Por Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs
Não é hora de lamentar. O lamento embaça a vista e obscurece o caminho. Ventos bravios varrem os céus do Brasil, é verdade, mas sua força pode ser canalizada como energia construtiva. Nuvens sombrias se adensam para a tormenta, mas a luz e o calor do sol, após a tempestade, faz crescer brotos de esperança. Depois do inverno, a primavera renova e reaviva a paisagem e o horizonte. Em vez disso, é tempo de extrair pérolas do tesouro do passado (remoto e recente), firmar os pés no chão embrutecido do presente e fixar os olhos nas veredas abertas ao futuro. Memória e projeto constituem, simultaneamente, desafio e prospectiva. Ilustra bem a imagem do motorista que se senta ao volante de um automóvel. Primeiro, uma rápida olhada ao espelho retrovisor. Depois, e só depois, pé firme e confiante no acelerador. Um pequeno momento de reflexão, para retomar com mais vigor a caminhada.
Da mesma forma que o coração humano, a memória é uma caixa de surpresas. Espaço desprovido de lugar preciso, terra selvagem, desconhecido e em parte inconsciente. Terreno ignoto, às vezes perigoso, mas que, a cada esquina, reserva uma novidade. Que tipo de surpresa ou novidade? Sonho ou pesadelo? Fantasma que assusta ou ferramenta familiar e que pode ser manipulada? Aqui está o desafio: tomar nas mãos o passado, como um metal bruto, e com ele forjar algo inovador e positivo. O que podemos identificar em nossa memória recente e remota como matéria prima a ser reaproveitada e reapropriada? Que pedras preciosas nos hão de servir para a construção do edifício chamado “Brasil que queremos”?
Nem será necessário cavar tão fundo no terreno da história. A experiência das comunidades eclesiais de base (CEBs), das pastorais sociais, da Teologia da Libertação (TdL), da “opção preferencial pelos pobres” e do envolvimentos das Conferências Episcopais e de numerosos pastores; a força dos movimentos populares, trabalhistas, estudantis ou do sindicalismo combativo; as múltiplas e variadas organizações de base, o apoio das entidades, das ONGs e das igrejas do CONIC; as marchas, campanhas, gritos, plebiscitos e mobilizações em geral; os debates em torno das Semanas Sociais Brasileiras; o incansável movimento das mulheres, dos defensores do meio ambiente e dos direitos humanos; as pesquisas, análises e estudos dos intelectuais e acadêmicos em graus e disciplinas distintas; a lembrança dos profetas e mártires da América Latina, como São Oscar Arnulfo Romero; a luta dos afro-brasileiros, dos quilombolas, dos indígenas e de tantas outras minorias… Mas o elenco das forças vivas e ativas deste continente é muito mais expressivo do que podemos sequer imaginar. Terras saqueadas e exploradas, mas não vencidas. Povo que sofre, sonha e luta, mas sempre ao som da música, ao embalo da dança, e sem se deixar abater.
Além de instrumentos e ferramentas, porém, a memória nos faz retomar os métodos e modelos utilizados. Quem não se lembra, por exemplo, das visitas de casa em casa, de família em família, da preocupação pelos doentes e indefesos, pelos os pobres e excluídos? Das reuniões por rua, bairro, prédio, condomínio, ou por categoria, idade ou expressão cultural? Dos círculos bíblicos, encontros em que a Palavra de Deus iluminava a realidade e esta, por sua vez, dava novo sabor e interpretação à Bíblia? Depois, à luz da Palavra e com os pés no chão, como se passava às ações concretas pela transformação das estruturas injustas e assimétricas? E a presença teimosa e persistente nas comunidades rurais e urbanas, nas periferias e cortiços, nas ruas e associações – ou seja, nos porões escuros e esquecidos da sociedade? Como esquecer a expressão que se encontra na ponta da língua de tantos agentes e militantes, “o trabalho de formiguinha”? E como deixar de lado o direito à greve no campo e na cidade?…
A memória consiste em um tesouro onde não faltam as pegadas dos passos já percorridos. Recordações doentias de um paraíso perdido, ou lembranças fecundas, cheias de brilho e força? Toda crise pode nos levar ao colo mórbido da mãe, ao berço, ao choro, ao lamento – no sentido de nos infantilizar num saudosismo nocivo e estéril. Mas pode nos fazer descobrir as ferramentas mais afiadas de nossa resistência, luta, profecia e solidariedade – servindo para fortalecer e consolidar um projeto alternativo. Não um porto final e de chegada, onde estacionar a embarcação; mas um porto seguro e de partida, cujo farol possa orientar esta gigantesca nave Brasil, conduzindo-a no rumo de uma cidadania plural e solidária, justa e fraterna, igualitária e sustentável. “O desenvolvimento integral é o novo nome da paz” – poder-se-ia concluir com a Carta Encíclica Populorum Progressio, publicada em 1967 por São Paulo VI.
Roma, 30 de outubro de 2018.