Por Pe. Alfredo J. Gonçalves
Escrevo desde Manila, capital das Filipinas. Nesta cidade e neste país, não é difícil lembrar o Brasil. Um giro pelas ruas desta cidade não difere muito de uma caminhada pelos subúrbios das capitais dos estados brasileiros. De fato, tanto lá como cá, não faltam riquezas naturais e tampouco falta um povo disposto a trabalhar. Certo, os recursos brasileiros, bem como sua estrutura agrícola e industrial se sobrepõem consideravelmente ao que se encontra por aqui. Mas os dois países possuem algo em comum: em ambos verifica-se um crescimento desigual que favorece os extratos pertencentes às classes dominantes, em detrimento da imensa maioria da população. Disso resulta um panorama de flagrantes contrastes socioeconômicos, visíveis a olho nu, seja nos bairros de Manila e Cebu, do lado oriental, seja na paisagem urbana de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte ou Salvador, do lado ocidental. Os contrastes se agravam de passamos da cidade para a zona rural, onde o agronegócio disputa espaço com os pequenos produtores. De forma que a obra clássica de Roger Bastide – Brasil, país de contrastes – não deixa de ser um retrato verdadeiro também deste lado do planeta.
Surpreende o fato de que, em termos percentuais, o crescimento das Filipinas demonstra uma performance melhor que a do Brasil, não obstante este último ser considerado um dos países emergentes (grupo BRICS – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). O crescimento atual da economia Filipina quase se equipara aos vizinhos Taiwan, Hong Kong, Singapura, lembrando apenas alguns dos chamados “tigres asiáticos”. Entretanto, a exemplo do que ocorre em terras brasileiras, os números de tal desempenho não se refletem na infraestrutura de estradas e ferrovias, na rede de comunicação, nos transportes públicos razoavelmente confortáveis, no sistema educacional e sanitário, e menos ainda na segurança, habitação… Enfim, num nível de vida condizente com a riqueza do solo e a historia de seu povo. Mais uma vez, os números do crescimento nacional contrastam vivamente com o rosto desfigurado de não poucos de seus cidadãos que fazem o possível e o impossível para sobreviver.
O assunto e conhecido e notório: o resultado do trabalho coletivo se acumula em poucas mãos, gerando, ao mesmo tempo, concentração de renda e riqueza, no andar de cima, e pobreza e exclusão social, no andar de baixo. Neste caso, tanto as Filipinas como o Brasil se bifurcam e se distanciam das economias administradas com princípios sociais mais sólidos, justos e igualitários, tais como a Coreia do Sul e o Japão, para citar tão somente dois exemplos do oriente. No limite, através de impostos e taxas, a população não apenas sofre o ônus de um desenvolvimento doentio e discrepante, mas também paga seu bônus, o qual conflui para as contas bancárias dos poderosos, da mesma forma que as águas de um rio correm para o mar. Desta doença crônica, como sabemos, também sofrem os países emergentes.
Qual o entrave desse abismo entre ricos e pobres? Onde se encontra o nó da questão? Dois motivos podem ser sublinhados. Um de caráter histórico e outro de natureza estrutural. Do ponto de vista histórico, Brasil e Filipinas nasceram e cresceram como colônias de metrópoles europeias, depois substituídas por outras potencias como Estados Unidos, Japão e China. Desenvolveram uma economia e uma cultura de costas voltadas para o próprio povo: suas riquezas naturais, como também o fruto do trabalho de seus povos, foram sempre carreadas para as necessidades dos impérios internacionais de plantão. Entre a metrópole e a colônia, construiu-se uma via de mão única, no que diz respeito ao destino da riqueza. Por longos séculos surgiram e se mantiveram como países fornecedores de matérias-primas para os países centrais industrializados, perpetuando-se como economias periféricas e subdesenvolvidas. Não é difícil concluir que a colonização, antiga ou moderna, deixa marcas que ainda sangram como feridas mal cicatrizadas.
Ao lado e em correspondência com essa razão histórica, porém, consolidou-se uma formação estrutural injusta e viciada que distorce qualquer tipo de crescimento econômico. De tal forma que este, por mais robusto e continuado que seja, aprofunda a distancia entre o topo e a base da pirâmide social, ao mesmo tempo em que, do ponto de vista cultural, cria “valores” igualmente distorcidos. Paralelo a isso, histórica e estruturalmente, desenvolve-se uma elite nacional aliada das potenciais estrangeiras e estranha (para dizer o mínimo) a população nativa. População que, contraditoriamente, e chamada a consumir os produtos da metrópole e, ao mesmo tempo, proclamar um falso nacionalismo que tem como objetivo manter no poder tais elites, únicas beneficiárias do progresso tecnológico. Dito de maneira mais clara, enquanto a riqueza do crescimento econômico se privatiza, seus custos são socializados.
Esse tem sido um tema recorrente na Doutrina Social da Igreja. Dois grandes destaques são a Constituição Pastoral do Concilio Vaticano II Gaudium et Spes (1965) e a Carta EncíclicaPopulorumProgressio (1967), dois documentos geminados, como dois capítulos de uma única obra, ambos fortemente marcados pela lucidez do então Papa Paulo VI. Este, desde os anos de 1960, denunciava o estridente descompasso entre o progresso tecnológico e o crescimento econômico, de um lado, e, de outro, a falta de desenvolvimento integral. Semelhante desenvolvimento constitui “o novo nome da paz”, escrevia o pontífice. Suas denuncias, infelizmente, continuam mais vivas e atuais do que nunca. Tanto que não deixam de reaparecer com igual veemência profética nos escritos de João Paulo II e de Bento XVI, bem como nas palavras simples, mas diretas do Papa Francisco.
Permanece aberta a pergunta que não quer calar: até quando essa discrepância entre crescimento e desenvolvimento? Até quando as benesses do progresso tecnológico se concentrarão num punhado de bilionários, enquanto a miséria, a fome e a subnutrição no mundo atingem quase um bilhão de seres humanos? Isso para não falar da fuga de milhões de pessoas em busca de melhor futuro ou do desperdício de alimento atirado diariamente no lixo! Eis uma verdadeira bomba atômica, silenciosa, mas letal, que mata e faz desaparecer os próprios cadáveres.
Manila, Filipinas, 23 de fevereiro de 2014