Adital. Por Júlia Mello Neiva e Sif Thorgeirsson*
Megaeventos esportivos colocam em evidência os países onde são realizados e atualmente esta atenção está voltada para o Brasil. O país está hoje a menos de 500 dias de sediar os Jogos Olímpicos de 2016 na cidade do Rio de Janeiro. Os Jogos do Rio começarão apenas dois anos após o Brasil ter sediado a Copa do Mundo da FIFA, de 2014. Esta é apenas a segunda vez que um país realiza sucessivamente dois eventos deste porte: a primeira vez foi nos Estados Unidos com a Copa do Mundo de 1994, seguida pelos Jogos Olímpicos de 1996.
Os grandes projetos de infraestrutura necessários para sediar megaeventos esportivos como a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos trazem à tona uma série de questões relacionadas aos direitos humanos. Com os preparativos para os Jogos do Rio em andamento, as remoções forçadas, o trabalho escravo, a discriminação e a repressão violenta de manifestantes que acompanharam a Copa do Mundo estão ainda vivas na memória de grande parte da população brasileira.
Além de atletas de elite, turistas e representantes dos meios de comunicação, como ocorreu na Copa, o próximo grande evento esportivo do Brasil trará ao país investidores e patrocinadores de empresas do mundo inteiro. E, da mesma forma que a Copa do Mundo, é previsível o enorme impacto que estas empresas podem causar aos direitos humanos.
A recente popularidade do Brasil como anfitrião de grandes eventos esportivos é apenas uma das razões pelas quais o Centro de Informação sobre Empresas e Direitos Humanos decidiu realizar, em março último, visita ao país. Queríamos saber o que tem sido feito para responsabilizar legalmente empresas em relação a abusos de direitos humanos, bem como identificar o que é necessário para avançar neste tema.
Durante a visita, além de encontros com advogados, membros da sociedade civil e jornalistas, co-organizamos um evento com a Conectas e Justiça Global. Convidamos ativistas da defesa dos direitos humanos de diferentes partes do país para discutir possibilidades e estratégias de sucesso para responsabilizar empresas por abusos de direitos humanos. Também tínhamos como intuito discutir sobre os desafios que os ativistas enfrentam.
Duas questões se destacaram durante essa visita: os esforços para erradicar o trabalho forçado e a escravidão moderna e o impacto de grandes projetos de infraestrutura e extrativistas em comunidades locais.
Trabalho Forçado e Escravidão Moderna
Recente campanha, da Walk Free em parceria com a Repórter Brasil e Comissão Pastoral da Terra, identificou condições análogas às de escravos na construção civil. Os trabalhadores estavam alojados em condições deploráveis, em regime de servidão por dívida e, alguns, nunca haviam recebido salário. O Centro de Informação sobre Empresas e Direitos Humanos convidouas empresas responsáveis a responder sobre as acusações. Anglo American, Brookfield, Emccamp, MRV e Racional responderam. A OAS não respondeu. Durante as obras de ampliação do Aeroporto de Guarulhos visando a Copa do Mundo, a OAS foi também acusada de contratação de trabalhadores sob condições análogas às de escravos. Inicialmente, a empresa negou as acusações. Posteriormente, oMinistério Público do Trabalho firmou acordo com a empresa impondo multa de R$ 15 milhões e melhoria nas condições laborais.
O Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) mantém uma lista de empresas que se beneficiaram de mão de obra escrava – a “lista suja”. A inclusão de empresa nesta lista implica: proibição de participar de contratos com entes estatais, limita o acesso a crédito e financiamento público e desencoraja outras empresa a fazer negócios com elas. O governo brasileiro e a comunidade internacional, incluindo a ONU, têm usado a “lista suja” como ferramenta eficaz para responsabilizar empresas por uso de trabalho escravo e também como forma de controle, posto que torna mais transparentes as práticas trabalhistas das empresas.
É inequívoco que a “lista suja” se consolidou como importante instrumento para as empresas reverem e melhorarem suas práticas trabalhistas. Contudo, nem o governo tampouco a sociedade civil devem ser complacentes. No final de 2014, porém, uma associação de empresários propôs ação junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) questionando a constitucionalidade da “lista” e requerendo ao MTE a suspensão de sua publicação. Foi concedida liminar e a publicação da lista, suspensa.
Esta foi uma medida agressiva por parte das empresas para destruir uma ferramenta destinada a promover transparência e responsabilização. Em março deste ano, a Repórter Brasil obteve, por meio da lei de acesso à informação, dados que possibilitaram divulgar uma lista suja não oficial. ASecretaria de Direitos Humanos da Presidência da República apoiou publicamente a estratégia da Repórter Brasil de solicitar a publicação da “lista” nos termos da constituição e da lei de acesso à informação.
A ação judicial questionando a constitucionalidade da “lista” ainda está pendente. Em 13 de março, a Repórter Brasil, em conjunto com a Conectas, defendeu a continuação da utilização da “Lista Suja”perante o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. As organizações também pediram que o Relator Especial da ONU sobre formas contemporâneas de escravidão visitasse o Brasil para avaliar o impacto da decisão do STF sobre a luta contra o trabalho escravo.
No início de abril, a “lista suja” tornou a ser publicada oficialmente após o MTE emitir nova portaria nos termos dispostos na decisão do STF, garantindo o devido processo legal das empresas.
Grandes projetos de infraestrutura e extrativistas
O Brasil possui a maior mina de minério de ferro do mundo, além de um setor hidrelétrico em rápido crescimento, com muitas barragens e outros grandes projetos de infraestrutura previstos para construção. Os advogados que trabalham com as comunidades afetadas por estes tipos de projetos enfrentam enormes obstáculos ao tentar proteger os direitos das comunidades. A título de exemplo, no Maranhão, o Projeto Carajás da Vale dispõe de uma ferrovia que atravessa 27 municípios, conectando as minas até o porto em São Luiz. A linha férrea cruza áreas ambientais protegidas e afeta mais de dois milhões de pessoas. Advogados das comunidades observam que as instituições jurídicas precisam de fortalecimento para que torne eficaz a proteção das comunidades. Danilo Chammas, advogado da Justiça nos Trilhos, destacou em entrevistaque “aqueles que buscam resistir,…que buscam lutar pelos seus diretos, por encontrar formas de minimizar os impactos, as violações, também sofrem consequências…Então, isso tudo também é mais um desafio para aqueles que estão ali, como eu, buscando o reconhecimento desses direitos e da responsabilidade das empresas e do Estado por suas ações. Algumas pessoas acabam sendo perseguidas, processadas e também vigiadas”.
Comunidades das áreas onde há projetos hidrelétricos lutam para assegurar a proteção de seus direitos. A barragem de Belo Monte, maior usina hidrelétrica em construção no mundo, tem sido objeto de litígio devido aos impactos socioambientais sobre aqueles que dependem dos rios, como as populações indígenas e outros grupos. O Movimento dos Atingidos por Barragensconstatou que o início das obras – e, em alguns casos, até sua própria operação – efetivam-se antes mesmo da aprovação das licenças. Não raro, comunidades deixam de receber a devida compensação, seja por empresas ou pelo poder público.
Outra questão relevante, a vigilância por parte das empresas de pessoas que trabalham protegendo as comunidades, tem sido mais frequente, em especial nas obras de infraestrutura e no setor extrativista. Por exemplo, a Vale foi acusada de espionagem em relação à Justiça nos Trilhos e ao Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. Muitos ativistas com os quais nos reunimos acreditavam que suas comunicações estavam sendo monitoradas: frequentemente participam pessoas das reuniões das comunidades sem que estas se identifiquem como representantes das empresas.
A pouco mais de um ano dos Jogos do Rio, estes problemas se intensificarão. A atenção internacional estará preocupada com os impactos negativos das empresas aos direitos humanos dos brasileiros. O empoderamento das comunidades para a proteção de seus direitos humanos e a responsabilização das empresas em relação a abusos a tais direitos ajudará a assegurar que o desenvolvimento do Brasil não seja feito à custa dos mais vulneráveis, mas que verdadeiramente beneficie os grupos pobres e marginalizados.
*Centro de Informação sobre Empresas e Direitos Humanos, maio de 2015