Por Miguel Borba de Sá (Instituto PACS/Rede Jubileu Sul)
“O resultado final da crise política no Brasil é impossível de prever”. Esta platitude tem sido repetida por vozes à esquerda e à direita do espectro político com igual frequência, mostrando o quanto é fácil esquivar-se das tarefas de análise crítica e formulação de táticas para intervir na realidade mediante truísmos como este. Afinal, toda “crise política” é, por definição, imprevisível em seus resultados. Por outro lado, para quem pretende não apenas explicar o mundo a posteriori, mas também tentar transformá-lo, compete encarar o desafio analítico de frente, tentando antecipar tendências e cenários, de modo a ser útil às forças sociais em luta às quais se está vinculado. Mesmo sob risco de erros, cujas consequências são piores para luta do que para a reputação do autor, é preciso aceitar a responsabilidade para evitar que a atividade crítica não se torne mera elucubração alegórica abstrata.
Pois bem, no caso do Brasil uma tendência ou cenário que pode ser vislumbrado é o da criação de um novo partido de direita no país. Não um partido a mais no já repleto rol de partidos de direita registrados no TSE[1], mas um novo partido no sentido de representar algo inédito: um partido de direita radical, moderno, com dirigentes e figuras públicas inteligentes, não-caricatas, mais sofisticados e higienizados do que, por exemplo, Dr. Enéas ou Jair Bolsonaro. Mas com a capacidade de mobilizar o mesmo público que hoje se deixa cativar pelas vociferações machistas, racistas, elitistas, homofóbicas e anti-esquerdistas em voga nas ruas e redes sociais.
Uma extrema-direita mais “respeitável”, ou que finja sê-lo, de modo que um potencial eleitor de Bolsonaro possa pensar: este pessoal não xinga tanto, mas no fundo eles pensam a mesma coisa que eu. A este partido bastará defender consistentemente valores políticos de direita, elaborando uma visão de mundo razoavelmente coerente em torno de sentimentos neoconservadores. Algo similar ao que representam o partido Alternativa para Alemanha (AFD), o Front Nacional da França e o Partido Independente do Reino Unido (UKIP) em seus respectivos países. Pois o que não pode mais se negar é a existência prévia de uma audiência já formada e bem receptiva a estes valores no Brasil. E em momentos de “crise”, a falta de discursos e organização consistente na esquerda tende a empurrar mais gente para a canalização da sua insatisfação em direção aos bodes expiatórios apontados pelos aparelhos de hegemonia neoconservadores. Bolsonaro não é responsável por inventar sozinho o discurso de extrema-direita no país, nem teria o poder de fazer sua postura de ódio disseminar-se sem que houvesse no senso comum uma série de elementos ultra conservadores já em posição predominante.
Há uma perigosa inversão de causalidade ao atribuir-se apenas ao ex-capitão todo o sucesso da chamada nova direita. Talvez ele também seja produto e não apenas causa da ascensão recente da direita-alternativa (“alt-right”) no mainstream da vida política brasileira. Assim, pode-se considerar a hipótese oposta, de que Bolsonaro até agora tenha mais limitado do que impulsionado a consolidação de um forte movimento de extrema-direita no país, que venha a se institucionalizar em forma de partido e buscar normalizar-se no cardápio político do Brasil. Suas limitações intelectuais evidentes o inabilitam para esta tarefa. Ser tosco não é igual a ser carismático, pelo menos não o suficiente para esta posição, que exigirá além de carisma, certa elegância e capacidade de trato político mais refinado. Alguém que, além dos proto-fascistas, também cative aos “paneleiros anti-corrupção” não pode ser um corrupto auto declarado como Bolsonaro, Maluf ou Temer. Estes nomes talvez entrem para a pré-história da nova extrema-direita brasileira, caso este prognóstico se confirme, diante da novidade qualitativamente superior que pode surgir.
O problema atual, portanto, não é tentar adivinhar qual nome ou liderança individual a direita produzirá para o novo ciclo político adiante. Pouca importa se este nome possui trajetória no mundo partidário ou se será inventado como um “outsider”. O importante é o papel, o programa e a função que esse novo partido irá desempenhar: a de oferecer direção moral e intelectual a um público expressivo, consolidando a transferência do eixo do espectro político brasileiro como um todo mais para a direita; e, em caso de crise extrema, apresentar-se como alternativa de poder para tocar a “contrarrevolução preventiva e permanente” aludida por Florestan Fernandes, Ruy Mauro Marini e outros autores mais citados do que lidos.
A acumulação capitalista no Brasil pode existir e prosperar sob diferentes roupagens ideológicas e arranjos de governança. Nada impede que um arranjo cada vez mais autoritário, policial, judicialesco e de permanente estado de exceção, como sempre foi norma nas favelas, venha a ser “democratizado” com outros atores e espaços da vida social. Mas a perseguição continuará sempre tendo endereço, cor, gênero e orientação política: a novidade é que além na juventude negra e favelada, das mulheres, dos LGBTs, indígenas e quilombolas, agora também os militantes de esquerda, de partidos ou movimentos sociais, ou simplesmente professores e até mesmo membros de ONGs, estão se tornando alvo das crescentes chacinas, atos de acossamento e intimidação permanente em seu dia-dia. E isto tende a tornar-se normal, ou simplesmente não noticiado. Novos objetos de violência legítima em nome da defesa da boa sociedade, da ordem e do desenvolvimento.
Ao final da última ditadura militar no Brasil, intelectuais e políticos como Fernando Henrique Cardoso, Celso Furtado, Georges Lavau e Alain Touraine tentaram criar um partido que representasse na América Latina o “novo socialismo francês”. Sua intenção era organizar um partido socialdemocrata moderno, pragmático (isto é, capitalista), mas que também fosse capaz de falar para o movimento operário e popular, ou seja, para a audiência crescentemente de esquerda daquele momento. Algo, portanto, que se diferenciasse do arcaísmo coronelista do PMDB, do populismo brizolista, do “velho” socialismo dos Partidos Comunistas e, especialmente, evitasse que o projeto democrático-popular, por vezes radical, do nascente Partido dos Trabalhadores hegemonizasse o movimento social, como de fato ocorreu. A tentativa falhou, mas Cardoso manteve-se fiel a sua estratégia e, um pouco mais tarde, fundaria o PSDB no final dos anos 1980.
Hoje, quando a audiência política está crescentemente pendendo para a direita, ou mesmo para a ultra-direita, é provável que intelectuais da classe dominante de igual capacidade, em coordenação com os aparelhos e dirigentes do grande empresariado monopolista, venham a propor, financiar e organizar um moderno partido reacionário que dê representação ao caldo de cultura e ao conjunto de movimentos sociais de direita que já existem no Brasil e vem crescendo aceleradamente em escopo nas últimas duas décadas, aprofundando um programa, definindo aliados e inimigos, consolidando seu discurso sobre as causas das enfermidades que sua política higienizadora terá como função exterminar.
Este novo partido, que devemos lutar para impedir que se forme, será radicalmente neoliberal em sua agenda econômica, sem prejuízo de um afastamento igualmente radical dos valores centrais do liberalismo político e comportamental. Sua vitória eleitoral em 2018 não é provável, mas sua mera existência pode ser um resultado concreto da “crise política” suficientemente relevante para as lutas sociais no Brasil: acaso já imaginamos a tragédia de um cenário de segundo-turno entre o neoliberalismo cosmopolita versus uma alt-right elegantemente autoritária e discretamente raivosa? (Lula pode perder “democraticamente”, vale lembrar). Pode ser que não se materialize tão rápido, mas é pouco provável que esteja fora das disputas da década de 2020 em diante. E não será um ex-capitão medíocre que o irá liderar, mas alguém que, caso venha do mundo militar, tenha a erudição e capacidade de um ex-general, brigadeiro ou almirante, sendo também possível que este quadro seja pinçado das fileiras do judiaciário, das polícias ou, na mesma linha, algum ex-secretário ou figura ligada à agenda da “segurança pública”. Para a direita neoliberal cosmopolita bastará uma figura do mercado como Henrique Meireles, para esta nova direita alternativa, as credenciais precisarão passar pelo mundo da repressão também. É algo para se pensar bastante, inclusive antes de seguir automaticamente apostando na via eleitoral como única prática política a ser realmente priorizada. Algo para se refletir todas as vezes que alguém ao nosso lado, ou nós mesmos, num instinto interior, tivermos a vontade de gritar “Diretas Já” como panaceia ilusória para todos os males políticos que vemos crescer a nossa frente.
[1] Há 35 partidos registrados, dos quais 25 são inequivocamente de direita. Ver: http://www.tse.jus.br/partidos/partidos-politicos/registrados-no-tse