Pe. Alfredo J. Gonçalves.
Iniciemos com o silêncio mutismo. Silêncio cego, surdo e mudo. Mais do que uma atitude passiva, se trata de uma forma de ação ativa, profundamente danosa e nociva. Uma recusa tenaz, consciente ou inconsciente, a todo e qualquer tipo de comunicação. Daí o fechamento sobre si mesmo, o isolamento, a construção de muros invisíveis. O indivíduo ou grupo, achando-se cercado de uma hostilidade real ou virtual, encerra-se numa espécie de gueto imaginário. Excluído ou achando-se discriminado, fecha-se como o camarujo no próprio casulo. Cria-se uma linha divisória, também esta real ou virtual, onde os de “dentro” evitam o contato com os de “fora”, os “nossos” insistem em desconhecer os “outros”.
No fundo, é um silêncio pesado, constrangedor. Não é difícil encontrá-lo, seja no interior das famílias, seja nos ambientes de trabalho e até mesmo nas comunidades religiosas. Circula um ar irrespirável que destila olhares oblíquos, gestos subliminares e monossílabos envenenados. Desnecessário acrescentar que o monólogo solitário substitui o diálogo aberto e transparente. O ambiente, se e quando levado ao extremo, ameaça e asfixia, mutila e mata. O deserto permanece árido, o jardim infértil, o botão recusa abrir-se em flor; não se ouve o canto do pássaro, da água ou da criança. O clima se torna a tal ponto insuportável que é preciso caminhar na ponta dos pés. Silêncio desabitado, ou pior ainda, habitado de demônios malignos e agressivos.
Mais do que verdadeiro silêncio, instala-se efetivamente um mutismo hostil, que inibe e castra qualquer iniciativa conjunta. Mesmo vivendo ou trabalhando sob um teto comum, o mutismo engendra cegueira e surdez. As pessoas tropeçam umas com as outras, mas não se veêm; falam de tudo e de todos, mas não escutam. Os raros “bom dia”, “boa tarde” ou “como vai?” – se os houver – soam falsos e impessoais. Em lugar de calor humano, predomina o formalismo vazio e uma míopia que distorce os fatos, desfigura os rostos, azeda as relações, amesquinha o espírito. Situação que desmente a pérola do poeta português Fernando Pessoa quando este afirma que “tudo vale a pena quando a alma não é pequena”.
Temos, em seguida, o silêncio estridente. Do ponto de vista social, ou de grupo, se anteriormente reinava o mutismo teimoso e intratável, agora o que surpreende é o excesso de palavras, embora nem sempre pronunciadas. Mesmo sem dizer nada, fala-se pelos cotovelos: como na câmara e no senado em geral, todos têm algo a dizer, mas ninguém se dispõe a ouvir, ninguém é capaz de fazê-lo. Do um ponto de vista individual, emerge com nitidez uma discrepância entre o exterior, em que se procura fugir aos rumores do cotidiano, e o interior, onde uma multidão de ruídos impede prestar atenção aos pensamentos, desejos e sentimentos mais ínitmos e secretos.
Tanto pessoal quanto coletivamente, sente-se que o silêncio encontra-se prenhe de de um turbilhão de palavras inóquas, que nada transmitem. Em termos mais concretos, multiplicam-se as palavras justamente porque nada temos a dizer. Por mais esforços que se façam para reestabelecer o ambiente silencioso, este se enche de medos e dúvidas, inquietudes e interrogações, das quais nos sentimos incapazes de desvincilharmo-nos. Disso resulta um silêncio irrequieto, atribulado, rumuroso, como se estivessemos sentados sobre um formigueiro. Nessas condições, não há qualquer esperança de paz ou repouso. Impossível tomar distância dos ruídos, problemas e perturbações do dia-a-adia.
Uma metáfora pode ilustrar esse silêncio quebrado pelos mais diversos rumores. Não é difícil imaginar uma lata rolando sobre o asfalto: quanto mais vazia, mais barulho fará. É presiamente o vácuo interior que nos faz preenchê-lo de pensamentos, palavras e sons, por mais inexpressivos que sejam. Tal atitude nos impede de entrar em contato direto e frontal com a própria solidão. Numa palavra, o silêncio rumuroso é aquele que nos leva a fugir de nós mesmos. Na ameaça do confronto consigo próprio, busca-se dois caminhos de fuga: interiormente, justapomos imagem sobre imagem, palavra sobre palavra, sem nos dar ao trabalho de parar para refletir sobre elas ou sobre a conexão de umas com as outras; exteriormente, quando nem isso funciona, é preciso ligar o rádio, a televisão, fazer uma chamada telefônica ou procurar alguém com quem conversar… Contrariamente ao primeiro caso, aqui não se trata de recusa de contato, e sim de uma comunicação vazia de qualquer sentido. Escondemo-nos atrás das palavras, de um bate-papo, de uma relação inconsequente.
Em terceiro lugar, vem o silêncio povoado. Diferentemente do deserto árido ou do barulho das palavras sem nexo, aqui entramos num ambiente fecundo, denso, fértil e habitado. É o silêncio da oração pessoal e da reflexão, da meditação ou contemplação. As imagens e palavras que o povoam encontram-se grávidas de um novo sentido. Desfilam pela tela invisível do silêncio, em primeiro lugar, recordações da história pessoal. Lembranças inesquecíveis, de um ponto de vista positivo ou negativo, mas que podem ser re-significadas em um novo contexto existencial. O encontro pessoal e profundo consigo mesmo, aqui e agora, ilumina retrospectivamente os acontecimentos do passado. Resgata-os, fazendo deles uma releitura, à luz da fé e da esperança presentes. Por isso é que o passado pode, sim, ser modificado: não os fatos brutos, evidentemente, mas seu valor e significado para a vida futura.
Desfilam, depois, os encontros e reencontros com as pessoas que povoaram nossa trajetória histórica. Desfilam é se cruzam nomes, rostos, histórias, relacionamentos… Também neste caso, é possível mudar, resgatar o valor e o sentido de muitas relações à primeira vista negativas. É o que ocorre, por exemplo, nos encontros entre Jesus e a Samaritana à beira do poço, de Jesus e Nicodemos, de Jesus e Maria Madalena, de Jesus e os discípulos após a ressurreição, para citar apenas alguns. A oração, reflexão, meditação e contemplação atual retroprojeta uma nova luz sobre os fatos que talvez gostaríamos de esquecer, apagar, ignorar ou reprmir. O brilho dessa luz, porém, extrai deles lições preciosas e imprevistas. O silêncio torna-se uma espécie de alquimia que transforma os ruídos e rumores de nossa existência passada em palavras redescobertas. Só o silêncio, em meio a tanta verborreia e tanto palavrório, constitui terreno fértil capaz de criar uma palavra nova: rica, criativa, inovadora, libertadora – palavra de conforto, paz e repouso.
Além e ao lado da figura do outro, desfila ainda a presença/ausência do próprio Deus que, ao mesmo tempo, vela e revela a sua face resplandecente. Aqui as coisas se entrelaçam de forma inextrincável: a abertura ao outro pavimenta o caminho para o encontro com o totalmente Outro, o diálogo com o diferente conduz à linguagem do Transcendente. Dessa maneira, o silêncio povoado de minhas próprias lembranças, dos encontros e relações com os outros e da intimidade com o divino faz e refaz da vida uma eterna busca. Em lugar de guetos cerrados, cria comunidades sem fronteiras; em lugar do mutismo, renasce a abertura que liberta; em lugar de fechar caminhos, abre horizontes sempre mais amplos e inclusivos.
Por fim, mas não em último lugar, entra em cena o silêncio solene. Para usar uma observação o escritor norte-americano William Faulkner, trata-se do “silêncio produzido por mais de uma pessoa”. Silêncio de um grupo, de uma assembleia reunida ou de uma multidão – no meio de uma oração comunitária, culto ou celebração, por exemplo. Atitude respeitosa e reverente diante de uma presença inefável, viva e vivificante. Além de ricamente povoado, como o anterior, é um silêncio litúrgico, que nos ultrapassa e faz o ser humano encontrar-se consigo mesmo e com os demais, para fortalecer o percurso ascendente da própria superação. Silêncio do ser finito que o reporta ao mistério infinito da divindade.
Semelhante atitude solene nos remete à obra do teólogo protestante alemão Rudolf Otto, O Sagrado, onde o autor descreve o sentimento da criatura diante do misteryum tremendus, “reflexo da numinosa sensação de ser objeto de auto perpepção”. Ou ainda à obra de Émile Durkheim, As Formas Elementares da Vida Religiosa, na qual o sociólogo francês estuda “a religião como fenômeno social”. Em ambos os casos, o mistério provoca uma reverência silenciosa da pessoa diante das forças sobrenaturais. Do ponto de vista místo-espiritual, mais que o temor e o tremor no confronto com tais forças, desenvolve-se uma intimidade amorosa entre “a alma com e o seu Amado”, como se pode notar no “século de Ouro” espanhol, particularmente nos escritos de São João da Cruz e de Santa Tereza D’Ávila.
Mais perto de nós, basta recordar o “minuto silêncio” solicitado pelo Papa Francisco na celebração final da Jornada Mundial da Juventude, na praia de Copacabana, Rio de Janeiro, Brasil. Em termos litúrgicos, a atitude inédita de milhões de pessoas reunidas em total e absoluto silêncio visa tornar mais evidente a presença do personagem principal da celebração eucarística: Jesus Cristo. Silêncio que provoca um encontro vivo do Ressuscitado com todos e com cada um de forma singular. O atual pontífice, aliás, em suas audiências e celebrações, tem resgatado esse silêncio como uma das linguagens litúrgicas mais eloquentes.
Linguagem solenemente “litúrgica” também utilizada habitualmente no deccorrer de competições esportivas, concertos musicais, datas significativas ou outros eventos, não raro em reverência de personalidades ilustres ou de acontecimentos marcantes. Exemplos: a) no aniversário dos atentados às torres gêmas de New York, USA, de 11 de setembro de 2001, um “minuto de silêncio” no horário exato em que o primeiro avião se chocou com o edifício; b) “minuto de silêncio” em memória de Mahatma Gandhi, Martin Luther King, Madre Tereza de Calcutá, Mandela, Oscar Romero… Ou de algum esportista recém-falecido num acidente competitivo; c) eventos como as bombas atômicas sobre Yrochima e Nagasaki ou a lembrança dos que tomabaram em determinadas guerras requerem, igualmente, um “minuto de silêncio” por ocasião do aniversário ou da visita de chefes de Estado.