Por Francesc Miró, do El Diario
Traduzida pelo IHU
“As humanidades não são apenas o conjunto de disciplinas que tradicionalmente chamamos de “letras”. São tudo aquilo com o qual elaboramos nossa experiência como seres humanos. É arte, linguagem, pensamento, cultura, mas também é ativismo e compromisso”.
É nisso que Marina Garcés acredita e defende em seu trabalho como professora de filosofia na Universidade Aberta da Catalunha. Ela é autora de livros como Un mundo común, Filosofía inacabada e Ciudad princesa. Seu breve ensaio Nueva ilustración radical se tornou um dos fenômenos editoriais mais comentados da filosofia em nosso país, nos últimos tempos.
Em 2016, o Intitut d’Humanitats de Barcelona a convidou para liderar um projeto de transformação em torno das principais questões do pensamento atual. Assim começou uma série de conferências nas quais participaram pessoas como David Casassas, Ingrid Guardiola, Joana Masó, Karo Moret e Brigitte Vasallo, entre muitas outras. Agora, publica pela editora Rayo Verde, o livro Humanidades en acción, um projeto no qual escreve e coordena dezenove ensaios que buscam criar um mapa de quem e como estão exercendo as humanidades na sociedade contemporânea. O que significam quando o cidadão busca significados para conceitos que ainda não sabe como abordar.
A entrevista é de Francesc Miró, publicada por El Diario, 18-02-2019. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
No ensaio que você mesmo assina, aponta para o conceito ‘Humanidades ZERO’ para explicar que hoje consumimos essas humanidades como se fossem um refrigerante da Coca-Cola. Agora que tantos livros de autoajuda foram publicados, ensaios de todos os tipos e debates sobre esses assuntos em espaços mainstream, perderam parte de sua capacidade crítica?
Houve dois fechamentos desse potencial crítico nas humanidades. Um, o tipo disciplinar: neutralização pelo academicismo. E o outro pelo caminho da indústria cultural e sua comercialização.
As ‘Humanidades ZERO’ são aquelas que, devido à banalização do lazer cultural, adoçam um pouco a vida, mas não alimentam, nem transformam nada. Como um refrigerante. E isso consumimos o tempo todo, porque na realidade somos grandes consumidores de cultura. Mas, que cultura e acima de tudo a serviço de que valores e modos de vida? Quais possibilidades de transformação ocorrem nessa cultura? É necessário nos perguntarmos por que vivemos com formas de consumo cultural tão pouco críticas em todos os âmbitos.
Há alguns dias, em entrevista ao jornal El Mundo, o filósofo coreano Byung-Chul Han afirmou que hoje “o lazer só serve para descansar do trabalho”. Concorda com isso? E, em todo caso, um lazer crítico pode reverter essa situação?
Eu diria que nossa relação com o lazer é ainda pior do que é apontado por Chul Han, porque se pudéssemos realmente descansar do trabalho, seria algo grande. O problema é que não podemos descansar. O tempo de trabalho se funde com o consumo e o tempo de lazer, em mundos que constantemente produzem valor capitalista, como as redes sociais.
Sendo assim, acredito que se trata de apostar radicalmente em fazer com que em nossos tempos – sejam ou não de trabalho – possamos estar compartilhando essas perguntas importantes. E por perguntas importantes não me refiro a ser sério e parecer solene, mas ser capaz de perceber em cada caso o que está acontecendo conosco, com nossas vidas, com nossos relacionamentos. Isso é o que realmente importa para transformar nossas ferramentas culturais em ferramentas de vida e transformação.
O artigo de David Casassas, Humanidades en acción, fala justamente disso, mas afirma que nos faltam as condições materiais para parar e pensar. Não temos tempo. Segundo ele, para cultivar as artes e as humanidades, a renda básica poderia ser uma das medidas para abrandar a falta de meios.
É interessante que você destaque essa questão porque ela realmente ressoa em outros artigos do livro. Trata-se dessa dificuldade de prestar atenção ao que vivemos e fazemos. Como podemos voltar nossa atenção para o que realmente importa, quando somos continuamente atacados por todos os tipos de emergências? São distrações e novos tempos de trabalho ingovernáveis que fazem, de alguma forma, que a vida nos passe, mesmo quando pensamos que estamos fazendo o que mais gostamos.
David Casassas, como bom cientista social, ativista e altamente qualificado em matéria de renda básica, propõe a questão. Porém, não é só que não podemos pensar porque não temos tempo: este é o efeito de uma série de questões materiais e de submissão de todo o tempo de vida à produção de recursos para sobreviver.
Para mim, é muito interessante que retiremos as humanidades desse céu idealista da subjetividade e das ciências do espírito para colocá-las no debate de que somos corpos que vivem violentados por todos os tipos de dinâmica econômica e material de sustento da vida. Temos que nos perguntar como trabalhamos e como vivemos para entender quais tipos de cultura, conhecimento e arte estamos desenvolvendo.
Remedios Zafra disse em seu ensaio El entusiasmo que a paixão do artista ou do pesquisador se tornou outra forma de autoexploração. Você acha que as humanidades perderam capacidade crítica por causa disso? Desvalorizaram-se porque não temos tempo para exercê-las com calma?
As condições de autoexploração no mundo da cultura são importantíssimas. De fato, eu também incluiria o mundo do ativismo porque ativistas de todos os tipos acabam sendo autoexplorados e queimados por algumas dinâmicas impossíveis de se conciliar com a vida.
Entretanto, esta questão não se reduz apenas às condições de trabalho que cada um possui. São parte de alguns ritmos de vidas, que quase se poderia dizer que construímos por projetos. Temos vidas nas quais somamos uma dedicação a muitas outras e a cada uma transferimos o sentido da seguinte. Estamos em um projeto de vida para gerar o próximo e o próximo e o próximo. Vivemos como em uma espécie de fuga sem fim, que muitas vezes faz com que percamos o sentido do que estamos fazendo.
Falamos muito de afetos, fazemos esta aproximação mais feminista para nossas práticas, tanto culturais como políticas, e, em troca, autoinfligimos altos níveis de violência. De ritmos de vida impossíveis, de ação e até de desejo.
Há um chamado coletivo neste livro, por exemplo, no artigo de Ingrid Guardiola, para aprender a recusar. Que não é simplesmente dizer “não” como em um livro de autoajuda, mas, ao contrário, fazer uma recusa produtiva para nos subtrair de certas dinâmicas de autoexploração.
Ingrid Guardiola aborda no livro o fato de como nos expressar na sociedade atual. Ela aponta que “a liberdade de expressão se tornou uma espécie de condenação, uma doença da fala, incontinência do espírito possuído pela polêmica e a autoexibição”. Como você considera que as redes sociais afetaram nossa maneira de se expressar e pensar?
Há muitos elementos a serem analisados em relação a isso, mas acredito que aquilo que mais afeta de maneira angustiante nossas formas de expressão são a continuidade e a transparência. A primeira é a não interrupção de toda expressão possível. Somos obrigados a ter que nos manifestar constantemente para existir. E essa continuidade é uma tirania que impõe determinados modos de pensar e compartilhar que nem sempre são proveitosos.
E junto a isso, a transparência. Essa questão de que tudo em nossa vida tem que ser visível o tempo todo, esta coisa de que tudo tenha que estar aí presente, que na realidade é uma grande mentira, porque está presente para os que formam sua rede. Na realidade, não há nada menos transparente que as redes sociais, porque só nos vemos e seguimos uns aos outros.
Isso também criou uma espécie de autorreferencialidade muito enganosa que no mundo da política já está tendo resultados. Tende-se a pensar que o restante pensa como nós e a dissidência se torna um escândalo ou uma agressão pessoal. Uma fonte de inimizade radical. Ao passo que o mundo dos ativismos ou da criação artística facilita acriação de bolhas que se olham e se autocomprazem.
Em Nueva ilustración radical, você falava do conceito de “analfabetismo ilustrado”, no sentido de que hoje sabemos tudo, mas não podemos fazer nada. Como chegamos a essa situação e como é possível abrir novos caminhos de diálogo e modos de pensar?
Para mim, o analfabetismo ilustrado é essa condição tão paradoxal de estar em sociedades nas quais o acesso ao conhecimento é uma condição mais ou menos compartilhada, temos educação pública, informação aberta e está ao alcance de todos se apropriar e conhecer quase todos os saberes de nosso tempo, no entanto, somos muito incapazes de agir a partir desses saberes.
Não temos relações significativas com as informações do nosso dia a dia. O que temos é uma sociedade altamente informada, relativamente educada, mas muito analfabeta em relação aos seus mundos. Nossos saberes e capacidades estão muito desconectados. Não sabemos como converter nossos saberes em processos de emancipação e transformação coletiva.
Considera que a docência desempenha um papel importante nesse sentido? Especialmente, em um cenário como o nosso, em que os profissionais da filosofia lutam para não serem marginalizados? O quanto as humanidades são necessárias para os mais jovens?
A questão da educação é fundamental e acredito que os poderes corporativos e econômicos de nosso tempo compreenderam isso. De fato, há uma operação global em colocar a educação a serviço de um tipo de novas docilidades orientadas a produzir sujeitos adaptáveis, flexíveis e permanentemente desorientados. Permanentemente engajados na busca de segurança.
Essa questão me parece tão importante que considero que não devemos deixá-la só nas mãos do setor, ou seja, dos profissionais da área. Seria uma grande irresponsabilidade social por parte da sociedade como um todo. A educação é uma questão política, não de ideologias. Política no sentido de que é aí que construímos as formas de vida nas quais vamos viver no futuro imediato.
Para mim, a aposta na educação não apenas precisa reivindicar certas cotas de presença das humanidades ou da filosofia, mas realmente entrar na disputa de quais valores e modos de vida estamos construindo em nossos colégios e espaços de aprendizagem.
Nesse sentido, para participar da educação como sociedade, você defende um papel proativo dos cidadãos nas humanidades. Você considera que delegamos nossas decisões para formas muito setorizadas?
Sim. Acho que a captura da decisão coletiva por parte de certos órgãos institucionais, tanto políticos como setoriais – acreditar que a educação só corresponde aos pedagogos – é algo que diz respeito a todos nós. É uma situação que cria uma cultura de delegação. Ou seja, delegamos aos outros para que pensem e decidam por nós. E, ao mesmo tempo, produzimos uma cultura do cliente, porque nos tornamos clientes daqueles a quem delegamos decisões e posições.
Claro, isso é duplamente perigoso porque em vez de cidadãos, nos tornamos clientes de nossas sociedades. Assim, no máximo, o que nos resta pedir é o formulário de reclamações. Exigir uma parcela de insatisfação. Mas, um cliente insatisfeito não é um cidadão, é outra coisa.
Acho que nisso, claramente, precisamos mudar a visão. Temos que voltar a pensar que o público somos nós. E, portanto, o que consideramos ser parte de nossa vida em comum não são produtos que o Estado nos oferece, mas nossas próprias conquistas. Nossos bens comuns.