Por Ismael Machado, Diário do Pará/ Agência Pública
De testemunha a ré. Essa é a situação atual de Késia Furtado de Araújo, 32 anos, em Santana do Araguaia. Mesmo sem ser uma liderança dos trabalhadores rurais ou diretora do sindicato, Késia foi presa e, na cadeia, ameaçada de morte. Seu crime: defender Nádia Pinho, a principal líder dos acampados, em depoimento sobre o assassinato de um pistoleiro no município.
No presídio, Késia recebeu a visita da mulher do pistoleiro morto que trabalhava ali. “No dia em que cheguei ela foi falar comigo. Disse que estava esperando pela gente”, conta Késia, que passou a viver assombrada na cela.
Nem de longe era o que imaginava quando participou da primeira ocupação de terras. O sonho de Késia Furtado sempre foi o de possuir um lote. “Fui nascida e criada na roça”, conta. “Casei com 18 anos e trabalhei uns dez anos como vaqueira em muitas fazendas, de carteira assinada e tudo. Sei montar, sei vacinar boi, sou apaixonada por terra”, diz ela.
A ‘vaqueira’ de fala ligeira e pele negra morava em Redenção, município vizinho a Santana do Araguaia quando ouviu falar de ‘umas terras’ em Ouro Verde, uma fazenda no município de Medicilândia, no sudoeste do Pará. Como tantas cidades surgidas durante a construção da rodovia Transamazônica, não se sabia bem a quem pertenciam as terras de Medicilândia, por isso, alvo de grilagens, invasões, ocupações. A fazenda Ouro Verde estava nesse cenário. “Fiquei lá durante seis meses, até que veio a ordem de despejo e tivemos de sair da fazenda”, diz Késia.
Separada do marido e desorientada pelo despejo, Késia mudou para Santana do Araguaia, ainda atrás de um pedaço de chão. “Fiquei sabendo das terras da Fazenda Nobel, conheci a Nádia (Pinho, coordenadora do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santana do Araguaia) e consegui uma terra na Nobel para mim”.
Késia ergueu um barraco, cultivou ‘uma rocinha’ e acreditou que ‘as coisas iriam se aprumar’ no novo chão. “Até que chegou a primeira liminar de despejo e nós saímos, mas a Nádia reuniu todo mundo, dizendo que se fosse para nós sair despejados que a gente fizesse um acordo. Nem nós entrávamos no pasto, nem o fazendeiro tomava nossa roça”.
Durante um tempo, sob as bênçãos da Ouvidoria Agrária, em Brasília, o acordo foi cumprido. Até que jagunços a mando do fazendeiro entrassem no acampamento, queimassem barracos e destruíssem roças. Com uma liminar judicial favorável em mãos, os posseiros voltaram à fazenda. “Tornamos a levantar barracos e a plantar. Na época da colheita, fretamos um carro e fomos vender os produtos. Melancia, milho, abóbora estavam entre o que foi colhido”, conta.
Apenas dois posseiros permaneceram no local, enquanto o resto foi comercializar a safra no centro de Santana. “Dois homens chegaram e atiraram nos pés deles, mandando que eles ‘vazassem’ de lá”, diz Késia.
Foi o início de um ir e vir de mandados judiciais, ordens de despejo e liminares que ora permitiam ora proibiam a entrada dos posseiros. “Fomos postos de lá para fora umas três vezes”, diz ela. “Eu estava conversando com o Henrique, vice-presidente do sindicato, ouvindo sobre os processos da terra quando chegou um agricultor, o ‘seu’ Pedro chorando, dizendo que tinha sido humilhado por um jagunço. A partir daí ele passou a repetir todo dia que ia matar o ‘cabra’. Até que matou mesmo”.
Foi assim que o terror entrou na vida de Késia. Convocada para depor à polícia, defendeu Nádia Pinho, acusada de ter sido a mandante do assassinato. Quando soube do depoimento de Késia, ‘seu’ Pedro passou a acusá-la também, dizendo que ela, inclusive, teria fornecido a arma do crime. “De lá para cá minha vida virou só tumulto. Estou respondendo processo e tive de enfrentar a mulher do pistoleiro morto. A família dele está jurando vingança e passei a ser alvo deles também”, diz.
Késia já foi seguida uma vez. Não sabe dizer quem foi, mas passou a viver com medo. Em relação a fazenda Nobel, onde ainda espera ter um lote definitivo de terra, tudo é incerteza. “Ainda estamos esperando a decisão da Justiça. Por enquanto está tudo em suspenso para nós”.
* A série Marcadas para Morrer é uma parceria da Agência Pública com o Diário do Pará, com reportagem de Ismael Machado. Adital reproduz com a autorização da Agência Pública.