Na última segunda-feira (25), a comissão especial criada na Câmara dos Deputados para discutir o projeto de lei 6.299/2002, que propõe alterações na atual legislação de agrotóxicos, aprovou texto que divide opiniões. De um lado, empresários do agronegócio comemoram o parecer do relator Luiz Nishimori (PR-PR) sob o argumento de que moderniza a aprovação e regulação dos pesticidas. Do outro, organizações de promoção à saúde coletiva e defesa do meio ambiente afirmam que o relatório flexibiliza significativamente o processo, o que representa riscos não só aos trabalhadores do campo, mas também aos consumidores dos alimentos expostos aos agrotóxicos.
O pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) do Ceará Fernando Carneiro engrossa o coro do segundo grupo.Integrante do Grupo Temático Saúde e Ambiente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e coordenador do Observatório da Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo, da Floresta e das Águas (OBTEIA), ele garante que as mudanças na lei significam um “retrocesso gigantesco”.
A entrevista é de Anna Beatriz Anjos da Agência Pública
Para Carneiro, um dos pontos mais críticos trazidos pelo texto – que agora vai a plenário – é a centralização das avaliações de novos produtos e autorização de registros no Ministério da Agricultura, em detrimento da estrutura tripartite de regulação – a lei em vigor determina que os ministérios da Saúde e Meio Ambiente também atuem nas análises. “O processo fica concentrado em um órgão totalmente dominado pelo agronegócio, então o risco é de realmente haver a aprovação de substâncias que possam causar todo tipo de problema”, declara.
Eis a entrevista.
Por que o senhor considera que o PL 6.299/2002 represente um retrocesso?
Há 60 anos, Rachel Carson, bióloga norte-americana, escreveu “A primavera silenciosa”, um clássico da literatura ambientalista, que marca o movimento ambiental mundial e ficou muitos meses entre os livros mais vendidos dos Estados Unidos. Teve uma repercussão tão grande que o governo americano criou uma comissão de pesquisas comprovando tudo o que ela havia pesquisado, o que gerou, inclusive, a criação da agência de proteção ambiental nos Estados Unidos. Nós, em 2015, publicamos o dossiê Abrasco, com quase 700 páginas e mais de 60 autores colocando isso. Só que o que a gente vê hoje com esse PL é que, em vez de fazermos um movimento para cuidar da saúde da população e do meio ambiente, estamos vendo exatamente o contrário. O PL é a liberalização, o desmonte do aparato regulatório brasileiro do registro de agrotóxicos, com a perspectiva de permitir, inclusive, que substâncias muito mais danosas à saúde adentrem nosso mercado. Estamos assistindo a um retrocesso gigantesco. Era para estarmos diminuindo, mas estamos potencializando o uso.
Quais riscos – sociais, ambientais e para a saúde pública – essa proposta representa?
Vai ter um impacto direto na saúde do trabalhador, do consumidor brasileiro, da população. Você de repente concentra [o processo de avaliação e aprovação dos agrotóxicos] na agricultura, tirando o papel da saúde e do meio ambiente de olhar a questão por seus ângulos – a saúde pela Toxicologia e o meio ambiente pela Ecotoxicologia. O processo fica concentrado em um órgão totalmente dominado pelo agronegócio, então o risco é de realmente haver a aprovação de substâncias que possam causar todo tipo de problema, tanto de saúde quanto de contaminação do ambiente, o que representa um risco à vida como um todo. Os danos causados pelos agrotóxicos são de várias ordens. Isso que querem chamar de defensivo é um veneno, causa efeitos imediatos e crônicos, desde câncer e até diminuição de QI em crianças. Isso para não falar nos impactos na cadeia alimentar, na nossa fauna. É muito grave o que está acontecendo.
O uso de agrotóxicos ainda parece um tema distante na realidade urbana – não são todos os consumidores que se preocupam com isso quando vão ao mercado, por exemplo. Quais os riscos à saúde desse consumidor final?
Para fazer estudos de seguimento e analisar essas questões, pode-se levar 20, 30 anos. São estudos caros e complexos; há a carga hereditária e a carga ambiental de doenças, é necessário que os estudos controlem esses fatores. Mas isso não tem sido prioridade na ciência brasileira. O agronegócio capitaliza o lucro e socializa o prejuízo: emitir uma amostra de agrotóxico no ambiente pode custar mil reais, e poucos laboratórios fazem isso no Brasil. Estamos liberando uma substância que não temos a capacidade de monitorar e vigiar. É caro e o ônus fica para o setor público – o ônus da pesquisa, da vigilância –, enquanto eles capitalizam em cima disso – e a maior parte dos agrotóxicos no Brasil nem paga imposto, em vários estados eles têm 100% de isenção. O que já se fez nesse sentido foi por meio da Anvisa, através do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos [PARA]. A série histórica que apresentamos no dossiê da Abrasco [com base em dados da Anvisa] dos últimos dez anos mostra que 70% dos alimentos consumidos pelos brasileiros têm uso agrotóxicos e 30% estão irregulares. Então, pelo menos, um terço do que a gente come está fora do padrão, ou seja, tem potencial de dano. Recentemente eles mudaram para essa metodologia de avaliação de riscos e, de um ano para o outro, de repente, esses 30% viraram 1%. A substância é carcinogênica, mas na avaliação de risco, que o PL quer implantar, você tem premissas. Quais são elas? A pessoa vai estar com luva e com máscara. Estando com isso, o risco é aceitável. Agora, vamos olhar para a realidade do Brasil. Como é possível aceitarmos premissas desse tipo sendo que o trabalhador não usa [as proteções], é caro, o patrão não paga o equipamento, que também não é adequado à nossa realidade, é quente. A premissa da avaliação de risco é que tudo isso está funcionando muito bem, cabe tudo no modelo teórico. Esse é o cavalo de troia desse projeto de lei: mudar de avaliação de perigo para avaliação de risco.
Outra questão apontada como delicada pelos críticos do projeto é a criação do registro temporário para produtos que já sejam registrados em pelo menos três países membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e que obedeçam ao código da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO). Você pensa da mesma forma?
Estão dizendo que existe uma tal burocracia, que leva-se até oito anos para obter o registro de um agrotóxico no Brasil, mas isso é fake news porque compara a estrutura de países como Brasil e Estados Unidos. Na Anvisa há 20 ou 30 técnicos para analisar os pedidos de [registro] de agrotóxicos, na FDA [Food and Drugs Administration], a similar norte-americana, são 700. Aqui uma empresa paga poucos mil reais para fazer o processo de registro, nos Estados Unidos pode chegar a um milhão. A fila aqui é grande porque não se investe na capacidade de órgãos reguladores e porque é barato registrar, sendo que o registro é eterno – para você tirar um produto de circulação, tem que fazer uma reavaliação a partir de denúncia etc. O registro temporário é para forçar a barra e, em vez de investir na capacidade de análise dos órgãos – fazendo concurso, pagando equipe –, colocar uma faca no pescoço do órgão e dizer “se você não liberar o pedido em dois anos, o produto entra no mercado”. Eles falam dos problemas, mas o PL não é solução para nenhum deles. Ele está longe de resolver o problema da população, só resolve o problema das empresas. Vai virar o paraíso dos agrotóxicos, porque já é barato e eterno, vai poder tudo.
Ao discutir a flexibilização da legislação de agrotóxicos, o Brasil segue uma tendência mundial ou vai na contramão dos países mais desenvolvidos?
Vai totalmente na contramão. Na Europa, foram colocadas mais restrições [ao uso de agrotóxicos]; a própria China, que tem um modelo selvagem de desenvolvimento, tem feito ações desse tipo. O Brasil está na contramão da história mundial. Lembra um pouco a década de 80, na época de Cubatão, em que os militares diziam “poluição, venha a nós, poluição é desenvolvimento”. Está muito parecido.
Em contraposição ao PL 6.299/2002 , seus críticos defendem a Política Nacional de Redução de Agrotóxicos (PNARA), transformado em projeto de lei que tramita na Câmara. É possível reduzir o uso de agrotóxicos sem repensar o modelo de produção agropecuário que hoje vigora no Brasil?
O Brasil adotou um modelo que chamamos de neoextrativismo. Basicamente, nas últimas décadas nos desindustrializamos e a economia foi puxada pela exportação de bens primários, tanto agrícolas como minerais. Houve o tempo da bonança, mas depois, com a crise e a queda dos preços, esse modelo entrou em colapso. O agrotóxico simboliza o modelo capitalista selvagem. Um modelo que distribua renda e preserve os ecossistemas, acho que seria possível apenas com a aplicação plena da agroecologia.
Recentemente estive no Encontro Nacional de Agroecologia, o ENA, em Belo Horizonte, onde mais de 70% [do público] era de agricultoras e agricultores. Eles contam que começam a fazer a transição agroecológica, aí vem o vizinho com o avião, [pulveriza] o agrotóxico e as pragas fogem para onde? Para as áreas onde não há veneno. Isso causa um problema. Outra situação: escutei vários agricultores que têm caixas de abelhas, aí vem o avião e mata tudo. Vem a deriva [produzida quando o agrotóxico ultrapassa os limites da área que se pretende atingir], vai para a propriedade vizinha e dizima as abelhas. Há também casos de aviões sendo utilizados como forma de expulsar indígenas de suas terras, usados como arma de guerra. O PNARA surge quase como uma transição: vamos pelo menos reduzir o uso de agrotóxicos e trabalhar para fortalecer a agroecologia, porque é muito desigual o apoio de um modelo em relação ao outro. Quando se definiu que 30% da merenda escolar tem que ser proveniente de agricultura familiar, preferencialmente agroecológica, foi uma canetada que ajudou a desenvolver a agroecologia em todo país. Uma simples medida como essa. É possível criar formas de promover um modelo em relação ao outro, pois historicamente a gente vê o contrário. O agricultor que quer plantar sem veneno tem até hoje dificuldade de conseguir empréstimo no banco, porque se exige a nota fiscal fiscal do veneno, do adubo químico. É muito difícil convencer o gerente que não é necessário gastar com isso, que é possível gastar com outras coisas.