Por Marcos Arruda |
Os dirigentes da Europa e a grande mídia insistiram em mostrar suas garras: a vontade do povo grego, expressa no referendo de domingo passado, não lhes importa à mínima. A ameaça de expulsão da Grécia da zona do euro prevaleceu, e o governo Syriza recuou. A primeira ministra da Alemanha fez uma proposta macabra ao eurogrupo. Ela falou em quebra da confiança e insistiu em condições já rejeitadas pelo povo grego. Uma vez mais, é a ditadura do grande capital financeiro armada para esmagar a democracia das ruas.
O novo acordo imposto pelo eurogrupo e assinado pelo primeiro-ministro Tsipras virtualmente retira da Nação grega o direito à soberania. A vitória dos credores, a meu ver, é uma vitória de Pirro. Perdem todos. Perde o povo grego, que vai experimentar ainda mais empobrecimento, mau viver e subordinação a poderes externos. Perde o governo Syriza, que aceitou os termos da Troika e o novo memorando, depois de ter sido eleito em janeiro de 2015 com base na postura de que para a Grécia Troika e memorando terminavam ali. Perde a Europa, que trata uma nação-irmã como pária, quebrando o preceito da solidariedade e da partilha dos custos da recuperação. E perde a família humana, ferida pela execração de um povo por uma crise provocada pelas próprias elites financeiras globais. Os prognósticos são, pois, os piores possíveis.
A proposta alemã
No dia 11.7, sábado, Merkel, com postura de general da Europa, apresentou as condições que desejava impor à Grécia:
1. recusar a proposta grega, que incluía 53,5 bilhões de euros para cobrir as dívidas até 2018;
2. exigir que 50 bilhões de euros de ativos gregos sejam congelados num ‘fundo fiduciário’ fora da Grécia, como garantia para os novos empréstimos;
3. exigir que as receitas das privatizações do pacote vão para o pagamento dos juros da dívida pública grega;
4. se não houvesse acordo, que a Grécia seja expulsa da zona do euro por pelo menos cinco anos.
O acordo assinado
O acordo assinado ao fim das negociações de ontem inclui o congelamento de ativos gregos, mas situa o fundo fiduciário na Grécia, e não no Luxemburgo, como queria Merkel. Prevê a utilização das receitas das privatizações do patrimônio público de modo diferente da proposta alemã: 1/4 das receitas será investido na Grécia, 1/4 será usado para pagar os juros, e a metade restante irá capitalizar os bancos gregos. Tais concessões não mudam a substância perniciosa da proposta do eurogrupo.
As ‘novas’ medidas de austeridade, segundo a imprensa europeia, são piores que as que foram rejeitadas pelo povo grego no referendo de nove dias atrás:
1. aumentar dos impostos para companhias de transporte marítimo;
2. unir todas as taxas de valor agregado no padrão de 23%;
3. cancelar a renda básica solidária para pensionistas até 2019;
4. cortar 300 milhões de euros nas despesas de defesa até 2016;
5. privatizar os portos e liquidar as ações que ainda são estatais da OTE, gigante das telecomunicações;
6. retirar a isenção de 30% das ilhas mais ricas.
O acordo é invasivo, viola a soberania da Grécia e fere gravemente sua capacidade de gerar receitas do orçamento para as necessidades da economia doméstica e da população a quem esta economia deve servir. Impede o país de gerar excedentes e de pagar num ritmo sustentável o que tem que pagar aos credores. Noutras palavras, pretende perpetuar a sangria financeira da Grécia, como a de todos os países endividados.
Perguntas que a Comissão da Verdade tenta responder
Mas as perguntas mais gritantes ninguém consegue calar: como foi possível que a dívida pública grega, que equivalia a 129% do PIB em 2010, passou para quase 180% do PIB atualmente, tendo o país sofrido os pacotes de austeridade impostos pelos credores ao longo destes 9 anos em troca de empréstimos bilionários da Troika, cuja justificação era o pagamento da dívida pública? Aonde foi este dinheiro? Que contrapartida teve a Nação grega em troca desta dívida?
No fim de junho, o Parlamento grego havia recebido os resultados preliminares da auditoria iniciada pela Comissão da Verdade sobre a Dívida Pública, que apontava os seguintes fatos:
1. Entre 2001 e 2009 os maiores endividados foram as famílias (aumento de sete vezes no período) e as empresas (aumento de quatro vezes), ao passo que a dívida pública aumentou apenas 20%.
2. Na crise de 2008, o governo grego avançou 28 bilhões de euros para resgatar o setor bancário privado. Dada a insuficiência deste montante, os juros escalaram. Iniciou-se uma campanha de desinformação sobre a dívida pública, com base na falsificação das estatísticas, agravando assim o déficit e a dívida pública. Foi entre 2010 e 2015 que a dívida pública grega explodiu. Justamente no período dos programas de austeridade e megaendividamento.
3. Em 2010 o FMI circulou um documento confidencial, ao qual a Comissão teve acesso em 2015, antecipando o futuro da Grécia no caso de implementação do plano de austeridade: corte de salários e pensões, queda do PIB e aumento exponencial da dívida pública, gerando um alto custo econômico e social, e a insustentabilidade dos pagamentos.
4. Mesmo ciente destas desastrosas consequências do pacote de ‘resgate’, na verdade uma receita de desastre, o FMI não reteve a Troika. O retardamento da reestruturação da dívida deu tempo aos bancos credores de se livrarem do ‘risco grego’, engendrando um mecanismo que privilegiava os grandes credores privados, que tiveram amortecidos os custos da operação.
5. Um dos efeitos do pacote foi a perda de mais de 50% dos ativos dos fundos de pensão gregos, que atingiu 15 mil pequenos pensionistas.
6. O pagamento de 100% do valor de face dos títulos equivalentes a 4,2 bilhões de euros, exigido do governo grego pelo BCE em julho e agosto é abusivo, pois esses títulos foram comprados a preço deprimidos no mercado secundário em 2011.
Em suma, o aumento exponencial da dívida pública parece ser o resultado de um esquema secreto que em última instância beneficia os credores, sobretudo os bancos privados.* Este esquema inclui a tomada de empréstimos para pagar juros. Esta prática foi condenada como criminosa pela legislação internacional; resulta em aumento inconsequente da dívida pública, enriquecimento ilícito dos credores e redução sistemática da capacidade de investir e estimular a economia doméstica por parte do país devedor. A Comissão estima que mais da metade da dívida pública grega provém daí.
É surpreendente que a postura do governo Syriza durante a negociação não parece ter-se apoiado nos achados da Comissão da Verdade sobre a Dívida Pública. Por que Tsipras jamais mencionou o relatório preliminar da auditoria, apresentado por dois dos membros estrangeiros da Comissão, o belga Eric Toussaint e a auditora brasileira Maria Lucia Fattorelli? Por que Tsipras jamais questionou a legalidade da dívida pública, nem o fato de ela ter aumentado exponencialmente ao longo dos últimos anos de austeridade imposta pela Troika? Isto teria levado as negociações para um outro terreno, colocando o eurogrupo na defensiva e enfraquecendo a ameaça de exclusão da Grécia da zona do euro. Por que Tsipras não lembrou a Merkel a posição grega em 1953 de apoiar o cancelamento de metade da dívida alemã relativa à destruição e massacre que os nazistas alemães perpetraram nos seis anos de guerra total de conquista? Por que Tsipras não propos que se adotasse para a Grécia o mesmo ritmo de pagamentos concedido à Alemanhã em 1953 – apenas 3% das receitas anuais das exportações?
Negociação foi draconiana
O blog Bloomberg, estadunidense, referindo-se ao eurogrupo, traz o título “Cúpula Europeia da Tortura”. Tsipras disse que o processo foi mais uma inquisição do que uma negociação. Ele também afirmou ao eurogrupo que “não tinha o mandato de vender a metade do país.” Mas depois de assinar o acordo, tendo obtido concessões apenas táticas, de detalhe, disse, segundo The Guardian, jornal inglês, que tomaria iniciativas contra qualquer um que se rebele contra a decisão súbita de ter-se curvado às forças econômicas externas. Isto soa estranho vindo de um governante comprometido com a democracia autêntica – aquela em que o protagonismo do povo é praticado e respeitado.
Tendências
O texto do acordo assinado por Tsipras, em nome do governo grego, terá que passar pelo Parlamento grego amanhã, quarta 15.7. Até agora, o Parlamento tem se posicionado em defesa da soberania e da dignidade da Grécia. É o Parlamento que está promovendo a auditoria através da Comissão da Verdade sobre a Dívida Pública. Sob a liderança do partido Syriza, o Parlamento parece sintonizado com a indignação e as aspirações da maioria da população.
Existe a possibilidade de um recuo do executivo grego para unificar-se com o Parlamento, caso a opção deste seja alinhar-se com o voto popular. Existe também a possibilidade de um racha no Syriza. Panagiotis Lafazanis, líder da plataforma de esquerda e membro proeminente do Syriza, lançou uma declaração pública conclamando o Executivo a unir-se com o Legislativo na recusa dos termos do acordo, e na busca de um caminho soberano para a Nação Grega.
Será que Tsipras ficará no governo que vai implementar um plano capaz de subordinar da Grécia à ambição dos credores, e vai impor uma austeridade que pretende esmagar a população e liquidar o que resta do patrimônio público da Grécia – justamente aquilo que Tsipras e o governo por ele liderado têm condenado há tanto tempo?
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* “Tragédia grega esconde segredo dos bancos privados”, Maria Lucia Fattorelli, em auditoriacidada.org.br
Marcos Arruda é socioeconomista e educador do PACS, da Rede Jubileu Sul, e associado do Instituto Transnacional (Amsterdam)