Por Paulo Passarinho.
Chávez saiu da vida e entrou para a história, em um momento extremamente delicado para as experiências em curso, na América Latina, de superação da herança neoliberal, decorrente das reformas antinacionais implementadas nos anos 1990.
A delicadeza do atual momento se relaciona às dificuldades econômicas que a crise internacional coloca para os nossos países, e, também, pela permanente pressão e influência da política externa dos Estados Unidos, em nossa região.
De uma forma genérica, os governos que emergiram a partir do final da última década do século XX em boa parte dos nossos países, com vitórias eleitorais contra os defensores das mudanças de figurino liberal, procuraram, sob o ponto de vista econômico e social, reagir aos desequilíbrios existentes com o fortalecimento ou criação de programas de transferência de renda aos setores mais pobres de nossas sociedades.
Afora as peculiaridades do posicionamento político de cada um desses governos, todos eles assumiram posições reformistas, frente à tragédia social que mergulhou milhões de latino-americanos em mais pobreza e miséria. Do reformismo conservador de Lula ao reformismo revolucionário de Chávez, essa estratégia foi facilitada pelo fato de todos os governos terem se aproveitado da expansão do comércio internacional, que beneficiou os países da região, exportadores de commodities.
O conservadorismo dos governos pós-2002 no Brasil se traduz na manutenção de todo o arcabouço jurídico-institucional do processo de contra-reformas iniciado por Collor e consolidado na era FHC, além da continuidade das linhas mestras da política macroeconômica – imposto ao país no acordo com o FMI, em 1999 – e, ainda que em ritmo mais lento, das privatizações.
Já o reformismo revolucionário de Chávez não se baseou em mudanças estruturais da economia venezuelana, com transformações substantivas no padrão de distribuição de renda, produção e propriedades do país. Apesar das nacionalizações realizadas e do início de um processo de reforma agrária ainda muito tímido, o vigor revolucionário teve como lastro uma engenhosa estratégia voltada para a transformação do quadro institucional do país, em prol de um maior protagonismo popular. Esta é com certeza a maior virtude do legado de Chávez.
Desde a sua primeira campanha à presidência, Hugo Chávez sempre deixou claro o seu objetivo de refundar a república venezuelana. Ao assumir, e referendado em um plebiscito, convocou uma Constituinte exclusiva, livre e soberana, que rebatizou o país como República Bolivariana da Venezuela, em consonância com o espírito de liberdade e fortalecimento da cidadania e do poder popular, encarnados na nova Carta. Além dos três tradicionais poderes, a verdadeira nova república criou dois outros: o Eleitoral e o Cidadão, permitindo entre outras inovações a inédita cláusula constitucional do mecanismo do referendo para a continuidade ou não de um mandato executivo, em meio ao seu exercício, desde que amparado em manifestação formal de um percentual mínimo definido de eleitores. Aboliu o Senado e ampliou os poderes das Forças Armadas e do presidente da República. E, acima de tudo, não temeu o conflito com os segmentos conservadores e muito poderosos do seu país.
Mas, a herança propositiva de Chávez, para a criação de uma nova institucionalidade, não se limitou às fronteiras da sua Venezuela. Coerente com os melhores sonhos de Simon Bolívar, foram propostas e criadas novas instituições voltadas para uma verdadeira integração latino-americana. Integração que se afaste da inspiração do “livre-comércio” e se funde na solidariedade continental, através de políticas coordenadas por nossos Estados Nacionais, para enfrentar e superar estruturas que concentram renda, riqueza e poder em torno de corporações multinacionais.
Instituições como o Banco do Sul, o Conselho de Defesa da UNASUL e a Telesur são exemplos que demonstram que existem caminhos alternativos extremamente importantes e plenamente viáveis. Contudo, essas foram iniciativas que esbarraram especialmente, para a sua plena realização, no reformismo conservador vigente no Brasil.
A proposta mais complexa e abrangente para o Banco do Sul, por exemplo, defendida pelos “bolivarianos”, o concebe como uma instituição com três diferentes funções básicas.
Primeiramente, como um banco de fomento continental – não condicionado pelo interesse das multinacionais, mas por definições relacionadas ao desenvolvimento interno dos nossos países, voltado ao combate das desigualdades. Um banco coordenador e potencializador de uma rede de bancos de desenvolvimento estatais, orientados para um novo modelo de crescimento. Uma segunda dimensão do Banco do Sul o situaria como um embrião de um banco central latino-americano – instância de reservas cambiais da região e instrumento de defesa dos nossos países, em relação às instabilidades financeiras de caráter externo. E uma terceira função do Banco do Sul estaria relacionada à perspectiva de convergência de nossos países para um sistema monetário comum.
Essas proposições sempre encontraram fortes resistências no governo brasileiro, seja pelo comando de Lula ou de Dilma. O caminho trilhado por nosso país não aposta em uma integração regional desse tipo. O governo brasileiro é hoje – inclusive com a forte ação do BNDES – um poderoso articulador dos interesses de multinacionais, de origem brasileira e estrangeira, que enxergam o mercado latino-americano pelas lentes do “livre-comércio”, além de ser particularmente sensível às pressões dos Estados Unidos.
Com relação a essas pressões, encontram-se em curso, por exemplo, negociações entre a Secretaria de Comércio dos Estados Unidos e o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior – sob a coordenação direta do ministro Fernando Pimentel – visando uma proposta de acordos bilaterais entre o Brasil e os Estados Unidos, nas áreas de serviços, investimentos, transportes e tributos. Conforme explicitado pelo próprio ministro, a proposta é que a elaboração desses acordos possam ser discutidos “sem a necessidade de aprovação dos membros do Mercosul”.
Com essa realidade, é evidente e explicável que a proposta bolivariana para o Banco do Sul não tenha encontrado maior apoio por parte do Brasil. Assim como, ao restabelecer um acordo militar com os Estados Unidos, durante o segundo mandato de Lula, e ao boicotar a veiculação da programação da Telesur em nosso país os governos pós-2002 em nada procuraram fortalecer o que de melhor poderia ser desenvolvido, a partir do Conselho de Defesa da UNASUL e de uma rede televisiva de comunicação de massa em nosso continente, alternativa aos oligopólios privados que dominam esse setor.
Porém, o legado das propostas institucionais e transformadoras de Chávez aí está. Esperamos que o amadurecimento das lutas populares e de novas lideranças – que superem a ação da esquerda que sucumbiu no Brasil, pela nefasta influência do lulismo – tenham a capacidade de transformar o que é hoje um sonho em realidade palpável.