A construção de um subsistema específico e diferenciado para a atenção à saúde dos povos indígenas deu seus primeiros passos junto com o movimento da reforma sanitária no Brasil, por ocasião da histórica 8ª Conferência Nacional de Saúde em 1986, e durante as discussões que culminaram na promulgação da Constituição Federal Cidadã de 1988, que teve o Sistema Único de Saúde (SUS) como uma de suas maiores conquistas. Em 1997 o Ministério Público Federal (MPF) realizou uma audiência pública onde foi estabelecida de forma inequívoca a responsabilidade federal pela gestão da saúde indígena, de acordo com o artigo 231 da Constituição Federal.
O principal motivo que levou o movimento indígena a reivindicar a criação do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASI-SUS) foi a total incapacidade e falta de interesse dos governos estaduais e municipais em fazer frente às difíceis condições de prestação da assistência à saúde para a população indígena. Muito pior do que isto foi a existência de inúmeras situações de evidente conflito de interesses, em que os grupos políticos e gestores da saúde nos âmbitos locais se utilizavam da saúde indígena para promover divisão e estimular a violência contra os povos indígenas em luta pelo reconhecimento de seus territórios tradicionais.
A necessidade de um Subsistema de Atenção à Saúde Indígena específico e diferenciado de responsabilidade do Governo Federal é hoje ainda mais forte do que nos primórdios de sua implantação, devido ao quadro de retrocessos e fragilidades que enfrentam os povos indígenas na luta por seus direitos fundamentais. O modelo preconizado pelas seis Conferências Nacionais de Saúde Indígena até hoje realizadas no país está voltado para a solução das questões epidemiológicas e assistenciais, como grandes distâncias geográficas, difíceis condições de acesso, especificidades culturais, e a maior vulnerabilidade imunológica dos povos originários às situações de contato.
O principal motivo que levou à criação do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena foi a total incapacidade dos governos estaduais e municipais em fazer frente às difíceis condições de prestação da assistência
O Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASI-SUS) para alcançar a forma como hoje funciona no Brasil teve a contribuição fundamental de dois ilustres médicos sanitaristas deste país. O Deputado Federal Sérgio Arouca, um dos principais responsáveis pela implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) a partir da Constituição Federal de 1988, foi o autor da Lei 9.836 de 23/09/1999 que regulamenta o modelo dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI) em todo o país. O Ministro José Gomes Temporão foi o responsável pela criação da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) no ano de 2010, assegurando o cumprimento dos preceitos constitucionais e legais da responsabilidade federal pela saúde dos povos originários.
As principais deficiências reconhecidas pelo movimento indígena na implementação da atenção à saúde, que provocam a ineficiência e o desperdício de recursos públicos, não são uma prerrogativa exclusiva da Saúde Indígena, pelo contrário, tornaram-se uma triste realidade em muitas unidades do Sistema Único de Saúde no país, gerido em sua maior parte pelos governos municipais e estaduais. Estas situações estão relacionadas a problemas de gestão causados pela velha política que o Governo Bolsonaro prometeu mudar, como ingerências políticas, práticas clientelistas, e corrupção por parte dos grupos políticos que deveriam zelar pela boa condução das políticas públicas.
Apesar de todos estes problemas, o movimento indígena conseguiu estruturar e manter um modelo exemplar de atuação no Controle Social e Gestão Participativa, que tem sido reconhecido não só no Brasil como em escala internacional, como atestam, entre outros, diversos documentos da Organização Mundial de Saúde (OMS), Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), e o Prêmio Bartolomeu de Las Casas concedido pelo Governo da Espanha em 2012 ao Conselho Indígena de Roraima (CIR) por sua importante contribuição ao Subsistema de Atenção à Saúde Indígena específico e diferenciado implantado no estado de Roraima e no Brasil.
Durante estes poucos mais de sete anos de funcionamento da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) muitos resultados consistentes foram conquistados, como a diminuição significativa da Mortalidade Infantil, índices crescentes de Cobertura Vacinal, controle de Endemias como Malária, Leishmaniose e Oncocercose, implantação de programas de Saúde Bucal e Saúde Mental aos quais os povos indígenas nunca haviam tido acesso, estruturação de serviços de Saneamento Básico, e a qualificação de um número crescente de profissionais indígenas, como Agentes Indígenas de Saúde, Agentes Indígenas de Saneamento, Técnicos de Enfermagem e Laboratório, e de formação superior nas áreas da Medicina, Enfermagem, Odontologia, Nutrição e Psicologia, entre outras.
A municipalização da Saúde Indígena anunciada pelo Ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta como solução para os problemas do setor já foi tentada pela FUNASA por meio da Portaria 2.656 de 17/10/2007, resultando em um estrondoso fracasso reconhecido pelo Ministério Público Federal e pelos Conselhos Distritais de Saúde Indígena em todo o país. Ao utilizar críticas à Saúde Indígena em alguns casos com fundamentos verdadeiros, o governo erra na análise das causas dos problemas, e mais uma vez ameaça ‘jogar fora a criança junto com a água do banho’, como fez ao retirar a responsabilidade da FUNAI sobre a demarcação das terras indígenas no Brasil.
Ao insistir na imposição de uma política que afronta os princípios legais e constitucionais que regem a Saúde Indígena, o Ministério da Saúde contraria a posição unânime manifesta nas etapas locais e distritais da 6ª Conferência Nacional de Saúde Indígena, realizadas recentemente em todo o país, e aprofunda o retrocesso no reconhecimento dos direitos indígenas, sociais e ambientais que se tornaram a principal marca deste início de governo, colocando em risco todos os avanços conquistados duramente nas últimas décadas pelos povos indígenas no Brasil.