por Ciro Barros, da Agência Pública
“A Copa do Mundo funciona como uma espécie de catalisador. Temos uma grande oportunidade de executar planos de investimentos e de melhorar a qualidade dos serviços nas grandes cidades, sobretudo o transporte público.”
A declaração, feita em setembro de 2011 pelo então ministro do Esporte, Orlando Silva, resume a principal justificativa do governo para que a população saudasse a realização da Copa no país: o legado para as 12 cidades-sede, que seriam beneficiadas com as obras de mobilidade urbana, necessárias não apenas para a competição, mas para os que residem ali. Um ano e quatro meses depois, porém, vários empreendimentos projetados para melhorar o transporte público e o trânsito foram cancelados – ou substituídos por obras de menor impacto.
A Matriz de Responsabilidades, documento do Ministério do Esporte que elenca toda as obras de infraestrutura para a Copa, previa 50 intervenções de mobilidade urbana e orçamento de R$ 11,59 bilhões quando divulgada em janeiro de 2010. Dessas 50, até agora foram canceladas 13 obras em dez cidades-sede: em Manaus, o Monotrilho Leste/Centro e o BRT (sigla para Bus Rapid Transit, o corredor de ônibus) do Eixo Oeste/Centro; em São Paulo, excluiu-se o Monotrilho da Linha 17-Ouro; em Brasília, o VLT (Veículo Leve sobre Trilhos, metrô de superfície; em Curitiba, a requalificação das vias do Corredor Metropolitano, em Natal, a reestruturação da Avenida Engenheiro Roberto Freire; em Salvador, o BRT no Corredor Estruturante Aeroporto/Acesso Norte; em Fortaleza, o Corredor Expresso Norte-Sul e o BRT Projeto Raul Barbosa; em Belo Horizonte, o BRT Pedro II/Carlos Luz; em Porto Alegre, o BRT Assis Brasil, e os BRTs Aeroporto/CPA e Coxipó/Centro, em Cuiabá.
Outras 16 obras de mobilidade foram incluídas posteriormente e são 53 as obras que constam hoje na Matriz mas a maioria de menor porte do que as canceladas ou interrompidas, e quase sempre realizadas no entorno dos estádios – e portanto relacionadas com acesso aos jogos, não com a mobilidade das cidades-sede. Por isso, o orçamento tem hoje quase 3 bilhões a menos do que o previsto: é de R$ 8,6 bilhões. Só na última revisão do documento, no mês passado, seis obras de mobilidade foram substituídas por outras oito obras de entorno. De prioridade máxima, o legado para as cidades-sede vai se reduzindo.
Em Salvador, por exemplo, em vez de um corredor do ônibus ligando o Aeroporto Internacional ao norte da cidade, serão feitas duas pequenas intervenções no entorno da Arena Fonte Nova, o estádio da Copa na Bahia, com custo de R$ 35,7 milhões, o que representa R$ 532 milhões de redução do investimento previsto. Nem o governo municipal – que queria o corredor de ônibus previsto – nem o governo do estado da Bahia, que pretendia incluir na Matriz o metrô de Salvador, em vez do corredor, tiveram os projetos contemplados. Por enquanto a população ficou sem corredor de ônibus e sem metrô – depois de uma negociação com o governo federal, o governo estadual conseguiu incluir o metrô, com orçamento de 3,5 bilhões de reais, no PAC de Mobilidade Urbana. Que nada tem a ver com a Copa.
São Paulo teve um caso semelhante: em vez do Monotrilho da Linha 17-Ouro, que ligaria o bairro do Morumbi ao Aeroporto de Congonhas, com orçamento previsto de R$ 1,881 bilhão, ganhou intervenções viárias no entorno do estádio do Corinthians, orçadas em 317,7 milhões.
Por que as obras param?
Além dos projetos que não saíram do papel, há casos mais graves de obras interrompidas por suspeitas de irregularidades. Em Brasília, por exemplo, as obras do VLT, que ligariam o aeroporto ao Terminal Rodoviário da Asa Sul integrando-se ao metrô, começaram em setembro de 2009, foram incluídas em janeiro 2010 na Matriz de Responsabilidades da Copa do Mundo com orçamento de R$ 364 milhões, e paralisadas em setembro do mesmo ano pela Justiça por suspeitas de irregularidades. O responsável pela execução da obra era o governo distrital, que também contribuiria com R$ 3 milhões de custos.
A liminar que paralisou as obras foi concedida pelo juiz José Eustáquio de Castro Teixeira, da 7ª Vara de Fazenda Pública do DF, ao aceitar a denúncia do MP-DFT (Ministério Público do Distrito Federal e Territórios), que apontou fraude na concorrência do Metro-DF com o intuito de favorecer duas empresas: a Dalcon Engenharia e Altran/TCBR. Segundo o Ministério Público, ambas seriam sócias ocultas e a vencedora da licitação, a Dalcon Engenharia, teria repassado R$ 1 milhão para a empresa “concorrente”. O ex-presidente do Metrô-DF, José Gaspar de Souza, foi acusado de manter vínculos estreitos com as duas empresas e exonerado em abril de 2010 pelo então governador do DF, Rogério Rosso (PMDB).
Em abril de 2011, o mesmo juiz exigiu que fosse aberta uma nova licitação para o VLT. Um ano depois, o secretário de Obras do DF, David de Matos, declarou que o primeiro trecho da obra do VLT não ficaria pronto até 2014 por causa dos atrasos provocados pelo cancelamento da licitação e a obra foi oficialmente retirada da Matriz a pedido do governador Agnelo Queiroz em setembro do ano passado.
Procurada pela Pública, a Secom DF (Secretaria de Comunicação do Governo do Distrito Federal) divulgou nota dizendo que “a retirada do VLT da Matriz de Responsabilidade da Copa será compensada pela readequação da DF 047, que liga a estação de passageiros do Aeroporto Internacional Juscelino Kubitschek até a parte central da capital, com a implantação de uma via exclusiva dedicada a ônibus de passageiros, turistas e delegações.” E afirmou: a distância do estádio Mané Garrincha até o centro de Brasília é de 3 km, “o que facilita e incentiva o acesso a pé”.
A população de Manaus ficou sem obras de mobilidade
Em termos de mobilidade urbana, Manaus ganharia duas obras importantes, previstas desde 2010: o Monotrilho Norte/Centro e o BRT no Eixo Leste/Centro, que seriam integrados. Ambas as obras, porém, foram excluídas da Matriz de Responsabilidades da Copa.
A obra do monotrilho, orçada em R$ 1,307 bilhão, foi licitada em março de 2011 e quatro meses depois tornou-se alvo de investigação do TCE-AM (Tribunal de Contas do Estado do Amazonas). O relatório do TCE qualificou o projeto básico da obra de “incompleto e deficiente” e fez 32 restrições a ele – desde a falta de estudos técnicos preliminares até a ausência de estudos tarifários, dos custos de desapropriação e de justificativas para os valores apresentados. Sobre o edital, alvo de outras 27 restrições, o TCE-AM disse que “não atende aos requisitos da Lei de Licitações e Contratos (8.666/93).
O relatório também registrou que os órgãos responsáveis pelo projeto básico do monotrilho (Secretaria Estadual de Infra-Estrutura) e pela licitação (Comissão Geral de Licitação) não se manifestaram mesmo quando acionados. E pediu a anulação da licitação, “por estar eivada de vícios que a tornam ilegal”, recomendando multar os chefes dos órgãos públicos envolvidos. Também solicitou o envio de cópias dos documentos da licitação ao Ministério Público do Amazonas para prosseguir com a investigação e à Caixa, que não liberou os recursos para a obra. Ainda assim, o projeto foi levado adiante pelo governo estadual, que executou todas as etapas que não dependiam de recurso federal.
Já o BRT tinha o custo previsto de R$ 290,7 milhões. O edital de licitação foi lançado em outubro de 2010. Tanto a CGU (Controladoria Gera da União) quanto o TCE-AM, em fevereiro de 2011, apontaram falhas no projeto. Ainda naquele mês, em ação conjunta, os Ministérios Públicos estadual e federal solicitaram explicações da Prefeitura, responsável pela execução da obra, e recomendaram à CEF (Caixa Econômica Federal) que não liberasse recursos antes da correção dos erros.
Em outubro de 2012, no primeiro encontro entre o prefeito eleito, Artur Neto (PSDB), e o governador do Amazonas, Omar Aziz (PSD) foi anunciado que as obras não ficariam prontas para a Copa. “A capacidade da Arena da Amazônia é de 42 mil pessoas, isso cabe facilmente no Sambódromo. As pessoas vão, estacionam e ninguém reclama da mobilidade. No dia da Copa se decreta feriado municipal e não vai ter problema”, minimizou Aziz.
À Pública, o coordenador da UGC (Unidade Gestora da Copa) em Manaus, Miguel Capobiango, disse que as críticas feitas ao monotrilho são de natureza técnica e não jurídica e que por isso o governo do Amazonas tocou o projeto mesmo com pareceres contrários da CGU, do Ministério Público e do TCE. “Entendemos que eles não tinham caráter definitivo, por isso seguimos com o projeto”, justifica. As obras do monotrilho foram incluídas no PAC de Mobilidade Urbana e devem estar prontas, segundo ele, no fim de 2015, ou início de 2016.
Pura “propaganda”, diz especialista
Para o engenheiro Lúcio Gregori, ex-secretário de Transportes na gestão da prefeita Luiza Erundina em São Paulo (1989-1992), o equívoco começa ao pensar em soluções de mobilidade urbana a partir de megaeventos esportivos. “Esse tipo de investimento voltado à realização de eventos esportivos foi feito na Europa, como em Barcelona, mas as cidades europeias já dispõem de um bom sistema de transporte. Aqui, a mobilidade urbana em geral é muito ruim e a tese de que os eventos esportivos transformariam a mobilidade urbana nas cidades brasileiras me parece mais propaganda do que outra coisa.Teriam de ser feitos investimentos de outra natureza para realmente gerar mobilidade, sem a premissa de prazos, custos, e necessidades específicas dos megaeventos”, diz Gregori.
Na visão do ex-secretário, a discussão sobre mobilidade urbana no Brasil e na Copa ainda esconde uma disputa de mercado entre modelos de transporte. “Há uma discussão disfarçada sob um manto de tecnicalidade, mas que na verdade disfarça a disputa de mercado: o BRT versus o VLT versus o Monotrilho. São três disputas, diferentes fornecedores, diferentes efeitos no sentido de quem fornece o que para esses sistemas e quem lucra com essa operação. A mobilidade urbana está virando um prato em que vários comensais estão interessados. Também não é possível fazer uma discussão séria sobre mobilidade urbana no Brasil pautado nessa disputa de mercados, investimentos e lucratividade”, conclui.
Fonte: Agência Última Instância