Pedro Gontijo, doutor em filosofia pela Unicamp e membro da Comissão Brasileira de Justiça e Paz (CBJP), organismo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), entende a política como um processo constante de embate respeitoso entre projetos divergentes ou antagônicos. “Por mais divergentes que diferentes grupos possam ser, todos possuem direito a existir e defender suas posições”, argumenta ele tendo em vista o horizonte democrático. Estas afirmações, o professor adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade de Brasília (UNB) fez numa entrevista que que concedeu à edição nº 24, da Revista Bote Fé, da Edições CNBB, há 2 meses antes de entrarmos no processo de eleições gerais. Uma eleição que, segundo ele, se anuncia marcada por um forte maniqueísmo político. Para ele, que também é membro da Comissão de Análise de Conjuntura da CNBB, o remédio para os problemas da democracia brasileira não é menos democracia mas mais democracia. “Precisamos ampliar as possibilidades do exercício democrático”. Leia, a seguir, trechos da entrevista do professor.
Como o senhor define a política?
Em termos mais gerais a política é o que está relacionado ao público, à vida com o diferente, com a pluralidade, à gestão dos espaços e processos de vida comuns entre os seres humanos. Talvez seja menos consensual, mas eu incluiria as questões relacionadas à nossa convivência com o planeta, nossa casa comum.
Seria interessante, mas o espaço não é suficiente, distinguir um sentido mais amplo de política e o sentido mais restrito que é usado no cotidiano para se referir à política institucional envolvendo governos, parlamentos e outras instituições. Os diferentes espaços de poder público precisam ser encarados como espaços de serviço ao bem comum. Um governante ou legislador precisa entender que sua função é exercer um poder obediente àqueles e àquelas que são os verdadeiros detentores do poder que é a população. Quem é eleito exerce bem sua função quando obedece aos interesses de quem elegeu e não aos próprios interesses.
Alguns consideram a política institucional o espaço para a construção de consensos que façam a sociedade avançar, mas existem projetos divergentes e, por vezes, antagônicos. Por isso, podemos pensar a política institucional como o lugar em que os antagonismos partem, ao menos de um consenso: por mais divergentes que diferentes grupos possam ser, todos possuem direito a existir e defender suas posições. A política institucional seria o espaço para esse confronto dentro de um ambiente no qual, somente a intolerância não pode ser tolerada. A política exercida como processo constante de embate respeitoso entre projetos divergentes ou antagônicos.
Uma pesquisa Datafolha, divulgada em junho do ano passado, apontou que das 2.771 pessoas ouvidas em todo o país apenas 3% confiam na Presidência; 2% confiam nos partidos políticos; e o índice de confiança no Congresso é de apenas 3%. A que se deve esta avaliação? Quais são as consequências deste processo de descrédito?
Em geral, problemas desse tamanho não têm uma resposta simples. Nesse caso, a literatura científica me permite levantar algumas hipóteses que se somam: a) há um movimento de descrédito em diversos países com o sistema representativo, ou seja, é um problema que várias sociedades estão vivenciando.
Se temos assistido, conforme mostram diferentes estudos, que a desigualdade social cresce no mundo e que os governos e legislativos não conseguem dar respostas às demandas da sociedade, cresce uma descrença nas instituições e até na própria democracia; b) No caso brasileiro temos uma parte da classe política que continua com a mesma mentalidade escravocrata, latifundiária e elitista que tínhamos ainda no período do império. Esse descolamento com relação às necessidades da população faz aumentar a desconfiança; c) temos um problema que começa a ser melhor observado por parte da população brasileira que diz respeito à imprensa que existe no Brasil. Em boa parte é uma imprensa que vive do escândalo, do sensacionalismo, do fake news (como bem lembrou o Papa Francisco recentemente) e de outras práticas pouco democráticas. Às vezes, a grande mídia brasileira atua criminalizando a atividade política por meio da forma como trata a política e os políticos. Às vezes a forma como são construídas as matérias jornalísticas mais desinformam que informam. Um exemplo é sobre o Sistema Único de Saúde – SUS. A maneira como se fala do SUS faz boa parte da população pensar que SUS é apenas hospital, pronto-socorro e UPA, todavia, o SUS está presente na vida de toda população brasileira. Quem vai a uma padaria ou um supermercado é um usuário do SUS. Quem bebe um copo de água mineral é usuário do SUS.
As consequências podem ser a perpetuação desse quadro de descrédito e abandono da atividade política deixando ela cada vez mais sendo exercida por quem não tem legitimidade e nem responde aos interesses da população. Com isso se reforça esse modelo excludente de sociedade. Outra consequência poderá ser a insurreição popular que não aguentando mais essa situação, promove movimentos diversos de reação. Isso pode explodir como uma panela de pressão em que não se respeite seus limites. Os resultados podem ser uma mudança para melhor ou levar a um caos social.
Quais são, na avaliação do senhor, os problemas da democracia brasileira e maiores obstáculos para sua efetivação plena e para o exercício da cidadania no Brasil?
Existem diversos problemas, mas dois me parecem mais graves e estão na origem de outros. A existência da miséria e a desigualdade social e econômica. Com o nível de desigualdade econômica que vivemos não há democracia, porque grande parte da população está excluída do exercício da cidadania. Democracia que só é sentida no ato de votar é uma democracia com muita debilidade. Uma parcela muito pequena da população possui um poder econômico enorme para influenciar as políticas públicas.
Pior que a corrupção que vemos estampadas em páginas de jornais e em noticiários dos grandes grupos econômicos que dominam a grande imprensa é a estrutura social que garante de forma legal e institucionalizada, com apoio desses mesmos grupos, a manutenção da miséria e da desigualdade. Grandes empresários, muitos representando grupos transnacionais, jamais precisarão de previdência social, escola pública ou hospitais públicos, mas são eles que mais conseguem influenciar parlamentares e gestores públicos quando elaboram ou votam leis no Congresso Nacional ou nas assembleias legislativas dos estados.
Qualquer sistema democrático por pior que seja é melhor que um sistema ditatorial. Uma parcela da população acha que algum segmento da sociedade como o judiciário ou mesmo forças militares seriam isentas de corrupção, mas não há no mundo nenhum estudo que mostre isso. Pelo contrário, temos muitos relatos de corrupção nesses segmentos. Todas as instituições são instituições humanas, portanto padecem do mesmos problemas, vícios e virtudes que as demais. O remédio para os problemas que temos em nossa democracia não é reduzir a democracia. Pelo contrário, precisamos ampliar as possibilidades de exercício democrático.
O desmonte do Estado brasileiro também preocupa. Há um discurso que é falacioso, mas que é muito sedutor na busca de apresentar uma avaliação positiva de tudo que é iniciativa privada e uma avaliação negativa sobre tudo que é iniciativa pública estatal. O privado como o lugar da eficiência e o estatal como lugar da ineficiência. O privado tendo virtudes e o estatal tendo vícios. Com isso se tenta justificar privatizações de setores estratégicos como setor energético ou de empresas públicas como a Caixa Econômica e Banco do Brasil. Com esse discurso se quer justificar a diminuição dos investimentos em educação e saúde pública, transferindo-os para a iniciativa privada. Há que se combater esse tipo de visão equivocada.
Podemos afirmar que há um esgotamento do modelo de sistema político brasileiro erigido após a Constituição de 1988? Na avaliação do senhor quais são seus principais problemas?
Não diria esgotamento do modelo de sistema político, mas de aspectos nesse modelo em que se privilegiou uma busca de conciliação de classes, onde os empobrecidos pagam a maior parte da conta. O tal presidencialismo de coalizão parece não ter condições de responder às necessidades da política com a diversidade de interesses em jogo. Não que não se possa refazer novos pactos, mas terão que ser sobre outras bases. O problema foi como diferentes forças políticas responderam ao arranjo político existente. A democracia representativa é muito importante, mas não é suficiente.
Precisamos intensificar mecanismos de democracia direta e participativa. Sem controle social sobre políticas públicas não há democracia que se sustente. Países como a Suíça tem tido experiências muito exitosas de ampliação da participação popular nas decisões sobre as políticas públicas. A Noruega costuma ser considerada um dos países mais democráticos numa sistemática de avaliação que leva em conta processo eleitoral e pluralismo, liberdades civis, funcionalidade do governo, participação política e cultura política. No Brasil, a elite pretende ter uma política sem povo. É verdade que esse problema não é só nosso. Existem estudos que mostram que grandes corporações transnacionais e organismos financeiros internacionais possuem mais poder de definir as políticas publicas em muitos países que as populações desses mesmos países.
Vários partidos políticos carecem de identidade ideológica e política. Algumas legendas existem apenas para funcionar como moeda de troca em apoios políticos a governos, receber recursos do fundo partidário, negociar tempo de TV em época de eleições e coisas do gênero. Ainda que não exista uma fita métrica para definir quantos partidos são ideais numa democracia, há cada vez mais um consenso de que temos partidos no Brasil para além do espectro ideológico.
Outro problema de nosso sistema político é o papel do judiciário. Por diversas razões temos vivenciado tanto processos de judicialização da política como de politização do judiciário. O poder judiciário é tão político como o executivo e o legislativo, mas não poderia ser partidário. Esse pacto sobre o papel de cada um dos poderes tem sofrido rachaduras que precisam ser consertadas.
Em função dos processos políticos recentes, percebe-se uma polarização na sociedade brasileira, incluindo setores da própria Igreja, com posicionamentos por vezes extremistas que não dão abertura para o diálogo. Como o senhor avalia este fenômeno?
É difícil de analisar com profundidade em poucas palavras, mas assistimos a um crescimento do que eu chamaria de um perigoso maniqueísmo político e religioso. Como já dissemos acima, a existência de ideias e projetos antagônicos não é um problema, mas o desejo de eliminar o diferente é um problema. Há uma visão de que o mundo, as religiões e a vida política são regidos apenas por dois princípios: o bem e o mal e se a pessoa se considera “do bem”, quem pensa diferente é considerado representante do mal. Enquanto assistimos nas últimas décadas os papas intensificarem ações de ecumenismo e diálogo religioso, reconhecendo a legitimidade de outras expressões religiosas e buscando o que poderia unificar uma agenda de paz, assistimos dentro das próprias igrejas cristãs posturas de estigmatização e demonização de determinados grupos religiosos. Pode-se tratar quem tem propostas e visões de mundo diferentes ou mesmo contrárias à minha como adversários contra os quais devo mobilizar forças políticas para derrota nos locais adequados como o Congresso Nacional.
A postura de diálogo é fundamental. No plano político não podemos excluir alguém por ser mais ou menos liberal ou mais ou menos socialista ou trabalhista.
Aliás, esse é outro problema: muita gente tem intolerância por aquilo que sequer sabe o que é. Não sabe diferenciar projetos políticos e trata tudo com uma coisa só. É o que vemos nas redes sociais quando muitas pessoas usam os conceitos de marxismo, socialismo, liberalismo, anarquismo, fascismo sem nenhuma referência histórica ou adequada distinção conceitual. Só não dá para dialogar com os intolerantes, pois esses não querem o diálogo. Querem a eliminação de quem pensa diferente. Há uma postura intolerante crescendo em alguns ambientes religiosos cristãos. Há em outros lugares também, mas como cristão me preocupa como isso tem crescido em nosso meio.
É nítido nas Igrejas Evangélicas uma estratégia clara de ocupação do espaço político, incluindo o incentivo à disputa a cargos eleitorais. A Igreja Católica adota outras estratégias, como o incentivo aos leigos à participação na política. Esta estratégia é suficiente?
Minha compreensão até aqui é que não devemos incentivar qualquer iniciativa que procure reproduzir algum modelo já ultrapassado de cristandade. O espaço da política é um espaço laico e é o espaço privilegiado de protagonismo de leigos e leigas. Devem atuar não só na política institucional ou partidos políticos, mas numa imensa quantidade de espaços de atuação como sindicatos, associações, movimentos sociais, fóruns, conselhos e outras formas de organização. Além desses espaços podemos incluir os espaços dentro do serviço público que devem ser exercidos como serviço ao bem comum. Isso vale para qualquer função pública como gestores, analistas, juízes, procuradores e militares. O Exercício de uma função pública não pode ser exercido apenas para satisfazer o desejo de uma carreira de sucesso com ganhos garantidos. Tem que ser orientada por um princípio ético.
Quais pontos da mensagem da CNBB intitulada “Compromisso e esperança” o senhor destacaria como forma de orientação para o processo eleitoral que tem início em agosto?
Ela como um todo está muito bem escrita e revela uma evangélica opção pelos mais empobrecidos nessa conjuntura nacional e internacional em que impera uma economia que mata (EG 53) ou como diz o próprio texto da mensagem “uma economia que submete a política aos interesses do mercado”. Se isso é verdade, significa que estamos vivendo em um tempo pós-democrático, em que o povo não decide mais os rumos da economia. Essa é a grande corrupção que vivemos e que precisa ser mais evidenciada.
A vida política brasileira tem evidenciado que se é muito importante a “ficha limpa”, mais importante ainda é conhecer bem as candidaturas para ver quem está mais comprometido com o “mercado” e quem está mais comprometido com a dignidade da vida. A fichas de muitas candidaturas podem até estar limpas, mas suas propostas são contra os interesses da vida da população.
Além do que denuncia, a nota acerta também no final onde há uma importante exortação às comunidades eclesiais a assumirem “a dimensão política da fé” pois muitos cristãos ficam presos apenas às atividades internas nas igrejas e esquecem que é fundamental nos envolvermos na luta por saneamento básico, por escolas de qualidade, por hospitais. Numa igreja ministerial, teremos aqueles e aquelas que se dedicarão aos diferentes ministérios. Se na minha fé acredito que existe um Deus que eu chamo de “Pai Nosso”, isso tem implicações em como devo pensar a política. Uma política que não cuida de cada pessoa e de nossa “casa comum” não é uma boa política.