Plínio de Arruda Sampaio Jr.*
Uma década de hegemonia política inconteste e seis anos de crescimento, quatro dos quais em plena crise da economia mundial, alimentaram o senso comum de que os governos Lula e Dilma teriam inaugurado um longo período de prosperidade e estabilidade. Economistas deslumbrados com as façanhas do neodesenvolvimentismo chegaram a propalar a superação do subdesenvolvimento e o início de um longo período de desenvolvimento auto-sustentado.1 Cientistas sociais entusiasmados com a força da coalizão liderada pelo PT junto às classes subalternas anunciaram a consolidação do Lulismo como um fenômeno sociológico de inequívoco caráter progressista que teria vindo para ficar.2
Bastou o crescimento arrefecer para que as graves contradições de uma modernização mimética, incapaz de atender as necessidades fundamentais da população, viessem à tona. A posição subalterna na ordem global expôs a extraordinária vulnerabilidade da vida nacional a crises econômicas de proporções cataclísmicas. A perpetuação de desigualdades extremas, típicas de regimes de classe baseados na segregação social, alimentou antagonismos irredutíveis.
A inflexão da conjuntura internacional, caracterizada pela forte elevação dos preços das commodities no mercado internacional e pelo grande afluxo de capitais internacionais, desarticulou as premissas do padrão de acumulação de capital responsável pela relativa prosperidade da era Lula. O agravamento da crise econômica mundial, sobretudo a contração da economia chinesa, e a perspectiva de aumento dos juros norte-americanos deixaram a economia brasileira à deriva. Exposta à fúria da concorrência global e aos vendavais da especulação internacional, o sistema industrial e os centros internos de decisão desarticularam-se num processo nefasto de reversão neocolonial.
Impotente para enfrentar as dificuldades de uma conjuntura internacional adversa, a sociedade brasileira ficou sujeita à lógica draconiana do ajuste neoliberal, cuja essência consiste em socializar o ônus da crise pelo conjunto da população e aproveitar a situação para abrir novas oportunidades de negócios para o grande capital. No curto prazo, o ajuste implica queima de reservas internacionais a fim de não comprometer os compromissos decorrentes do passivo externo; reforço da transferência de fundos públicos para alimentar os capitais rentistas ancorados na dívida pública; privatização do patrimônio público e dos serviços públicos sujeitos à mercantilização, a fim de saciar a sanha de negócios dos capitais excedentes sem perspectiva de investimento na ampliação da capacidade produtiva; e compensação da redução na taxa de lucro das empresas pela superexploração do trabalho. No longo prazo, o objetivo do ajuste é adequar a economia às novas tendências da divisão internacional do trabalho; adaptar a sociedade e as instituições nacionais às novas exigências do capital internacional; e ajustar o nível tradicional de vida dos trabalhadores aos novos imperativos da exploração capitalista.
Ao contrário do que sugere o Ministro da Fazenda – por ignorância ou má fé – a gravidade dos problemas que paralisam a economia brasileira não permite imaginar uma rápida retomada do crescimento.
Sem mecanismos endógenos capazes de abrir novas frentes de investimento, a expansão econômica depende da superação da crise mundial – que entra em seu nono ano sem perspectiva de solução. Sem desvalorizar o imenso passivo externo acumulado na última década, o equilíbrio das contas externas requer uma gigantesca transferência de recursos reais ao exterior e uma continua entrada de capitais internacionais – o que supõe contração do mercado interno e crescente aumento dos juros para compensar a deterioração do chamado “risco Brasil”. Sem ampliação dos investimentos e elevação da produtividade, a rentabilidade das empresas torna-se diretamente proporcional ao arrocho salarial e à desoneração (ou simples sonegação) tributária.
Por fim, sem desvalorizar a dívida interna, cuja expansão foi condicionada pela ciranda financeira vinculada à entrada de capitais internacionais especulativos, o orçamento público fica submetido a um ajuste fiscal permanente. Ao priorizar os interesses dos capitais rentistas em detrimento das necessidades básicas da população, a Lei de Responsabilidade Fiscal transforma as despesas com investimento e serviços públicos em variável de “equilíbrio” do orçamento público. A expansão endógena da dívida interna, provocada pela capitalização de juros reais estratosféricos, e os efeitos negativos da austeridade fiscal sobre a demanda agregada e, em consequência sobre a arrecadação tributária, tornam o ajuste fiscal num verdadeiro trabalho de Sísifo.
O discurso segundo o qual o ajuste neoliberal é um sacrifício necessário para o restabelecimento das condições que permitem a retomada do crescimento é um embuste. A recomposição do padrão de acumulação depende de condicionantes externos e internos que extrapolam amplamente o âmbito das medidas macroeconômicas destinadas a “sanear” os mercados e estimular a livre iniciativa. No elo fraco do sistema capitalista mundial, as transições de um ciclo expansivo para outro exigem longas e penosas travessias. Na era da globalização, em que se observa uma crise estrutural do capital que acirra a instabilidade econômica, esse processo torna-se particularmente antissocial e antinacional.
O caráter desigual do desenvolvimento capitalista faz com que o movimento da economia brasileira seja sobredeterminado pelas estruturas e dinamismos que se propagam dos polos avançados do capitalismo. Nesse contexto, enquanto o país permanecer marginalizado das ondas de transformação em curso nas economias centrais é inviável a pronta retomada do crescimento. As mudanças nas forças produtivas, provocadas pela “revolução algorítmica”, e a natureza ultra-elitista do processo de reorganização da ordem econômica internacional – a “integração profunda” liderada pelos Estados Unidos – relegam o Brasil a uma posição ainda mais periférica na divisão internacional do trabalho, deixando-o cada vez mais distante dos circuitos dinâmicos que condicionam a nova rodada de integração do sistema capitalista mundial.
Ainda que a economia mundial se recuperasse e o Brasil viesse a ser reintegrado às correntes dinâmicas do desenvolvimento capitalista em escala global, é difícil imaginar uma solução célere para a crise nacional. Como as estruturas difundidas a partir do centro não podem ser pura e simplesmente transplantadas para a periferia, pois precisam ser reconstruídas internamente e combinadas com estruturas anacrônicas que resistem à força do tempo, a recomposição do padrão de acumulação baseado na modernização do arcaico e na arcaização do moderno depende de decisões políticas complexas. A dimensão das dificuldades enfrentadas pelas burguesias que precisam reciclar o desenvolvimento induzido de fora para dentro fica patente quando se leva em consideração que tal reciclagem exige a redefinição de uma série de questões altamente complexas, tais como: a) os mecanismos de satelização da economia brasileira na economia mundial; b) a institucionalidade capaz de evitar guerras fratricidas entre as burguesias vinculadas a atividades ultramodernas, modernas, atrasadas e arcaicas; c) o padrão de intervenção do Estado na economia capaz de dar um mínimo de coerência ao novo regime de acumulação; d) o caráter da relação capital-trabalho adequado às novas exigências do capital na periferia; e) as políticas preventivas e repressivas necessárias para disciplinar as classes subalternas e garantir aos conglomerados multinacionais que eles não correm riscos excessivos no Brasil.
Ao solapar as bases da “paz social”, a crise do padrão de acumulação acirrou a luta de classes. A gravidade da situação política fica caracterizada pelo abismo que separa, de um lado, as forças que se levantam, de baixo para cima, exigindo “reformas democráticas” e respeito à soberania nacional; de, de outro, as forças conservadoras que se mobilizam, de cima para baixo, para exigir “ordem e progresso”. As primeiras, presentes nas revoltas urbanas contra o descalabro das políticas públicas em junho de 2013, nas manifestações contra a Copa, nas greves por melhores salários e condições de trabalho, na luta dos estudantes e professores em defesa da educação pública, nas manifestações dos movimentos sociais por uma inversão na prioridade das políticas públicas nas cidades e no campo, nas vigílias em defesa de Amarildo e contra a violência policial. As segundas, presentes nas manifestações orquestradas pelos grandes meios de comunicação em março de 2015 em repúdio ao tímido “melhorismo” petista. A guerra pelo controle do aparelho de Estado entre as principais facções do partido da ordem – PT, PMDB e PSDB – é um elemento adicional de conturbação que compromete a unidade política da burguesia num momento de decisões cruciais.
As crises econômicas e políticas reforçam-se mutuamente. A ofensiva do capital sobre o trabalho e os ataques sistemáticos contra as políticas públicas e a soberania nacional afastam qualquer possibilidade de restauração da “paz social”, colocando na ordem do dia a necessidade de uma profunda redefinição do padrão de dominação. A crise do padrão de dominação imobiliza o Estado e impede o encaminhamento das decisões necessárias para a recomposição das bases objetivas e subjetivas do desenvolvimento dependente.
O fim da letargia social polariza a luta de classes entre revolução e contra-revolução. Sufocada pela ditadura militar em 1964, sabotada pelo aborto da campanha das “diretas já” em 1984, derrotada em 1989 pela vitória do projeto de modernização neoliberal, frustrada pela adesão do PT aos parâmetros da ordem global em 2002, a revolução democrática volta a emergir como necessidade histórica premente. O “medo pânico” de que as energias tectônicas que impelem a emergência do povo possam aflorar à superfície leva a burguesia a rever os termos da democracia restrita que caracteriza seu padrão histórico de dominação. A autocracia burguesa precisa inventar novos mecanismos de contenção da história.
A estagnação da economia em 2012, a escalada dos conflitos sociais a partir de junho de 2013, o acirramento da guerra fratricida entre as diferentes facções do partido da ordem nas eleições de 2014, o fim da impostura do PT como representante dos interesses da classe trabalhadora, e a absoluta desmoralização de Dilma como liderança política em 2015 são sintomas inequívocos de que a sociedade brasileira vive uma crise de grande envergadura. A digestão das contradições acumuladas pelo ciclo de modernização impulsionado pela inserção subalterna da economia brasileira no circuito especulativo da economia global e as dificuldades para recompor o padrão de acumulação e dominação fazem vislumbrar um longo período de forte instabilidade econômica, crescente conflito social e grande turbulência política.
*Professor livre-docente do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas – IE/UNICAMP – e membro do Conselho Editorial do Correio da Cidadania. Abril, 2015.