Por João Vitor Santos | Instituto Humanitas Unisinos
No Brasil de hoje, a ideia de privatizações voltou a habitar o imaginário sob o argumento de que o Estado mínimo é muito mais eficiente e que deve se preocupar com as ditas atividades essenciais, como saúde, educação e segurança. Esse é o argumento que na década de 1990 trouxe uma onda de privatizações e que, agora, vem sendo reeditada com o nome de “concessões públicas”. São casos como o de aeroportos e as ameaças às grandes estatais, como a Petrobras. Assim, essa nova onda liberal se anuncia como via para enfrentar crises econômicas. Mas será capaz de encarar o problema das desigualdades, muito além das econômicas? Para o economista e professor da Unisinos Márcio Eloir Schweig, talvez não. Ele baseia seus argumentos na leitura que faz da obra do economista britânico Anthony B. Atkinson, Desigualdade. O que pode ser feito? (São Paulo: LeYa, 2015). “O autor faz propostas para enfrentar as desigualdades e percebemos que suas sugestões, na realidade do Brasil, vão no sentido contrário do que temos visto na prática”, destaca.
Márcio Eloir Schweig apresentou o livro de Atkinson como atividade dentro dos ciclos de estudos promovidos pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, A contemporaneidade em debate: intérpretes e obras e Desigualdades no contexto econômico brasileiro, que segue com atividades até 7 de novembro. Ele explica que o autor faz um diagnóstico baseado na realidade econômica da Europa dos anos 2000, mas que inspiram reflexões acerca da situação de países como o Brasil. “Seu diagnóstico aborda diferentes tipos de desigualdades, como as de gênero, étnicas, diante de leis e do poder etc., mas faz isso através de um olhar econômico e social. Por isso usa o Índice de Gini para diagnosticar a desigualdade”, explica.
Depois de um primeiro capítulo em que traz cenários, Atkinson começa a listar propostas para enfrentar as desigualdades. São 15 ao todo, que o professor Schweigrecupera em detalhes e traz para o contexto local. Nesse movimento, fica claro que as propostas do britânico têm como pano de fundo o fortalecimento do Estado, como um mediador que vai intervir sempre que necessário para diminuir as desigualdades. “No Brasil, vemos políticas que vão no sentido contrário. Todos defendem menos Estado, menos intervenção”, pontua. “O que precisamos é estar atentos ao fato de que há interesses por trás desse discurso. São interesses que não pensam no bem público, apenas no bem individual, pois muito poucos realmente ganham com isso”, completa. É o caso de rentistas, especuladores do mercado financeiro que, no Brasil da recessão, são os únicos que veem os rendimentos crescerem.
Tecnologia sim, mas com emprego também
Uma das propostas de Atkinson aborda o que tem sido chamado de revolução 4.0 e seus impactos no mundo do trabalho. Para ele, é necessário fomentar o desenvolvimento tecnológico que não elimine postos de trabalho, transformando o emprego, mas com garantias de que as pessoas vão conseguir acessar essas atividades. Isso passa por conceber todo o financiamento público em tecnologia com estratégias que assegurem a empregabilidade, tendo o ser humano sempre como central. “Até porque, no sistema capitalista, o consumo está no centro. E todos querem otimizar seu lucro, tanto empregado como empregador, mas o segundo tem muito mais poder de barganha. Assim, otimiza sua produção com tecnologia, mas isso implica em redução do emprego”, avalia Schweig.
No Brasil, podemos pensar em inúmeros exemplos de empresas que conseguem financiamento para investir em tecnologia de produção, mas sem nenhuma preocupação com a manutenção do emprego. Veja o exemplo da automação das montadoras de veículos e mesmo a automatização de plantas industriais como frigoríficos e de beneficiamento de outras matérias-primas. Para Schweig é, sim, dever do Estado selecionar para quem vai emprestar dinheiro público. “Vemos muitas empresas que recebem financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento – BNDES, por exemplo, mas que retorno dão para a sociedade? É preciso pensar mais em benefícios públicos e não só privados”, analisa.
Outra proposta do economista britânico passa pelo fortalecimento do Estado, que tem o papel de intervir para evitar a concentração produtiva. Essa concentração, de forma livre, gera quase o que conhecemos por monopólios. “A política pública tem que equilibrar isso, segundo ele, porque tem poder de produção e de mercado para fazer frente ao alto custo que se cobra pelo que se produz nessas situações de concentração”, explica. No Brasil, um caso muito emblemático é o do setor bancário. “Os cinco maiores bancos detêm 85% das transações do país, eles dão as cartas. Não é à toa que o Itaú, por exemplo, nos seis primeiros meses do ano lucrou 6 bilhões mesmo em todo esse contexto de crise no Brasil”, destaca.
Proteção a jovens e crianças
As propostas do economista britânico ainda abordam a reorganização tributária para que, de fato, quem ganha mais possa pagar mais imposto, além de mudar a perspectiva de taxação de fortunas advindas de heranças e ou doações. Mas o professor Schweigchama atenção para duas sugestões que vão na direção de uma ideia de renda básica para todos. Numa delas, o britânico fala em dotação de capital para todos os que cheguem à fase adulta, no início da sua vida produtiva. Seria uma espécie de gatilho para que todos os jovens trabalhadores pudessem começar sua vida laboral com capital que lhes permitisse fazer escolhas. Mais adiante, na maturidade e estabilidade produtiva, esse investimento voltaria ao Estado. “Imagine um jovem pobre recebendo essa doação e se colocando no mesmo nível de outros jovens. Aí, sim, parece justo falarmos em meritocracia”, avalia.
Noutra proposta apresentada no livro, o foco são os bebês. Toda família, ao ter filhos, receberia um benefício a ser tributado como renda. “Quem tem mais condições pagaria mais sobre esse benefício, pois isso se somaria a sua renda no cálculo do imposto que teria de pagar e os mais pobres sequer atingiriam a renda a ser tributável, mas teriam como assegurar condições básicas, como alimentação, para o desenvolvimento dessa criança”, explica. O professor lembra que essa proposta lembra iniciativas brasileiras como Bolsa Família, mas num nível mais sofisticado de financiamento que manteria a saúde do programa. Mas o foco não fica só nos bebês e nos jovens, o britânico também pensa em ofertar renda para crianças em idade escolar, muito parecido com o brasileiro Bolsa Escola, só que também com grau de sofisticação que garantiria o acesso universal ao benefício sem comprometer as contas públicas.
Quando o Estado se afasta, chega a crise
O professor Márcio Eloir Schweigelogia o trabalho de Anthony B. Atkinson e diz que deve servir de inspiração não para aplicação dura de suas ideias, mas para pensar os desafios das realidades locais e também pensar a partir de um contexto histórico. “O autor leva a pensar nas suas propostas e para isso olhar para a história do século XX. Ele aponta que em todos os movimentos em que o liberalismo imperou, acabamos indo parar em crises. Foi assim nos Estados Unidos em 1929, uma situação que só começou a se reverter ao longo dos anos 1930 com o New Deal”, analisa. E completa: “através de Atkinson podemos ver que todas as maiores crises ocorreram quando o Estado se afasta da economia”.
É por isso que o professor provoca a pensar mais criticamente a onda liberal privatista. “Aqui, no Brasil, vemos duas situações: ou se privatiza, vendendo tudo, ou se entrega para concessão. Agora, observa que quando a empresa que detém a concessão encontra dificuldade, ela vai buscar o apoio justamente no Estado”, destaca. Para Schweig, esses não são mecanismos que enfrentam as desigualdades e são, na realidade, “mecanismos de transferências de recursos públicos para fins privados”. Sendo assim, vendendo ou entregando bens estatais ao setor privado e depois ainda emprestando dinheiro, é quase inevitável faltar dinheiro para financiamento de ações de interesse público, como investimentos em saúde, educação e segurança. “A Petrobras, por exemplo, investiu no desenvolvimento de tecnologia de ponta para exploração de petróleo em águas profundas. Agora que se sabe como explorar isso, se entrega, se privatiza a estatal”, provoca.
Márcio Eloir Schweig
Graduado em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Santa Maria – UFSM, mestre em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Federal do Paraná – UFPR, atualmente é professor na graduação e pós-graduação da Unisinos. Trabalha com temas como cenários econômicos nacionais e internacionais, conjuntura econômica, economia internacional, internacionalização de empresas e investimento estrangeiro direto. Entre suas publicações, destacamos Medidas da atividade econômica(In: Márcio Eloir Schweig. (Org.). Conjuntura econômica brasileira e internacional. São Leopoldo: Unisinos, 2011) e Conceitos fundamentais de microeconomia (In: Gisele Spricigo. (Org.). Economia introdutória. São Leopoldo: Unisinos, 2010).
Quem foi Anthony B. Atkinson?
Economista britânico, pesquisador sênior do Nuffield College, de Oxford, e professor do Centennial na London School of Economics. Atkinson, que faleceu em 2017, estabeleceu virtualmente sozinho o moderno campo britânico de estudos de desigualdade e pobreza, trabalhando com o tema por mais de quatro décadas. Foi professor de Thomas Piketty, jovem economista francês que se tornou figura de destaque internacional com seu livro O Capital no século XXI (2013), que revela que, nos países desenvolvidos, a taxa de acumulação de renda é maior do que as taxas de crescimento econômico.
Entre os últimos livros publicados de Atkinson, estão Public economics in an age of austerity (New York: Routledge, 2014) [Economia pública em uma época de austeridade, em tradução livre], Top incomes: a global perspective (Oxford: Oxford University Press, 2010) [Principais rendimentos: uma perspectiva global, em tradução livre], escrito em parceria com Piketty, e The changing distribution of earnings in OECD countries (Oxford: Oxford University Press, 2008) [A mudança na distribuição de lucros em países da OCDE, em tradução livre].