas nas perguntas a pesquisa acaba considerando o mesmo referencial usado nos estudos feministas para discutir as relações de gênero- o público e o privado – , quando são feitas perguntas sobre mulheres que estariam no “lugar do privado” e mulheres que estariam no “lugar do público”. Por exemplo: no âmbito privado, “homem que bate na esposa deve ir para a cadeia”. No âmbito público, “mulheres que usam roupas que mostram o corpo, devem ser atacadas”. Todas as respostas no âmbito privado condenam os homens; algumas com relativizações. Todas as respostas no âmbito do público, absolvem os homens.

2- Tem-se claro nas respostas, que o mito da mulher objeto, do qual já falava Gaiarsa, ainda persiste na sociedade. Que poder temos para desconstruir “o modelo de mulher” imposto pela rede globo”?

3- Se a maioria – 91%, condena o agressor, quando concorda que “homem que bate na esposa deve ir para a cadeia”, não deveria portanto, concordar que a violação é um assunto privado – “ casos de violência dentro de casa, devem ser discutidos somente entre os membros da família” – , pois que a punição do agressor só poderá ocorrer, mediante a “notícia do crime”, ou seja, isso é assunto de ordem pública e não de ordem privada. Talvez esse seja um bom exemplo para se pensar o que é mesmo que uma pesquisa, com perguntas e respostas diretas, é capaz de refletir; qual o seu alcance no que se refere à representação de um pensamento, para que se possa de fato, pensar em caminhos de superação.

4- À propósito das questões relativas ao Estupro. Segundo a Secretaria de Segurança Pública do Ceará, em 2013 foram 1.832 ocorrências de estupro de criança e adolescente. Houve um aumento de 12%, em relação a 2012. No Brasil, são 527 casos ao ano, envolvendo criança e adolescente. Um número mais alto do que de mulheres adultas no mesmo período. Segundo as respostas à pesquisa, haveria menos estupro se as mulheres soubessem se comportar e se usassem roupas menos provocantes. Acontece que os dados de realidade estão indicando que não é essa a real motivação do estupro e sim, me parece, o machismo articulado com um transtorno psicopatológico. A “Radiografia dos Estupros” apresentada na pesquisa, faz essa indicação. Nesse caso, considerando o perfil do agressor mais frequente – pais, padrastos, pessoas mais íntimas – há que se considerar ainda, que a situação de pobreza das vítimas, é um forte determinante, em vista das condições sociais em que vivem (habitações precárias, educação precária…).

5- Outro fator a se considerar nas respostas, está relacionado à orientação religiosa das pessoas entrevistadas. Vê-se claramente uma base fundamentada nas narrativas alegóricas da Bíblia, quando se trata de pátrio poder, casamento, respeito, obediência…, o que reforça minha reflexão anterior sobre o alcance da pesquisa.

O lado não reclamado

A opressão das mulheres é histórica. Mesmo assim, elas tiveram papel fundamental em processos revolucionários desde o séc. XVIII; em processos grevistas desde o séc. XIX; em contextos de ditaduras, em especial, em América Latina e mais recentemente, em processos de luta direta contra os instrumentos do capital. Nada disso foi tranquilo. Nem para os homens nem para as representações do capital, tanto que estas, trataram de arranjar um jeito de colocar as “mulheres no desenvolvimento”, usando de artifícios para não deixá-las perceber que seu lugar no desenvolvimento seria de objeto e não de sujeito.

Numa sociedade pautada hoje pelo mercado, onde tudo tem um preço, um valor, onde as mulheres são vistas e usadas como mercadoria, os resultados da psquisa não poderiam ser diferentes. Um modelo aplicado dessa forma, cuja inserção das mulheres se dá pela via da funcionalidade ao sistema do capital, contribui mais ainda para a violência contra mulheres. O mais grave é que esse modelo vem produzindo também uma sociedade sexualmente doente – além dos dados de exploração sexual contra Crianças e Adolescentes, os abusos sexuais cometidos nos transportes públicos são a terrível constatação.

A violência contra a mulher é fruto do patriarcado, do machismo e de um cenário de miséria. Os dados de violência se agravam quando as mulheres além de pobres, são negras e têm baixa escolaridade. Na sociedade do capital, que tem na propriedade um valor, o homem acha natural que seu desejo sexual seja satisfeito a qualquer hora e em qualquer local (o número de mulheres molestadas no transporte público está aí para comprovar). Isso é respaldado pela ideologia patriarcal e machista que considera normal, natural, o desejo e a atitude.

O Brasil, historicamente machista, concentra todo o poder nas mãos dos homens. Todo o espaço público ainda é dirigido por homens, tendo as mulheres relativa inserção nesse espaço. As concessões existem porque, afinal de contas, o discurso da igualdade de direitos e as conquistas dos movimentos de mulheres não podem ser abafados, mas só até eles não acharem que “estão perdendo algo”. O fato de muitas mulheres não se conformarem com o lugar da submissão de, mesmo na situação de desigualdade de poder, continuarem lutando por direitos, é o que mais incomoda.

No caso do poder de decidir sobre o castigo, sobre a prática da violência para evitar uma “revolução no costume”, a mulher é sempre culpada, responsabilizada pelo crime que o outro cometeu – as delegacias estão cheias de ocorrências desse tipo. Quando é declarada cidadã, tem uma cidadania regulada pela condicionalidade – não pode vestir determinadas roupas, não pode frequentar determinados lugares, não pode assumir determinadas funções. Ao fim e ao cabo, não é vista como sujeito de direitos.

A opressão patriarcal tem incidido sobre as mulheres, não apenas ao longo da história, mas de modo imediato. É daí que se explica seus efeitos opressores. Para haver de fato mudança na sociedade, que deve se dar ao mesmo tempo, no plano individual, é preciso que os beneficiários da opressão, do patriarcado, mesmo que não sejam os opressores diretos, revejam os privilégios que decorrem dessa condição, que os beneficiam. Privilégios que auferem pelo simples fato dessa estrutura de poder existir na sociedade. Que os homens comecem questionando os mitos criados para que se mantenham com o poder patriarcal.

Um outro aspecto diretamente relacionado aos resultados da pesquisa é o poder da mídia. A violência é resguardada e mantida pela publicidade, que reforça preconceitos, o machismo, o castigo pela via da violência física e naturaliza as principais questões que põem em cheque um modelo centrado na desigualdade, no racismo e no mercado. As redes de comunicação alimentam, incentivam e compactuam com essa visão, quando permitem todo tipo de propaganda machista – “quem tomar a cerveja Devassa, tem direito a uma mulher devassa’; “quem comprar um carro de última geração, pode “ganhar mulher”…Mulheres expostas tanto como mercadoria como para atrair mercado como valor agregado a um determinado produto… isso fatalmente dá vazão a que a exploração e o abuso aconteçam. As redes de comunicação compactuam com essa visão, quando levam para dentro das casas, cotidianamente, personagens homens com atitudes machistas e personagens mulheres com posturas inferiorizadas, dando a falsa idéia de que aquela “é a postura correta”. A novela “Em Família” que trata, inclusive, conflitos de ordem pública como do campo do privado, para “ ficar tudo em família”, reflete bem a afirmação. Abro um parêntesis para confessar que quedei me perguntado quem somos nós, organizações da sociedade civil, para concorrer com todo esse poder da rede globo, por exemplo, no debate sobre as relações de gênero e o feminismo. Depois de anos e anos trabalhando com as mulheres rurais, uma rede de TV, apenas com uma dupla idiotizada de personagens- a Chica e o Ricardo – ela consegue colocar por terra tudo o que temos dito, transformar em pó, todo o esforço que fazemos para que as mulheres se compreendam oprimidas e daí, lutem pela sua libertação. Quem somos nós para concorrer com quem está guiando, dirigindo a formação de milhões de pessoas nesse país! Mas não vou desistir; aliás, não devemos desistir, pois acredito e é isso que move meu desejo, que nada é impossível de mudar.

Bem, voltando ao ponto de partida do argumento, as redes de comunicação compactuam ainda com essa visão, quando permitem a execração das mulheres nos “Pânicos, BBBs e Nas Garras da Patrulha” da vida.

Uma vez que ainda vai demorar um pouco para que o grande vilão da violência seja erradicado, me parece que é possível cobrar por uma política de prevenção desde a escola, que articule os três poderes da República, promovendo uma reversão da atual estratégia de desenvolvimento, pautado nas pessoas e em seus direitos, assim como Morales ensaiou fazer, logo no início de seu governo. Me parece que é possível os homens serem aliados das mulheres na luta contra toda forma de opressão e não seus algozes, seja ativa seja passivamente.

A luta é contra gigantes. Um deles, o próprio Presidente do Banco Mundial, já dizia há alguns anos, que “ as mulheres seriam o próximo grande mercado emergente”. Isso só me confirma que a luta pela libertação das mulheres ameaça sim, a ordem econômica e política. A Pesquisa também nos instiga a dar os próximos passos.

Fortaleza, 30 de Março de 2014

Por Magnólia Said, advogada, técnica do Esplar

 

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